Valor Econômico
Imensa liquidez injetada pelos BCs dos
países ricos e juros perto de zero não afetaram a estabilidade de preços
O que é moeda? É uma representação
convencionada aceita por toda a sociedade que expressa numericamente o preço ou
valor associado a bens físicos, serviços e ativos em geral. Por muitos anos foi
considerada basicamente como um meio de troca, uma das funções que lhe
atribuíram os livros textos e que está na raiz da Teoria Quantitativa da Moeda,
prevalecente nos circuitos monetários em boa parte da segunda metade do século
XX.
A ideia de que a inflação só seria controlada através de limites impostos à emissão primária de moeda, a famosa base monetária, guiou os Bancos Centrais desde o final dos anos 70 até o início dos anos 90. Sempre que havia ameaça de aumento da inflação, os BCs agiam para retirar liquidez do mercado e reduzir assim não apenas a base, mas os meios de pagamento. O intuito era impor restrições de gastos ao setor privado e, em especial, ao setor público na convicção de que isto estaria garantido com a “redução” de indicadores hoje jurássicos, como a velocidade-renda da moeda ou mesmo o papel moeda em circulação.
Todo aquele arcabouço caiu por terra
gradativamente quando se percebeu que formas mais sofisticadas de pagamento
surgiram na economia e que a moeda deixou de ter relevância nas relações de
troca. Isso está claro no aviso de “no money” nas lojas e quiosques de
Amsterdam. A opção pelo pagamento com cartão é dominante no mundo. O dinheiro
físico não caiu em total desuso porque os contrabandistas ainda o utilizam para
manterem-se na clandestinidade.
A ferramenta do controle monetário foi
substituída pela taxa de juros de curto prazo, criou-se o sistema de meta de
inflação e assim passou a caminhar a humanidade. Permanece, porém, um grande
equívoco. Tão arraigada foi a noção de moeda como meio de troca que ainda hoje
ela permeia o imaginário da grande maioria dos economistas que, embora convivam
na prática com o novo arranjo monetário, continuam a pensar nos moldes antigos
da teoria quantitativa.
Essa rigidez dificulta o entendimento de
que a moeda é apenas uma unidade de conta, ponto fundamental nos escritos de
André Lara Resende a respeito de moeda, juros, inflação e dívida pública. São
temas sobre os quais ele tem refletido desde a crise financeira de 2008, ao
constatar que a imensa liquidez injetada pelos Bancos Centrais dos países
desenvolvidos nos bancos (o QE, quantitative easing) e, por conseguinte, na
economia, associada a taxas de juros próximas de zero, em nada afetou a
estabilidade dos preços.
Vale aqui um parêntesis: a moeda indexada -
criada por André Lara Resende em 1984 - que tomou a forma de URV (unidade real
de valor) e viabilizou a estabilidade no país em 1994, funcionou apenas como
unidade de conta. Cumpriu com a sua missão graças à contribuição de Edmar
Bacha, que nas discussões do Plano Real sugeriu, intuitivamente, uma URV
virtual, não emitida, segundo contou o próprio André à colunista na época em
que o livro “A real História do Real” foi escrito (ver capítulo 4). Sem dúvida,
houve ali um experimento prático de que, ao fim e ao cabo, a moeda é uma
unidade de conta.
Sendo isso verdade, conforme acredita
André, parece verdadeiro o argumento de que o real, bem como as moedas de
outros países, desempenha uma função essencialmente contábil na economia. Nela
são registrados os haveres, as dívidas, os balanços do setor privado e do setor
público. Nela se contabiliza o PIB. A moeda, na sua denominação específica, é
uma convenção criada pelos Estados soberanos pela necessidade de registrar os impostos,
lembra André. É como se o mundo voltasse ao básico do básico, depois de ter
passado pela moeda metálica, pela moeda lastreada e pelo padrão-ouro. Anos
depois, a moeda fiduciária das sociedades modernas é a unidade de conta usada
nas transações digitais. E isso não tem volta.
A partir da percepção de que a sistemática
do QE não gerou inflação, ainda que tivesse sido delegada aos BCs uma
prerrogativa típica dos orçamentos públicos administrados pelos Tesouros, e de
que a moeda é unidade de conta, André passou a defender o aumento de gastos
públicos em investimento social e de infraestrutura para a expansão da economia
brasileira. Isso seria feito através da transferência contábil de fundos do
governo para o setor privado sem efeito inflacionário enquanto houver
capacidade ociosa na economia.
A proposta é obviamente polêmica aos olhos
da grande maioria que advoga o limite na relação da dívida pública com o PIB
para conter o aumento do endividamento e, com isso, a inflação. Às críticas,
André contrapõe o argumento de que a dívida pública e o déficit do governo têm
crescido absurdamente pelo impacto extraordinário e desnecessário que a taxa
Selic de 13,75% causa negativamente nas contas públicas do país.
Nas quase cinco horas de conversa, André
reiterou a convicção de que a taxa de juros de curto prazo do BC no Brasil não
precisa exceder à taxa de expansão do PIB para manter a inflação sob controle,
salvo em situações anômalas. Acha mesmo que, passada a fase de gargalos ainda
existente no fornecimento mundial de peças e de insumos e equacionado o fator
de instabilidade nos preços do gás e petróleo, o mundo voltará a crescer com
inflação baixa.
André Lara Resende é um pensador. Formado
na ortodoxia, não tem medo de questionar os dogmas por anos assentados na teoria
econômica e nem de rever posições que teve no passado na busca de soluções que
tirem a economia brasileira do atoleiro em que se encontra há anos sem
comprometer a estabilidade para a qual deu uma contribuição decisiva.
Pode-se concordar ou discordar das
propostas de André, mas nunca ignorá-las. Nem o comodismo nem o preconceito
deveriam comprometer a qualidade que sempre orientou o debate das ideias
econômicas no país. E isso é fundamental nos dias de hoje.
Correção: no texto da última coluna fez-se menção à taxa de juro depois de descontada a inflação passada equivocadamente como sendo a taxa real ex-ante, quando na verdade deveria ter sido mencionado taxa real ex-post.
Nenhum comentário:
Postar um comentário