quarta-feira, 12 de julho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Deflação de junho torna iminente a queda dos juros

Valor Econômico

Com a expectativa de preços em declínio, a taxa de juros ficou alta demais

A deflação de 0,08% do IPCA em junho torna praticamente certo o início de um ciclo de corte das taxas de juros pelo Banco Central na próxima reunião. Não deixa evidente a magnitude do corte, porque os serviços continuam pressionando a inflação - aqui, nos Estados Unido e Europa- nem o ponto de chegada do afrouxamento. Importante, no entanto, é que se trata de um fato auspicioso que, somado a vários outros dos últimos meses, deixa entrever a possibilidade de um círculo virtuoso, pelo menos a curto prazo, de algum controle do gasto público, crescimento um pouco maior, inflação cadente e aumento dos investimentos privados.

Embora o presidente Lula gostaria que o BC obedecesse a suas ordens e reduzisse os juros quando ordenasse, foi a insistência em uma política contracionista que abriu finalmente os horizontes de redução. Os movimentos que orientaram a desancoragem das expectativas inflacionárias e o pessimismo são claros e atribuíveis a sentimentos pessimistas sobre ações do governo. A PEC da Transição, com aumento de 1,5% do PIB em gastos, com as investidas do presidente por mais gastos, fizeram os investidores temerem pelo pior. A avaliação de que uma âncora fiscal nada robusta era no entanto uma positiva e pouco esperada preocupação fiscal, a revisão da perspectiva para a nota de crédito soberano do país e a valorização do real mudaram o clima.

A manutenção da meta de inflação em 3% para 2026, sem mudança nos anos anteriores, com a aceitação de um calendário móvel para o BC atingir seus alvos, retirou outra fonte de angústia sobre as intenções do governo de forçar um afrouxamento monetário na marra. A aprovação da reforma tributária na Câmara por ampla maioria em dois turnos virou o jogo amplamente a favor da chance de um período de estabilidade econômica. Falta derrubar os juros.

Não era novidade que o IPCA acertaria a meta em junho, e ficasse até mesmo abaixo dela - foi de 3,16% em doze meses - com a queda de alimentos e a derrocada dos preços dos combustíveis. Também não é segredo que a base de comparação agora será mais desfavorável, com a deflação trimestral de julho-agosto-setembro do ano passado entrando nos cálculos. O Banco Central prevê inflação fora da meta em 2023, com o IPCA de 5%. Os investidores estão mais otimistas e vislumbram uma chance de que a inflação caia abaixo do teto de variação da meta, de 4,75%.

Os números de junho não desmentiram a perspectiva da desinflação. A média de inflação dos cinco núcleos calculados pela MCM Consultores mostrou novo recuo, de 6,72% para 5,99%. Outro fator positivo foi a redução significativa do índice de difusão (quantidade de produtos com preços em alta em relação ao total da cesta pesquisada), que foi de 56% para 49,6%.

Mas a queda do índice cheio da inflação, como em vários países, foi mais rápida que a dos núcleos, por vários motivos. O principal deles é que a redução inflacionária está vindo de setores que são mais voláteis, justamente os excluídos dos núcleos, como energia e alimentos. São alguns deles que jogaram o IPCA para o lado negativo, com deflação de 0,14% em alimentos e bebidas e de 26,3% nos combustíveis. Os preços do petróleo estão em baixa no exterior e o movimento tem sido acompanhado pelas reduções feitas pela Petrobras. Haverá recomposição dos tributos a partir de agora e a desoneração do ano passado levou à deflação do IPCA a partir de julho.

Os bancos centrais, como o do Brasil, estão preocupados com a resistência à queda dos preços dos serviços. Na Europa e Estados Unidos, o aquecimento do mercado de trabalho é uma de suas causas. No Brasil, o BC atribui à força da demanda a retração vagarosa dos índices que medem a inflação subjacente em serviços. Pelos dados do IBGE, os serviços no IPCA evoluíram 0,62% em junho, que não apenas reverteu a deflação observada em maio como foi a mais alta taxa do ano. Em 12 meses, a taxa foi de 6,21%. Há relativa piora quando se considera a média móvel de três meses anualizada dos serviços subjacentes, que subiu. Nos cálculos de Alexandre Maluf, da XP Investimentos, ela avançou de 6,08% em maio para 6,75% no mês passado.

