Deflação de junho torna iminente a queda dos juros
Valor Econômico
Com a expectativa de preços em declínio, a
taxa de juros ficou alta demais
A deflação de 0,08% do IPCA em junho torna
praticamente certo o início de um ciclo de corte das taxas de juros pelo Banco
Central na próxima reunião. Não deixa evidente a magnitude do corte, porque os
serviços continuam pressionando a inflação - aqui, nos Estados Unido e Europa-
nem o ponto de chegada do afrouxamento. Importante, no entanto, é que se trata
de um fato auspicioso que, somado a vários outros dos últimos meses, deixa
entrever a possibilidade de um círculo virtuoso, pelo menos a curto prazo, de
algum controle do gasto público, crescimento um pouco maior, inflação cadente e
aumento dos investimentos privados.
Embora o presidente Lula gostaria que o BC obedecesse a suas ordens e reduzisse os juros quando ordenasse, foi a insistência em uma política contracionista que abriu finalmente os horizontes de redução. Os movimentos que orientaram a desancoragem das expectativas inflacionárias e o pessimismo são claros e atribuíveis a sentimentos pessimistas sobre ações do governo. A PEC da Transição, com aumento de 1,5% do PIB em gastos, com as investidas do presidente por mais gastos, fizeram os investidores temerem pelo pior. A avaliação de que uma âncora fiscal nada robusta era no entanto uma positiva e pouco esperada preocupação fiscal, a revisão da perspectiva para a nota de crédito soberano do país e a valorização do real mudaram o clima.
A manutenção da meta de inflação em 3% para
2026, sem mudança nos anos anteriores, com a aceitação de um calendário móvel
para o BC atingir seus alvos, retirou outra fonte de angústia sobre as
intenções do governo de forçar um afrouxamento monetário na marra. A aprovação
da reforma tributária na Câmara por ampla maioria em dois turnos virou o jogo
amplamente a favor da chance de um período de estabilidade econômica. Falta
derrubar os juros.
Não era novidade que o IPCA acertaria a
meta em junho, e ficasse até mesmo abaixo dela - foi de 3,16% em doze meses -
com a queda de alimentos e a derrocada dos preços dos combustíveis. Também não
é segredo que a base de comparação agora será mais desfavorável, com a deflação
trimestral de julho-agosto-setembro do ano passado entrando nos cálculos. O
Banco Central prevê inflação fora da meta em 2023, com o IPCA de 5%. Os
investidores estão mais otimistas e vislumbram uma chance de que a inflação
caia abaixo do teto de variação da meta, de 4,75%.
Os números de junho não desmentiram a
perspectiva da desinflação. A média de inflação dos cinco núcleos calculados
pela MCM Consultores mostrou novo recuo, de 6,72% para 5,99%. Outro fator
positivo foi a redução significativa do índice de difusão (quantidade de
produtos com preços em alta em relação ao total da cesta pesquisada), que foi
de 56% para 49,6%.
Mas a queda do índice cheio da inflação,
como em vários países, foi mais rápida que a dos núcleos, por vários motivos. O
principal deles é que a redução inflacionária está vindo de setores que são
mais voláteis, justamente os excluídos dos núcleos, como energia e alimentos.
São alguns deles que jogaram o IPCA para o lado negativo, com deflação de 0,14%
em alimentos e bebidas e de 26,3% nos combustíveis. Os preços do petróleo estão
em baixa no exterior e o movimento tem sido acompanhado pelas reduções feitas
pela Petrobras. Haverá recomposição dos tributos a partir de agora e a
desoneração do ano passado levou à deflação do IPCA a partir de julho.
Os bancos centrais, como o do Brasil, estão
preocupados com a resistência à queda dos preços dos serviços. Na Europa e
Estados Unidos, o aquecimento do mercado de trabalho é uma de suas causas. No
Brasil, o BC atribui à força da demanda a retração vagarosa dos índices que
medem a inflação subjacente em serviços. Pelos dados do IBGE, os serviços no
IPCA evoluíram 0,62% em junho, que não apenas reverteu a deflação observada em
maio como foi a mais alta taxa do ano. Em 12 meses, a taxa foi de 6,21%. Há
relativa piora quando se considera a média móvel de três meses anualizada dos
serviços subjacentes, que subiu. Nos cálculos de Alexandre Maluf, da XP
Investimentos, ela avançou de 6,08% em maio para 6,75% no mês passado.
