Folha de S. Paulo
Sistema político, hoje querido, nunca teve
todo o sucesso de crítica e de público que imaginávamos
Responda honestamente, para você o que é
preferível? Ser
governado pela esquerda ou governado
democraticamente?
Uma sociedade próspera e com governos
eficientes ou um Estado democrático? Uma sociedade em que são protegidos os
valores certos ou uma sociedade em que o combinado fundamental que a todos
obriga deriva tão somente de
constituição liberal-democrata?
Neste vertiginoso século 21, há poucos
consensos tão bem estabelecidos quanto a convicção de que é melhor viver sob um
regime democrático. Todos amam a democracia, e a tal ponto que quando são,
eventualmente, acusados de traí-la, reagem como se tivessem recebido um
insulto.
Nem sempre houve esse consenso. Não faz muito tempo, a democracia não só não gozava dessa reputação, como de fato foi muitas vezes abandonada, desfigurada e substituída.
Ainda estão vivos muitos dos que viram quando uma parte relevante dos países do mundo foi desgarrado da democracia durante o turbulento século passado. A civilizadíssima Europa foi redemocratizada à força, na América Latina ditaduras militares caíram de podre depois de quebrar as economias dos países que as adotaram, o mesmo em outras partes do mundo.
Vivi sob uma ditadura até os meus 20 anos,
enquanto meu pai, nascido em 1922, viveu sob duas delas. Isso sem contar o
período de "desdemocratização" da
era Jair Bolsonaro.
Em suma, a democracia, hoje bastante
querida, nunca teve o sucesso de crítica e público que muitos imaginam.
Mesmo hoje, o consenso democrático
revela-se menor quando examinado de perto. Prefere-se sempre a democracia, sim,
mas o consenso vacila quando se aborda o interlocutor a partir das suas visões
de mundo. Há esquerdistas, direitistas, liberais na economia e conservadores
que acham a democracia o máximo, mas não mais importante do que os valores do
seu segmento ideológico. O que produz alguns tipos de convicção democrática
bastante discutíveis.
Começo com os agnósticos e indiferentes,
que adotam doutrinas econômicas ou até mesmo jurídicas que não são propriamente
antidemocráticas, mas para as quais os requisitos da democracia não são uma
prioridade diante de valores como prosperidade ou eficiência na economia e na
governança. Pressupõem que sociedades mais ricas tendem a ser menos desiguais,
daí saltando a ideia de que autocracias podem ser toleráveis desde que
entreguem riqueza, eficiência e qualidade de vida.
Se democracias oferecem o mesmo, melhor
ainda, mas regime político bom seria regime economicamente eficaz.
A esquerda, por sua vez, jura que adora a
democracia, mas, entre os valores democráticos e os do socialismo —superação da
luta de classes e igualdade social—, muitos vacilam.
Na encruzilhada entre socialismo e
democracia, cinde-se em diferentes esquerdas: de um lado os que são capazes de
tolerar a ausência de igualdade e liberdade políticas, pedras angulares da
democracia, desde que se tenha igualdade social; do outro, os que prezam muito
a justiça social desde que feita em regime de liberdades.
O primeiro grupo viu-se constrangido a criar
álibis para justificar por que preferem o socialismo à democracia. O mais comum
é o argumento de que há duas democracias: a dos burgueses, em que a igualdade é
só aparente, visto não ser igualdade social, e a verdadeira democracia, a que
só um regime socialista é capaz de entregar, com igualdade social plena.
O socialismo seria a realização definitiva
das aspirações democráticas por justiça social, embora historicamente nunca
tenha funcionado em simbiose em regime de liberdades e direitos fundamentais.
Os ultraconservadores costumam confrontar
os excelentes valores democráticos com valores ainda mais excelsos. Se o
pentateuco, revelado, vale mais do que qualquer constituição secular, por que
dobrar-se à democracia liberal? Por que viver sob democracia constitucional e
não na lei de Deus?
De fato, nem a democracia política garante
igualdade social, nem é regime transcendental, pela razão óbvia: não é um modo
de produção econômica ou um sistema religioso.
Por outro lado, é inegável que democracia
melhora o capitalismo e as religiões em Estados democráticos onde convivem, em
virtude da pressão que a igualdade política exerce para produzir igualdade
social e por forçar as religiões ao valor democrático da tolerância.
Resta o fato de que, se todo mundo gosta da
democracia, há uma parte substancial da sociedade que situa muitas coisas antes
e em lugar dela.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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