Olhando friamente os números, o BC provavelmente decidirá por uma redução de 0,25 ponto percentual. Mas como a tendência dos preços é declinante, entre 5% na pior das hipóteses em 2023 e 3,9% no ano que vem, a taxa real ficou alta em demasia. Assim como há BCs que ficam atrás da curva por demorarem a elevar os juros, há os que estão na mesma situação para reduzir as taxas. A avaliação do momento e do ritmo certo é complexa. O presidente Lula atribui ao “tinhoso” que preside o BCB a teimosia em manter os juros aonde estão. Perdeu outra chance de ficar calado, porque as taxas virão abaixo com cautela porque as condições inflacionárias, em parte criadas pela política monetária, o permitem. Além disso, a sensatez do governo na questão das metas de inflação e da reforma tributária, criaram enorme torcida pela queda dos juros - em direção à ancoragem das expectativas. Com vigilância e contenção nos gastos públicos, o governo pode consolidar a tendência.

IPCA de junho é resultado do trabalho do BC

O Globo

Após divulgação de queda da inflação, analistas econômicos confiam em redução dos juros em agosto

Com a baixa em junho do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 0,08%, o acumulado dos últimos 12 meses ficou em 3,16%, o menor percentual desde setembro de 2020. Uma outra medida conhecida como núcleo de inflação, que busca identificar a tendência dos preços, sem levar em conta choques temporários, também teve queda. A média dos cinco núcleos monitorados pelo Banco Central (BC) no acumulado de 12 meses saiu de 6,72% em maio para 5,99% em junho, segundo cálculos da MCM Consultores.

O evidente processo de desinflação é prova da eficiência do trabalho do BC, que começou a elevar os juros na tentativa de controlar a escalada dos preços há mais de dois anos. A partir de janeiro, a luta ganhou o reforço do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, responsável pela elaboração de uma nova regra fiscal. Inflação alta, é sempre bom lembrar, significa perda de renda para os trabalhadores.

Após o anúncio do IPCA, a dúvida de economistas não é mais se os diretores do BC iniciarão em agosto, mês da próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), o processo de queda da taxa básica de juros, a Selic, desde 2022 em 13,75%. O questionamento agora é se o corte será de 0,25 ou 0,5 ponto percentual. A confiança nesse cenário é grande, apesar das projeções de que a inflação aumentará entre julho e dezembro em relação ao mesmo período de 2022.

A explicação é a base de comparação. Foi no segundo semestre do ano passado que aconteceu a desoneração dos combustíveis. Por isso os índices de agora até o fim do ano devem crescer. Mesmo assim, a média das projeções de analistas é de um IPCA abaixo dos 5% para 2023. Caso fique em 4,75%, estará dentro do teto da meta do BC.

A mudança de perspectiva é digna de nota. Há três meses, a previsão do mercado para a inflação deste ano era de cerca de 6%. As projeções para 2024, 2025 e 2026 também passaram por um período de alta desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu início a ataques frequentes ao presidente do BC, Roberto Campos Neto. A desancoragem das expectativas era patente. A recente decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN) de manter as metas dos próximos dois anos em 3% ajudou a dissipar temores. Os últimos dados do IPCA e dos núcleos fortaleceram a leitura positiva.

Os mesmos analistas econômicos que no início do ano apostavam num aumento descontrolado das despesas da União hoje confiam que Haddad conseguirá entregar um déficit de aproximadamente R$ 100 bilhões, valor bem abaixo do previsto no ano passado. Uma alta maior dos gastos elevaria a demanda por produtos e serviços, aumentaria o índice de inflação e tornaria ainda mais difícil o trabalho do BC.

É verdade que o ceticismo em relação às promessas de trajetória da dívida até o final da administração continua alto. Para serem cumpridas, o governo terá de aumentar a arrecadação de forma drástica, algo incerto. Independentemente disso, a queda dos juros deve melhorar o cenário fiscal, com a redução do ritmo de crescimento da dívida e o estímulo da economia. A persistência do BC ainda dará muitos frutos.

Clubes e federações têm de se engajar na luta contra a violência no futebol

O Globo

É inaceitável que torcedora do Palmeiras seja a sétima vítima da barbárie apenas este ano

A morte da torcedora palmeirense Gabriela Anelli, de 23 anos, atingida no pescoço por estilhaços de uma garrafa atirada por um rubro-negro numa das entradas do Allianz Park, no último sábado, expõe a barbárie que tomou conta do futebol brasileiro, enquanto autoridades, clubes e federações se mostram incapazes de pôr um fim a esse espetáculo macabro.