Olhando friamente os números, o BC
provavelmente decidirá por uma redução de 0,25 ponto percentual. Mas como a
tendência dos preços é declinante, entre 5% na pior das hipóteses em 2023 e
3,9% no ano que vem, a taxa real ficou alta em demasia. Assim como há BCs que
ficam atrás da curva por demorarem a elevar os juros, há os que estão na mesma
situação para reduzir as taxas. A avaliação do momento e do ritmo certo é
complexa. O presidente Lula atribui ao “tinhoso” que preside o BCB a teimosia
em manter os juros aonde estão. Perdeu outra chance de ficar calado, porque as
taxas virão abaixo com cautela porque as condições inflacionárias, em parte
criadas pela política monetária, o permitem. Além disso, a sensatez do governo
na questão das metas de inflação e da reforma tributária, criaram enorme
torcida pela queda dos juros - em direção à ancoragem das expectativas. Com
vigilância e contenção nos gastos públicos, o governo pode consolidar a
tendência.
IPCA de junho é resultado do trabalho do BC
O Globo
Após divulgação de queda da inflação,
analistas econômicos confiam em redução dos juros em agosto
Com a baixa em junho do Índice Nacional de
Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 0,08%, o acumulado dos últimos 12 meses
ficou em 3,16%, o menor percentual desde setembro de 2020. Uma outra medida
conhecida como núcleo de inflação, que
busca identificar a tendência dos preços, sem levar em conta choques
temporários, também teve queda. A média dos cinco núcleos monitorados pelo
Banco Central (BC) no acumulado de 12 meses saiu de 6,72% em maio para 5,99% em
junho, segundo cálculos da MCM Consultores.
O evidente processo de desinflação é prova
da eficiência do trabalho do BC, que começou a elevar os juros na tentativa de
controlar a escalada dos preços há mais de dois anos. A partir de janeiro, a
luta ganhou o reforço do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, responsável pela
elaboração de uma nova regra fiscal. Inflação alta, é sempre bom lembrar,
significa perda de renda para os trabalhadores.
Após o anúncio do IPCA, a dúvida de
economistas não é mais se os diretores do BC iniciarão em agosto, mês da
próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), o processo de queda da
taxa básica de juros, a Selic, desde 2022 em 13,75%. O questionamento agora é
se o corte será de 0,25 ou 0,5 ponto percentual. A confiança nesse cenário é
grande, apesar das projeções de que a inflação aumentará entre julho e dezembro
em relação ao mesmo período de 2022.
A explicação é a base de comparação. Foi no
segundo semestre do ano passado que aconteceu a desoneração dos combustíveis.
Por isso os índices de agora até o fim do ano devem crescer. Mesmo assim, a
média das projeções de analistas é de um IPCA abaixo dos 5% para 2023. Caso
fique em 4,75%, estará dentro do teto da meta do BC.
A mudança de perspectiva é digna de nota.
Há três meses, a previsão do mercado para a inflação deste ano era de cerca de
6%. As projeções para 2024, 2025 e 2026 também passaram por um período de alta
desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu início a ataques
frequentes ao presidente do BC, Roberto Campos Neto. A desancoragem das
expectativas era patente. A recente decisão do Conselho Monetário Nacional
(CMN) de manter as metas dos próximos dois anos em 3% ajudou a dissipar
temores. Os últimos dados do IPCA e dos núcleos fortaleceram a leitura
positiva.
Os mesmos analistas econômicos que no
início do ano apostavam num aumento descontrolado das despesas da União hoje
confiam que Haddad conseguirá entregar um déficit de aproximadamente R$ 100
bilhões, valor bem abaixo do previsto no ano passado. Uma alta maior dos gastos
elevaria a demanda por produtos e serviços, aumentaria o índice de inflação e
tornaria ainda mais difícil o trabalho do BC.
