Valor Econômico
Países em desenvolvimento sofrem por
choques que não promoveram
Migramos para uma era de competição global
abrandada pela necessidade de cooperar e pelo medo do conflito. Os principais
protagonistas são os EUA e seus aliados, de um lado, e China e Rússia, do
outro. Mas o restante do mundo também importa. Abriga 66% da população global e
uma série de potências em ascensão, notadamente a Índia, agora o país mais
populoso do mundo.
No entanto, as relações entre os EUA e a
China são, sem dúvida, dominantes. Felizmente, o governo americano tentou
reduzir o atrito, mais recentemente com as visitas do secretário de Estado,
Antony Blinken, e da secretária do Tesouro, Janet Yellen.
O objetivo de Yellen era, segundo disse, “instaurar e aprofundar relações” com a nova equipe de liderança econômica em Pequim. Ela enfatizou que isso seria parte de um esforço de estabilizar as relações entre os dois países, de reduzir o risco de mal-entendidos e de estudar áreas de cooperação. Acrescentou que “há uma distinção importante entre descolar, por um lado, e, por outro lado, diversificar cadeias de suprimentos decisivas ou adotar medidas pontuais de segurança nacional. Sabemos que um descolamento das duas maiores economias mundiais seria desastroso para ambos os países e desestabilizador para o mundo. E que seria virtualmente impossível de realizar”.
É preciso aplaudir esse esforço de
clarificar os objetivos, melhorar a transparência e aprofundar as relações. Não
podemos esbarrar em hostilidades com a China como fizemos no caso da Rússia.
Ou, melhor ainda, precisamos fazer com que essa relação funcione, para o bem do
mundo. Mas as preocupações do Ocidente não devem se limitar às relações com a
China. Ter melhores relações com o restante do mundo também é importante. Isso
exige que o Ocidente reconheça seu próprio uso de dois pesos e duas medidas e
sua hipocrisia.
A invasão da Ucrânia pela Rússia foi uma
terrível violação da moral fundamental e dos princípios legais. Muitas pessoas
dos países em desenvolvimento também reconhecem isso. Mas elas se lembram,
também, da longa história dos países ocidentais como imperialistas e invasores.
Tampouco deixam de perceber que nós, os países ocidentais, damos muito mais importância
aos nossos pares europeus do que a outros. Com demasiada frequência assistimos
a graves violações de direitos humanos e da legislação internacional. Com
demasiada frequência encaramos essas injustiças como coisa que não nos dizem
respeito. A Ucrânia, sentem muitos, não lhes diz respeito.
Há também o comércio. Em discurso
pronunciado em abril, Jake Sullivan, o assessor de segurança nacional dos EUA,
repudiou a ordem de comércio exterior que seu país levou décadas para erigir.
Mais recentemente a representante comercial dos EUA, Katherine Tai, a enterrou.
O pronunciamento dela levanta muitas questões. Mas o que não pode ser ignorado
é o próprio fato de ter sido dada meia-volta. Muitas pessoas dos países em
desenvolvimento apostaram na doutrina da abertura comercial. Muitas prosperaram
em decorrência disso. Agora temem ser deixadas em apuros.
Mas outra questão significativa é a
assistência internacional. Os países em desenvolvimento sofreram as
consequências de uma série de choques pelos quais não foram responsáveis: a
covid-19, a acentuada alta da inflação que se seguiu, a invasão da Ucrânia, o
salto dos preços da energia e dos alimentos e, em seguida, a elevação das taxas
de juros. A assistência que receberam durante essa era de choques foi brutalmente
inadequada. O legado da covid-19 sobre os jovens, juntamente com o
superendividamento, poderá até criar décadas perdidas.
Essa questão de assistência ao
desenvolvimento é vinculada ao desafio do clima. Como sabe qualquer habitante
dos países em desenvolvimento, o motivo pelo qual o problema climático é
urgente são as emissões históricas dos países de alta renda. Estes últimos
puderam usar a atmosfera como um exaustor, enquanto os países em
desenvolvimento atuais não podem. Assim, hoje lhes dizemos que eles têm de
assumir uma trajetória de desenvolvimento muito diferente da nossa própria
trajetória de países desenvolvidos. Desnecessário dizer: isso provoca muita
raiva. No entanto, as emissões têm agora de ser fortemente reduzidas. Isso
exige um esforço global, inclusive da parte de muitos países emergentes e em
desenvolvimento. Será que avançamos nessa tarefa, em termos reais, e não
retóricos? A resposta é “não”. As emissões não caíram, absolutamente.
Para que as emissões diminuam rapidamente,
sem que os países emergentes e em desenvolvimento tenham de deixar de gerar a
prosperidade que suas populações exigem, é preciso que lhes encaminhemos um
enorme fluxo de recursos, principalmente para financiar a mitigação climática e
a necessária adaptação a temperaturas mais elevadas. Em 2021, as transferências
líquidas representadas por empréstimos oficiais a países emergentes e em
desenvolvimento se limitaram a US$ 38 bilhões. As subvenções foram maiores, mas
com um foco mais estreito.
Esse valor nem se aproxima do suficiente. É
preciso haver maior ajuda, alívio de endividamento, apoio a investimentos
relacionados ao clima e novos mecanismos para a geração dos recursos
necessários, como o mencionado na proposta de que os países com emissões per
capita acima da média indenizem os que emitem abaixo da média. Aumentos de
capital dos bancos multilaterais também são vitais.
As democracias de alta renda não estão
oferecendo ajuda adequada nesta tarefa de mais longo prazo, reproduzindo a
mesma postura que tiveram com relação à covid-19. No caso do clima, a falha é
não perceber nossa responsabilidade de administrar um problema que os pobres do
mundo não criaram. Isso parece injusto, simplesmente porque, obviamente, é.
Vivemos uma competição de sistemas. Espero
que a democracia e as liberdades individuais efetivamente acabem vencendo. No
longo prazo, têm grande probabilidade de vencer. Precisamos também nos lembrar,
no entanto, das ameaças à paz, à prosperidade e ao planeta com que nos
defrontamos. Enfrentá-las exigirá um profundo envolvimento com a China. Mas se
o Ocidente quiser ter a influência que espera ter, precisa perceber que seus
protestos de superioridade moral não são nem incontestáveis nem incontestes.
Muitos, no nosso mundo atual, encaram as potências ocidentais como egoístas,
presunçosas e hipócritas. Temos de melhorar, e muito. (Tradução de Rachel Warszawski)
*Martin Wolf é editor e principal analista de economia do Financial Times
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