Sob nenhum argumento se pode achar aceitável que Gabriela seja a sétima vítima apenas neste ano de episódios de violência. Significa que, a cada mês, a selvageria perpetrada por bandidos travestidos de torcedores leva desgraça aonde deveria haver entretenimento.

Lamentavelmente, a violência vai além das batalhas entre torcedores. No mês passado, torcidas organizadas do Santos protagonizaram episódios lamentáveis na lendária Vila Belmiro, durante a derrota para o Corinthians por 2 a 0 pelo Campeonato Brasileiro. Inconformadas com o desempenho do time, atiraram rojões e sinalizadores no gramado, levando o árbitro a encerrar o jogo antes do tempo por falta de segurança. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) puniu o Santos com oito jogos de portões fechados, perda de mando de campo e multa de R$ 80 mil.

A despeito de punições pontuais, a sensação de impunidade tem gerado fatos inimagináveis. No início do mês, torcedores do Corinthians invadiram a suíte de um motel onde estava o jogador Luan e o agrediram. Durante a ação, gritavam frases como “Se não sair do Corinthians, vamos te matar”. Depois foram comemorar numa lanchonete. O técnico Vanderlei Luxemburgo resumiu a perseguição aos atletas: “É muito ruim estar numa concentração e se sentir numa prisão domiciliar”.

Não se pode dizer que nada esteja sendo feito para barrar essas situações absurdas. Mas claramente as medidas adotadas não têm surtido efeito. Entende-se que não há solução fácil para o problema. Mas é preciso ajustar os ponteiros. Não adianta proibir que bares nas imediações dos estádios vendam garrafas se elas são facilmente encontradas com ambulantes. Também não é admissível que torcidas adversárias fiquem lado a lado nas imediações das arenas. Qualquer um sabe o que pode acontecer quando elas se juntam.

Todos os responsáveis por esses episódios têm de ser investigados e punidos. Não podem ser chamados de torcedores aqueles que matam, espancam, invadem estabelecimentos e ameaçam jogadores. Torcer é uma coisa. Cometer crimes é outra bem diferente. O rubro-negro acusado de atirar a garrafa em Gabriela está preso. Que seja investigado, julgado e, comprovada a culpa, punido exemplarmente.

Clubes e federações não podem agir como espectadores. Historicamente, têm sido condescendentes com integrantes de organizadas. Bandidos não podem ter entrada livre nas arenas. Se o país quer mudar o curso desse enredo, todos os envolvidos devem se engajar na luta contra a violência. Quando o Brasil entenderá que a morte de Gabriela, que só queria ir ao estádio torcer por seu time, é também a morte do futebol?

Anatomia da deflação

Folha de S. Paulo

IPCA ainda não tranquiliza; surto vai sendo superado graças a balizas econômicas

A confirmação de que houve deflação para os consumidores no mês de junho excitou, previsivelmente, propagandistas do governo, seja para exaltar seus feitos reais ou imaginários, seja para reforçar as pressões pela redução dos juros do Banco Central fomentadas por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

É fato que parecem dadas as condições para o corte das taxas do BC a partir do início de agosto, quando o Comitê de Política Monetária (Copom) volta a se reunir. Entretanto o detalhamento do IPCA do mês passado ainda não mostra um cenário tão tranquilizador.

Índices de preços negativos não são novidade. O país os registrou em julho, agosto e setembro do ano passado, para ficar no exemplo mais recente —naquela ocasião, graças a uma intervenção eleitoreira de Jair Bolsonaro (PL) para desonerar os combustíveis, além da queda de cotações de matérias-primas no mercado global.

Em menor grau, a combinação de sorte e artificialismo se repete agora. Tanto houve barateamento circunstancial de alimentos e combustíveis quanto o efeito do programa equivocado para favorecer a compra de automóveis.

Assim, a ligeira deflação de 0,08% em junho não marca o fim do surto inflacionário que se seguiu, no Brasil e no mundo, à pandemia de Covid-19 —como a deflação de 2022 tampouco marcava.

O IPCA cai, sim, mas não está em nível tão confortável como pode sugerir a taxa acumulada de apenas 3,16% nos últimos 12 meses. Em cálculos que excluem preços muito voláteis ou variações pontuais exageradas, os chamados núcleos da inflação ainda mostram taxas na casa dos 6% no período.