É verdade que o ceticismo em relação às
promessas de trajetória da dívida até o final da administração continua alto.
Para serem cumpridas, o governo terá de aumentar a arrecadação de forma
drástica, algo incerto. Independentemente disso, a queda dos juros deve
melhorar o cenário fiscal, com a redução do ritmo de crescimento da dívida e o
estímulo da economia. A persistência do BC ainda dará muitos frutos.
Clubes e federações têm de se engajar na
luta contra a violência no futebol
O Globo
É inaceitável que torcedora do Palmeiras
seja a sétima vítima da barbárie apenas este ano
A morte da torcedora palmeirense Gabriela
Anelli, de 23 anos, atingida no pescoço por estilhaços de uma garrafa atirada
por um rubro-negro numa das entradas do Allianz Park, no último sábado, expõe a
barbárie que tomou conta do futebol brasileiro, enquanto autoridades, clubes e
federações se mostram incapazes de pôr um fim a esse espetáculo macabro.
Sob nenhum argumento se pode achar
aceitável que Gabriela seja a sétima vítima apenas neste ano de episódios
de violência.
Significa que, a cada mês, a selvageria perpetrada por bandidos travestidos de
torcedores leva desgraça aonde deveria haver entretenimento.
Lamentavelmente, a violência vai além das
batalhas entre torcedores. No mês passado, torcidas organizadas do Santos
protagonizaram episódios lamentáveis na lendária Vila Belmiro, durante a
derrota para o Corinthians por 2 a 0 pelo Campeonato Brasileiro. Inconformadas
com o desempenho do time, atiraram rojões e sinalizadores no gramado, levando o
árbitro a encerrar o jogo antes do tempo por falta de segurança. O Superior
Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) puniu o Santos com oito jogos de portões
fechados, perda de mando de campo e multa de R$ 80 mil.
A despeito de punições pontuais, a sensação
de impunidade tem gerado fatos inimagináveis. No início do mês, torcedores do
Corinthians invadiram a suíte de um motel onde estava o jogador Luan e o
agrediram. Durante a ação, gritavam frases como “Se não sair do Corinthians,
vamos te matar”. Depois foram comemorar numa lanchonete. O técnico Vanderlei
Luxemburgo resumiu a perseguição aos atletas: “É muito ruim estar numa
concentração e se sentir numa prisão domiciliar”.
Não se pode dizer que nada esteja sendo
feito para barrar essas situações absurdas. Mas claramente as medidas adotadas
não têm surtido efeito. Entende-se que não há solução fácil para o problema.
Mas é preciso ajustar os ponteiros. Não adianta proibir que bares nas
imediações dos estádios vendam garrafas se elas são facilmente encontradas com
ambulantes. Também não é admissível que torcidas adversárias fiquem lado a lado
nas imediações das arenas. Qualquer um sabe o que pode acontecer quando elas se
juntam.
Todos os responsáveis por esses episódios
têm de ser investigados e punidos. Não podem ser chamados de torcedores aqueles
que matam, espancam, invadem estabelecimentos e ameaçam jogadores. Torcer é uma
coisa. Cometer crimes é outra bem diferente. O rubro-negro acusado de atirar a
garrafa em Gabriela está preso. Que seja investigado, julgado e, comprovada a
culpa, punido exemplarmente.
Clubes e federações não podem agir como espectadores. Historicamente, têm sido condescendentes com integrantes de organizadas. Bandidos não podem ter entrada livre nas arenas. Se o país quer mudar o curso desse enredo, todos os envolvidos devem se engajar na luta contra a violência. Quando o Brasil entenderá que a morte de Gabriela, que só queria ir ao estádio torcer por seu time, é também a morte do futebol?
Anatomia da deflação
Folha de S. Paulo
IPCA ainda não tranquiliza; surto vai sendo
superado graças a balizas econômicas
A confirmação de que houve
deflação para os consumidores no mês de junho excitou,
previsivelmente, propagandistas do governo, seja para exaltar seus feitos reais
ou imaginários, seja para reforçar as pressões pela redução dos juros do Banco
Central fomentadas por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
É fato que parecem dadas
as condições para o corte das taxas do BC a partir do início de agosto,
quando o Comitê de Política Monetária (Copom) volta a se reunir. Entretanto o
detalhamento do IPCA do mês passado ainda não mostra um cenário tão
tranquilizador.
Índices de preços negativos não são
novidade. O país os registrou em julho, agosto e setembro do ano passado, para
ficar no exemplo mais recente —naquela ocasião, graças a uma intervenção
eleitoreira de Jair Bolsonaro (PL) para desonerar os combustíveis, além da
queda de cotações de matérias-primas no mercado global.
Em menor grau, a combinação de sorte e
artificialismo se repete agora. Tanto houve barateamento circunstancial de
alimentos e combustíveis quanto o efeito do programa equivocado para favorecer a
compra de automóveis.
Assim, a ligeira deflação de 0,08% em junho
não marca o fim do surto inflacionário que se seguiu, no Brasil e no mundo, à
pandemia de Covid-19 —como a deflação de 2022 tampouco marcava.
O IPCA cai, sim, mas não está em nível tão
confortável como pode sugerir a taxa acumulada de apenas 3,16% nos últimos 12
meses. Em cálculos que excluem preços muito voláteis ou variações pontuais
exageradas, os chamados núcleos da inflação ainda mostram taxas na casa dos 6%
no período.
Da mesma forma, o setor de serviços, no
qual as tendências de preços são mais estáveis, registrou alta de 0,62% em
junho e 6,21% em 12 meses, cifras elevadas. Não por acaso, refrearam-se no
mercado financeiro apostas em um corte mais agressivo dos juros.
O que há de mais positivo é que o país vai
superando gradual e consistentemente uma inflação que chegou ao patamar de dois
dígitos —e teve impactos particularmente dolorosos para os estratos mais pobres
da população.
O feito, se confirmado mais à frente, não se
deverá ao voluntarismo de governantes, mas à
persistência das balizas da política econômica, aí incluídos a autonomia do BC e
os limites, mesmo falhos, para a expansão do gasto público.
Há um custo momentâneo e não desprezível
para o crescimento do PIB e a geração de empregos, sem dúvida, mas basta uma
comparação com os flagelos da vizinha Argentina para constatar que muito pior
seria evitar os ajustes.
Elas também
Folha de S. Paulo
Forças Armadas precisam combater machismo e
dar segurança às vítimas de assédio
A baiana Maria Quitéria de Jesus foi a
primeira mulher a se alistar no Exército brasileiro. Em 1822, desafiou o pai,
cortou os cabelos, travestiu-se de homem e foi lutar na Guerra da
Independência.
Mas foram necessários quase 170 anos para
que a participação das mulheres fosse oficializada por meio de leis: em 1980 na
Marinha, um ano depois na Aeronáutica e somente em 1989 no Exército.
Ao longo do século 20, o gênero feminino
foi abrindo espaços de atuação na sociedade, principalmente em áreas liberais
como artes, ciência, educação e comércio. Em setores mais ortodoxos e com
arraigada cultura machista, como as Forças Armadas, a participação das mulheres
foi tardia, e não apenas ainda é pequena como muitas sofrem com preconceito e
assédio.
A partir do levantamento de dados do
Superior Tribunal Militar, reportagem da Folha revela que, desde
2018, foram abertas
88 investigações de casos de assédio e importunação sexual. Dessas,
56 viraram ações penais. De 2022 a julho deste ano, foram 29 denúncias —uma
média de 3 a cada 2 meses.
São episódios inaceitáveis de flertes
inadequados, contato físico não autorizado e até mesmo ataques perpetrados por
colegas de caserna. Além do impacto psicológico causado pelos assédios, praças
e oficiais precisam lidar com preconceito durante as apurações.