Da mesma forma, o setor de serviços, no qual as tendências de preços são mais estáveis, registrou alta de 0,62% em junho e 6,21% em 12 meses, cifras elevadas. Não por acaso, refrearam-se no mercado financeiro apostas em um corte mais agressivo dos juros.

O que há de mais positivo é que o país vai superando gradual e consistentemente uma inflação que chegou ao patamar de dois dígitos —e teve impactos particularmente dolorosos para os estratos mais pobres da população.

O feito, se confirmado mais à frente, não se deverá ao voluntarismo de governantes, mas à persistência das balizas da política econômica, aí incluídos a autonomia do BC e os limites, mesmo falhos, para a expansão do gasto público.

Há um custo momentâneo e não desprezível para o crescimento do PIB e a geração de empregos, sem dúvida, mas basta uma comparação com os flagelos da vizinha Argentina para constatar que muito pior seria evitar os ajustes.

Elas também

Folha de S. Paulo

Forças Armadas precisam combater machismo e dar segurança às vítimas de assédio

A baiana Maria Quitéria de Jesus foi a primeira mulher a se alistar no Exército brasileiro. Em 1822, desafiou o pai, cortou os cabelos, travestiu-se de homem e foi lutar na Guerra da Independência.

Mas foram necessários quase 170 anos para que a participação das mulheres fosse oficializada por meio de leis: em 1980 na Marinha, um ano depois na Aeronáutica e somente em 1989 no Exército.

Ao longo do século 20, o gênero feminino foi abrindo espaços de atuação na sociedade, principalmente em áreas liberais como artes, ciência, educação e comércio. Em setores mais ortodoxos e com arraigada cultura machista, como as Forças Armadas, a participação das mulheres foi tardia, e não apenas ainda é pequena como muitas sofrem com preconceito e assédio.

A partir do levantamento de dados do Superior Tribunal Militar, reportagem da Folha revela que, desde 2018, foram abertas 88 investigações de casos de assédio e importunação sexual. Dessas, 56 viraram ações penais. De 2022 a julho deste ano, foram 29 denúncias —uma média de 3 a cada 2 meses.

São episódios inaceitáveis de flertes inadequados, contato físico não autorizado e até mesmo ataques perpetrados por colegas de caserna. Além do impacto psicológico causado pelos assédios, praças e oficiais precisam lidar com preconceito durante as apurações.

Um caso particularmente inquietante foi o da sargento que relatou um ataque e acabou sendo acusada pelo Ministério Público Militar de denunciação caluniosa.

Artur Vidigal de Oliveira, ministro do STM que arquivou a denúncia contra a militar, atestou em seu voto a má condução da sindicância e do inquérito policial militar que questionaram o comportamento sexual da sargento: "É de uma tentativa assombrosa de se culpar a vítima do assédio por ela sofrido".

Por óbvio práticas nefastas de assédio e importunação sexual não são exclusividade das Forças Armadas, mas a instituição precisa criar protocolos de investigação que protejam as vítimas e canais de denúncia seguros, como vem se tornando comum na iniciativa privada e em órgãos públicos.

A abertura de uma Ouvidoria da Mulher no Ministério Público Militar, em março do ano passado, para receber denúncias de assédio é, portanto, iniciativa importante.

As Forças Armadas têm apenas 10% de mulheres na Marinha, 6% no Exército e 21% na Aeronáutica, mas todas merecem respeito nos seus locais de trabalho e amparo para denunciar abusos.

Emenda parlamentar é do jogo democrático

O Estado de S. Paulo

Emenda não é propina nem modo sujo de fazer política. É instrumento democrático de distribuição do poder. O problema é sua perversão, como no orçamento secreto

É do jogo democrático a distribuição de emendas parlamentares por parte de um governo para a formação de sua base no Congresso, como se viu antes da votação da reforma tributária, semana passada, na Câmara. Esse mecanismo de recompensa não tem rigorosamente nada de antirrepublicano, até porque os recursos das emendas não vão para o bolso dos parlamentares. Eles são destinados às finalidades indicadas pelo parlamentar, que responderá politicamente por isso.

Emenda parlamentar não é pagamento de propina. É dinheiro público destinado a finalidades públicas. A diferença da emenda parlamentar consiste apenas no fato de que, em vez de ser o Executivo a indicar sua destinação concreta, é o parlamentar quem o faz. É equivocado, portanto, tratar a priori a distribuição de emendas como um modo sujo de fazer política. Mais do que ingenuidade, essa visão denotaria desconhecimento sobre a própria política, que não se resume à discussão de ideias e propostas, mas envolve decisões sobre onde e como gastar o dinheiro público. Partilhar o poder é também dividir essas decisões.