Um caso particularmente inquietante foi o
da sargento que relatou um ataque e acabou sendo acusada pelo Ministério
Público Militar de denunciação caluniosa.
Artur Vidigal de Oliveira, ministro do STM
que arquivou a denúncia contra a militar, atestou em seu voto a má condução da
sindicância e do inquérito policial militar que questionaram o comportamento
sexual da sargento: "É de
uma tentativa assombrosa de se culpar a vítima do assédio por ela
sofrido".
Por óbvio práticas nefastas de assédio e
importunação sexual não são exclusividade das Forças Armadas, mas a instituição
precisa criar protocolos de investigação que protejam as vítimas e canais de
denúncia seguros, como vem se tornando comum na iniciativa privada e em órgãos
públicos.
A abertura de uma Ouvidoria da Mulher no
Ministério Público Militar, em março do ano passado, para receber denúncias de
assédio é, portanto, iniciativa importante.
As Forças Armadas têm apenas 10% de mulheres na Marinha, 6% no Exército e 21% na Aeronáutica, mas todas merecem respeito nos seus locais de trabalho e amparo para denunciar abusos.
Emenda parlamentar é do jogo democrático
O Estado de S. Paulo
Emenda não é propina nem modo sujo de fazer
política. É instrumento democrático de distribuição do poder. O problema é sua
perversão, como no orçamento secreto
É do jogo democrático a distribuição de
emendas parlamentares por parte de um governo para a formação de sua base no
Congresso, como se viu antes da votação da reforma tributária, semana passada,
na Câmara. Esse mecanismo de recompensa não tem rigorosamente nada de
antirrepublicano, até porque os recursos das emendas não vão para o bolso dos
parlamentares. Eles são destinados às finalidades indicadas pelo parlamentar,
que responderá politicamente por isso.
Emenda parlamentar não é pagamento de
propina. É dinheiro público destinado a finalidades públicas. A diferença da
emenda parlamentar consiste apenas no fato de que, em vez de ser o Executivo a
indicar sua destinação concreta, é o parlamentar quem o faz. É equivocado,
portanto, tratar a priori a distribuição de emendas como um modo sujo de fazer
política. Mais do que ingenuidade, essa visão denotaria desconhecimento sobre a
própria política, que não se resume à discussão de ideias e propostas, mas
envolve decisões sobre onde e como gastar o dinheiro público. Partilhar o poder
é também dividir essas decisões.
Não há rigorosamente nenhum problema em que
parte dos recursos públicos tenha sua destinação definida por parlamentares, e
não pelo Executivo. Trata-se de configuração institucional própria dos regimes
democráticos, nos quais não existe Poder absoluto. O Legislativo não apenas
aprova a lei orçamentária, autorizando os gastos, como define a destinação
concreta de parte dos recursos. Entre outros benefícios, essa sistemática
permite a descentralização decisória e a proximidade com as necessidades e
interesses da população. Por exemplo, muitas emendas parlamentares são
dedicadas às Santas Casas de Misericórdia, à construção e reforma de escolas ou
à iluminação e pavimentação pública.
O problema das emendas parlamentares está
em sua perversão, como ocorre com o chamado orçamento secreto, criado no
governo Bolsonaro. Não há transparência no procedimento relativo às emendas de
relator (RP9), no qual não se sabe qual parlamentar indicou o destino da verba.
Assim, o eleitor fica impedido de fazer a indispensável responsabilização
política de seus representantes no Congresso. A população tem o direito de
saber sobre a atuação concreta de cada parlamentar, para premiá-lo ou para
punilo nas urnas das eleições seguintes. Ao mesmo tempo, essa opacidade
estimula o mau uso dos recursos, por ineficiência, atendimento de interesses
escusos ou mesmo desvio de verbas.
A falta de transparência no uso de recursos
públicos é causa de muitos problemas. Precisamente por isso, ela é incompatível
com o Estado Democrático de Direito. No fim do ano passado, o Supremo Tribunal
Federal (STF) reconheceu a inconstitucionalidade do orçamento secreto. A Corte
não declarou que as emendas parlamentares são inconstitucionais. E sim que as
emendas RP-9, em razão da ausência de identificação do proponente e da
opacidade sobre seu destinatário, violam os princípios constitucionais da transparência,
da impessoalidade, da moralidade e da publicidade. Infelizmente, apesar da
orientação do STF, continua não havendo plena transparência na distribuição de
várias emendas, o que merece a mais firme reprovação. Cumprimento de decisão
judicial não é algo optativo, mas um dever.
Outro ponto que merece atenção diz respeito
ao valor das emendas parlamentares. Não faria sentido, por exemplo, que boa
parte dos recursos públicos tivesse sua destinação definida pelos deputados e
senadores, e não pelo governo. O Executivo é o gestor, por excelência, do
orçamento público. No entanto, nos últimos anos, em razão de vários fatores –
entre eles, a falta de disposição do presidente Jair Bolsonaro em governar –, o
Congresso ampliou consideravelmente os valores destinados às várias emendas
parlamentares. Isso é um problema sério.
Há muitas correções a serem feitas nas
emendas parlamentares. Mas, para tanto, o primeiro passo é compreender seu
funcionamento e seus objetivos, sem criminalizá-las.
Profissões incompatíveis com a política
O Estado de S. Paulo
Tornou-se frequente o uso de instituições
de Estado para fins eleitorais. Proposta de quarentena para policiais é
positiva. O mesmo deve valer para juízes, procuradores e militares
O diretor-geral da Polícia Federal (PF),
Andrei Rodrigues, disse que vai propor ao Ministério da Justiça, para que
depois seja apresentado ao Congresso, projeto de lei para proibir a filiação
partidária de policiais federais e para instituir uma quarentena de pelo menos
dois anos para candidaturas políticas. As duas medidas são muito positivas,
protegendo a instituição de desvirtuamentos e partidarismos em sua atuação.
“Quem quiser fazer política partidária está no lugar errado”, afirmou, com
inteira razão, o diretor-geral da PF, em entrevista ao jornal O Globo.
Nos últimos anos, viu-se no País uma
profusão de candidaturas de policiais, que utilizaram sua posição pública e o
prestígio da PF para fins político-partidários. “Infelizmente, a instituição
foi usada várias vezes”, reconheceu Andrei Rodrigues. Trata-se de um problema
sério. A PF existe para servir o interesse público, de acordo com as
finalidades fixadas na lei. Seu trabalho não pode estar sujeito a
interferências político-partidárias, o que prejudicaria a qualidade de suas
atividades e a sua autoridade junto à população.
Nesse sentido, é louvável outra iniciativa
da PF, que pode parecer de menor alcance, mas é muito significativa: a
regulação do uso do símbolo da instituição nas redes sociais para fins pessoais
e atividades não ligadas à PF. Não se pode permitir o uso da imagem de uma
instituição pública para interesses particulares.
É preciso reconhecer que o mesmo desafio da
polícia está presente em outras instituições de Estado. Três são os setores
que, devendo estar distantes da política, sofreram, nos últimos anos, várias
tentativas de uso eleitoral: as Forças Armadas, o Judiciário e o Ministério
Público.
Nos três casos, a Constituição já proíbe o
exercício de atividade político-partidária. Em relação ao Ministério Público, o
texto original dizia “salvo exceções previstas na lei”. No entanto, a reforma
do Judiciário de 2004 excluiu a possibilidade de a lei fixar exceções. Assim
como os juízes, os membros do Ministério Público não podem exercer atividades
político partidárias.
No caso das Forças Armadas, a Constituição
confere um tratamento peculiar. “O militar, enquanto em serviço ativo, não pode
estar filiado a partidos políticos”, diz o art. 142, § 3.º, V. No entanto, o
art. 14, § 8.º, estabelece que, atendidas determinadas condições, “o militar
alistável é elegível”. Ou seja, ao contrário do que ocorre com o restante da
população, os militares da ativa podem ser candidatos às eleições sem que
estejam filiados a partidos políticos.