Não há rigorosamente nenhum problema em que parte dos recursos públicos tenha sua destinação definida por parlamentares, e não pelo Executivo. Trata-se de configuração institucional própria dos regimes democráticos, nos quais não existe Poder absoluto. O Legislativo não apenas aprova a lei orçamentária, autorizando os gastos, como define a destinação concreta de parte dos recursos. Entre outros benefícios, essa sistemática permite a descentralização decisória e a proximidade com as necessidades e interesses da população. Por exemplo, muitas emendas parlamentares são dedicadas às Santas Casas de Misericórdia, à construção e reforma de escolas ou à iluminação e pavimentação pública.

O problema das emendas parlamentares está em sua perversão, como ocorre com o chamado orçamento secreto, criado no governo Bolsonaro. Não há transparência no procedimento relativo às emendas de relator (RP9), no qual não se sabe qual parlamentar indicou o destino da verba. Assim, o eleitor fica impedido de fazer a indispensável responsabilização política de seus representantes no Congresso. A população tem o direito de saber sobre a atuação concreta de cada parlamentar, para premiá-lo ou para punilo nas urnas das eleições seguintes. Ao mesmo tempo, essa opacidade estimula o mau uso dos recursos, por ineficiência, atendimento de interesses escusos ou mesmo desvio de verbas.

A falta de transparência no uso de recursos públicos é causa de muitos problemas. Precisamente por isso, ela é incompatível com o Estado Democrático de Direito. No fim do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a inconstitucionalidade do orçamento secreto. A Corte não declarou que as emendas parlamentares são inconstitucionais. E sim que as emendas RP-9, em razão da ausência de identificação do proponente e da opacidade sobre seu destinatário, violam os princípios constitucionais da transparência, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade. Infelizmente, apesar da orientação do STF, continua não havendo plena transparência na distribuição de várias emendas, o que merece a mais firme reprovação. Cumprimento de decisão judicial não é algo optativo, mas um dever.

Outro ponto que merece atenção diz respeito ao valor das emendas parlamentares. Não faria sentido, por exemplo, que boa parte dos recursos públicos tivesse sua destinação definida pelos deputados e senadores, e não pelo governo. O Executivo é o gestor, por excelência, do orçamento público. No entanto, nos últimos anos, em razão de vários fatores – entre eles, a falta de disposição do presidente Jair Bolsonaro em governar –, o Congresso ampliou consideravelmente os valores destinados às várias emendas parlamentares. Isso é um problema sério.

Há muitas correções a serem feitas nas emendas parlamentares. Mas, para tanto, o primeiro passo é compreender seu funcionamento e seus objetivos, sem criminalizá-las.

Profissões incompatíveis com a política

O Estado de S. Paulo

Tornou-se frequente o uso de instituições de Estado para fins eleitorais. Proposta de quarentena para policiais é positiva. O mesmo deve valer para juízes, procuradores e militares

O diretor-geral da Polícia Federal (PF), Andrei Rodrigues, disse que vai propor ao Ministério da Justiça, para que depois seja apresentado ao Congresso, projeto de lei para proibir a filiação partidária de policiais federais e para instituir uma quarentena de pelo menos dois anos para candidaturas políticas. As duas medidas são muito positivas, protegendo a instituição de desvirtuamentos e partidarismos em sua atuação. “Quem quiser fazer política partidária está no lugar errado”, afirmou, com inteira razão, o diretor-geral da PF, em entrevista ao jornal O Globo.

Nos últimos anos, viu-se no País uma profusão de candidaturas de policiais, que utilizaram sua posição pública e o prestígio da PF para fins político-partidários. “Infelizmente, a instituição foi usada várias vezes”, reconheceu Andrei Rodrigues. Trata-se de um problema sério. A PF existe para servir o interesse público, de acordo com as finalidades fixadas na lei. Seu trabalho não pode estar sujeito a interferências político-partidárias, o que prejudicaria a qualidade de suas atividades e a sua autoridade junto à população.