Nada disso é bom para o funcionamento do Estado
Democrático de Direito. Referindo-se à candidatura de policiais federais, o
diretor-geral da PF disse que ela “cria um desequilíbrio do sistema
democrático”, ao permitir “que o candidato se projete e use a instituição para
proveito próprio”. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao Judiciário, ao
Ministério Público e às Forças Armadas. Não basta proibir filiação partidária.
É necessário que haja uma quarentena para candidaturas de juízes, procuradores,
militares e policiais, de forma a assegurar uma distância mínima entre a função
pública e a atividade eleitoral, evitando o conflito de interesses.
Existem, no Congresso, várias propostas de
quarentena para determinadas categorias do funcionalismo público. Por exemplo,
o projeto do novo Código Eleitoral – que foi aprovado pela Câmara em 2021 e
está em tramitação no Senado – prevê a necessidade de desligamento do cargo
quatro anos antes do pleito para juízes, membros do Ministério Público,
policiais federais, rodoviários federais, policiais civis, guardas municipais,
militares e policiais militares. Trata-se de medida oportuna, que evita a
contaminação das funções públicas por interesses político-eleitorais.
A exigência de quarentena não viola a
liberdade política. É antes um atestado de que a autonomia individual e suas
consequências são efetivas. Quem escolheu ser juiz, militar, policial ou membro
do Ministério Público escolheu não ser político.
Arenas de guerra
O Estado de S. Paulo
Ir a um estádio implica risco de morte.
Poder público e clubes de futebol devem agir para acabar com a barbárie
Estádios de futebol se tornaram zonas de
guerra. Hoje, assistir aos jogos in loco implica risco de morte. É vergonhoso
que o País tenha chegado a esse estado de barbárie sob o beneplácito do poder
público e a leniência dos clubes. Só neste ano, oito pessoas já morreram em
decorrência da pulsão homicida de indivíduos que apenas se transvestem como
torcedores para escamotear sua verdadeira índole criminosa.
A vítima mais recente dessa guerra entre
gangues foi a palmeirense Gabriela Anelli, de 23 anos. A jovem foi atingida por
um estilhaço de uma garrafa de vidro arremessada por um torcedor do Flamengo
contra torcedores do Palmeiras no entorno do Allianz Parque, na noite de sábado
passado. Gabriela iria assistir ao jogo entre os dois times, válido pelo
Brasileirão, mas nem sequer teve tempo de entrar no estádio, apanhada pela
confusão nos arredores.
A Polícia Militar de São Paulo agiu
rapidamente nesse caso e prendeu o suspeito de atingir Gabriela em flagrante.
Por determinação da Justiça, Leonardo Felipe Xavier Santiago, de 26 anos, está
preso preventivamente. Mas, em geral, nesses episódios de violência no futebol,
cada vez mais frequentes e brutais, prevalecem a impunidade e o esquecimento –
a não ser, é claro, para as famílias das vítimas e seus amigos enlutados.
O Estado já foi leniente demais com tanta
barbaridade. Há muito o poder público tem deixado de adotar medidas mais
severas do que simplesmente proibir, por exemplo, que duas torcidas rivais
frequentem o mesmo estádio, a bem da verdade um atestado de sua incompetência
para garantir a segurança dos torcedores. Igualmente, nada adianta, como se viu
no Allianz Parque, erguer barreiras físicas para separar as hordas de bárbaros
que saem às ruas dispostas a matar ou morrer supostamente em nome de seus
clubes.
É tempo de punições duras e exemplares
contra criminosos que apenas fingem ser torcedores e contra os clubes de
futebol, que não raro mantêm relações umbilicais com as torcidas organizadas,
muitas das quais verdadeiras quadrilhas que servem mais de guarida para
delinquentes do que agremiações de apoio aos times.
O futebol, como já dissemos neste espaço a
propósito de reiteradas manifestações de racismo nos estádios, não é um mundo à
parte; as emoções suscitadas pelo esporte nem remotamente autorizam
comportamentos tipificados como crime em qualquer país civilizado.