Nesse sentido, é louvável outra iniciativa da PF, que pode parecer de menor alcance, mas é muito significativa: a regulação do uso do símbolo da instituição nas redes sociais para fins pessoais e atividades não ligadas à PF. Não se pode permitir o uso da imagem de uma instituição pública para interesses particulares.

É preciso reconhecer que o mesmo desafio da polícia está presente em outras instituições de Estado. Três são os setores que, devendo estar distantes da política, sofreram, nos últimos anos, várias tentativas de uso eleitoral: as Forças Armadas, o Judiciário e o Ministério Público.

Nos três casos, a Constituição já proíbe o exercício de atividade político-partidária. Em relação ao Ministério Público, o texto original dizia “salvo exceções previstas na lei”. No entanto, a reforma do Judiciário de 2004 excluiu a possibilidade de a lei fixar exceções. Assim como os juízes, os membros do Ministério Público não podem exercer atividades político partidárias.

No caso das Forças Armadas, a Constituição confere um tratamento peculiar. “O militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos”, diz o art. 142, § 3.º, V. No entanto, o art. 14, § 8.º, estabelece que, atendidas determinadas condições, “o militar alistável é elegível”. Ou seja, ao contrário do que ocorre com o restante da população, os militares da ativa podem ser candidatos às eleições sem que estejam filiados a partidos políticos.

Nada disso é bom para o funcionamento do Estado Democrático de Direito. Referindo-se à candidatura de policiais federais, o diretor-geral da PF disse que ela “cria um desequilíbrio do sistema democrático”, ao permitir “que o candidato se projete e use a instituição para proveito próprio”. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao Judiciário, ao Ministério Público e às Forças Armadas. Não basta proibir filiação partidária. É necessário que haja uma quarentena para candidaturas de juízes, procuradores, militares e policiais, de forma a assegurar uma distância mínima entre a função pública e a atividade eleitoral, evitando o conflito de interesses.

Existem, no Congresso, várias propostas de quarentena para determinadas categorias do funcionalismo público. Por exemplo, o projeto do novo Código Eleitoral – que foi aprovado pela Câmara em 2021 e está em tramitação no Senado – prevê a necessidade de desligamento do cargo quatro anos antes do pleito para juízes, membros do Ministério Público, policiais federais, rodoviários federais, policiais civis, guardas municipais, militares e policiais militares. Trata-se de medida oportuna, que evita a contaminação das funções públicas por interesses político-eleitorais.

A exigência de quarentena não viola a liberdade política. É antes um atestado de que a autonomia individual e suas consequências são efetivas. Quem escolheu ser juiz, militar, policial ou membro do Ministério Público escolheu não ser político.

Arenas de guerra

O Estado de S. Paulo

Ir a um estádio implica risco de morte. Poder público e clubes de futebol devem agir para acabar com a barbárie

Estádios de futebol se tornaram zonas de guerra. Hoje, assistir aos jogos in loco implica risco de morte. É vergonhoso que o País tenha chegado a esse estado de barbárie sob o beneplácito do poder público e a leniência dos clubes. Só neste ano, oito pessoas já morreram em decorrência da pulsão homicida de indivíduos que apenas se transvestem como torcedores para escamotear sua verdadeira índole criminosa.

A vítima mais recente dessa guerra entre gangues foi a palmeirense Gabriela Anelli, de 23 anos. A jovem foi atingida por um estilhaço de uma garrafa de vidro arremessada por um torcedor do Flamengo contra torcedores do Palmeiras no entorno do Allianz Parque, na noite de sábado passado. Gabriela iria assistir ao jogo entre os dois times, válido pelo Brasileirão, mas nem sequer teve tempo de entrar no estádio, apanhada pela confusão nos arredores.

A Polícia Militar de São Paulo agiu rapidamente nesse caso e prendeu o suspeito de atingir Gabriela em flagrante. Por determinação da Justiça, Leonardo Felipe Xavier Santiago, de 26 anos, está preso preventivamente. Mas, em geral, nesses episódios de violência no futebol, cada vez mais frequentes e brutais, prevalecem a impunidade e o esquecimento – a não ser, é claro, para as famílias das vítimas e seus amigos enlutados.

O Estado já foi leniente demais com tanta barbaridade. Há muito o poder público tem deixado de adotar medidas mais severas do que simplesmente proibir, por exemplo, que duas torcidas rivais frequentem o mesmo estádio, a bem da verdade um atestado de sua incompetência para garantir a segurança dos torcedores. Igualmente, nada adianta, como se viu no Allianz Parque, erguer barreiras físicas para separar as hordas de bárbaros que saem às ruas dispostas a matar ou morrer supostamente em nome de seus clubes.

É tempo de punições duras e exemplares contra criminosos que apenas fingem ser torcedores e contra os clubes de futebol, que não raro mantêm relações umbilicais com as torcidas organizadas, muitas das quais verdadeiras quadrilhas que servem mais de guarida para delinquentes do que agremiações de apoio aos times.

O futebol, como já dissemos neste espaço a propósito de reiteradas manifestações de racismo nos estádios, não é um mundo à parte; as emoções suscitadas pelo esporte nem remotamente autorizam comportamentos tipificados como crime em qualquer país civilizado.

É dever do Estado ser incisivo na aplicação das leis, punindo exemplarmente os envolvidos em casos de violência, desde o banimento dos estádios até a prisão. Os clubes, por sua vez, também devem assumir sua parcela de responsabilidade e colaborar na identificação e exclusão de indivíduos violentos que integram suas torcidas, sob pena de multa, perda de pontos e até exclusão de campeonatos, com todos os reveses esportivos e financeiros que isso implica. Somente assim será possível reverter um quadro marcado pelo medo e pela desesperança.

Estado e sociedade precisam se unir para fazer dos estádios novamente locais de celebração e confraternização, onde impere a rivalidade saudável do futebol, não a barbárie.

Fortalecer o ECA ainda é desafio

Correio Braziliense

Um levantamento da Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostra que 51% das crianças não têm todos os direitos assegurados e 19% sofrem graves violações de direito

Amanhã, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 33 anos com dados que permanecem alarmantes sobre a situação dos brasileiros nessas faixas etárias. Um levantamento da Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostra que 51% das crianças não têm todos os direitos assegurados e 19% sofrem graves violações de direito.

Criado para assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes à vida, à alimentação, à educação, à saúde, aolazer, à profissionalização, à cultura, enfim, à dignidade, à liberdade e à convivência familiar, o ECA é referência em todo o mundo, inspirando pelo menos 15 legislações na América Latina, mas, proporcionalmente, os desafios são similares.

De acordo com o Fórum de Segurança Pública, de 2022, 61,3% das vítimas de estupro no Brasil têm até 13 anos, o que corresponde a mais de quatro meninas nessa faixa etária estupradas por hora. Quase 80% (79,6%) dos abusos ocorreram dentro de casa e 82,5% dos abusadores eram conhecidos das vítimas. Há quantos anos essas estatísticas são divulgadas...

É verdade também que, ao longo de mais de três décadas de estatuto, o Brasil registrou a diminuição do trabalho infantil, da mortalidade infantil, do número de crianças em situação de rua, somado ao aumento dos índices de acesso, permanência e aprendizagem da educação fundamental, melhora da convivência familiar e comunitária e estruturação, organização e atuação do Sistema de Garantia de Direitos (SGD).

Em 2016, a Lei nº 13.257, denominada de Marco Legal da Primeira Infância, fez mudanças no ECA, reforçando um conjunto de ações voltadas à promoção do desenvolvimento infantil, desde a concepção até os seis anos. O Marco coloca a criança dessa faixa etária como prioridade no desenvolvimento de programas, na formação de profissionais e na formulação de políticas públicas, planos e serviços.

Mas os desafios são gigantescos. A alta letalidade infantojuvenil, a elaboração de uma lei geral e a atuação qualificada, estruturada e reconhecida dos Conselhos Tutelares, o aumento da proteção das violências (física, psicológica, sexual e institucional), as diferentes formas de agressões orquestradas pelo ambiente digital, sem o devido aparelhamento dos órgãos governamentais, a necessidade de fortalecer instâncias como o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e o Orçamento da Criança e do Adolescente (OCA) e as políticas para esses segmentos da sociedade.

Outros obstáculos são a piora da saúde mental de adolescentes, a desigualdade social, o desamparo de crianças migrantes e a proteção digital — sendo essa última uma das maiores preocupações do ChildFund Brasil, entidade que atua em sete estados brasileiros (Bahia, Ceará, Goiás, Minas Gerais, Paraíba, Piauí e São Paulo).

É mais que urgente um sistema integrado, com a participação de todos os estados da Federação e, consequentemente, o fortalecimento de instituições engajadas na proteção dos direitos da criança. Caso contrário, nos próximos anos, o ECA continuará no âmbito das ideias.

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