É dever do Estado ser incisivo na aplicação
das leis, punindo exemplarmente os envolvidos em casos de violência, desde o
banimento dos estádios até a prisão. Os clubes, por sua vez, também devem
assumir sua parcela de responsabilidade e colaborar na identificação e exclusão
de indivíduos violentos que integram suas torcidas, sob pena de multa, perda de
pontos e até exclusão de campeonatos, com todos os reveses esportivos e
financeiros que isso implica. Somente assim será possível reverter um quadro
marcado pelo medo e pela desesperança.
Estado e sociedade precisam se unir para fazer dos estádios novamente locais de celebração e confraternização, onde impere a rivalidade saudável do futebol, não a barbárie.
Fortalecer o ECA ainda é desafio
Correio Braziliense
Um levantamento da Fundo das Nações Unidas
para a Infância (Unicef) mostra que 51% das crianças não têm todos os direitos
assegurados e 19% sofrem graves violações de direito
Amanhã, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) completa 33 anos com dados que permanecem alarmantes sobre a
situação dos brasileiros nessas faixas etárias. Um levantamento da Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostra que 51% das crianças não têm
todos os direitos assegurados e 19% sofrem graves violações de direito.
Criado para assegurar os direitos das
crianças e dos adolescentes à vida, à alimentação, à educação, à saúde,
aolazer, à profissionalização, à cultura, enfim, à dignidade, à liberdade e à
convivência familiar, o ECA é referência em todo o mundo, inspirando pelo menos
15 legislações na América Latina, mas, proporcionalmente, os desafios são
similares.
De acordo com o Fórum de Segurança Pública,
de 2022, 61,3% das vítimas de estupro no Brasil têm até 13 anos, o que
corresponde a mais de quatro meninas nessa faixa etária estupradas por hora.
Quase 80% (79,6%) dos abusos ocorreram dentro de casa e 82,5% dos abusadores
eram conhecidos das vítimas. Há quantos anos essas estatísticas são
divulgadas...
É verdade também que, ao longo de mais de
três décadas de estatuto, o Brasil registrou a diminuição do trabalho infantil,
da mortalidade infantil, do número de crianças em situação de rua, somado ao
aumento dos índices de acesso, permanência e aprendizagem da educação
fundamental, melhora da convivência familiar e comunitária e estruturação,
organização e atuação do Sistema de Garantia de Direitos (SGD).
Em 2016, a Lei nº 13.257, denominada de
Marco Legal da Primeira Infância, fez mudanças no ECA, reforçando um conjunto
de ações voltadas à promoção do desenvolvimento infantil, desde a concepção até
os seis anos. O Marco coloca a criança dessa faixa etária como prioridade no
desenvolvimento de programas, na formação de profissionais e na formulação de
políticas públicas, planos e serviços.
Mas os desafios são gigantescos. A alta
letalidade infantojuvenil, a elaboração de uma lei geral e a atuação
qualificada, estruturada e reconhecida dos Conselhos Tutelares, o aumento da
proteção das violências (física, psicológica, sexual e institucional), as
diferentes formas de agressões orquestradas pelo ambiente digital, sem o devido
aparelhamento dos órgãos governamentais, a necessidade de fortalecer instâncias
como o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e o Orçamento da
Criança e do Adolescente (OCA) e as políticas para esses segmentos da
sociedade.
Outros obstáculos são a piora da saúde
mental de adolescentes, a desigualdade social, o desamparo de crianças
migrantes e a proteção digital — sendo essa última uma das maiores preocupações
do ChildFund Brasil, entidade que atua em sete estados brasileiros (Bahia,
Ceará, Goiás, Minas Gerais, Paraíba, Piauí e São Paulo).
É mais que urgente um sistema integrado, com a participação de todos os estados da Federação e, consequentemente, o fortalecimento de instituições engajadas na proteção dos direitos da criança. Caso contrário, nos próximos anos, o ECA continuará no âmbito das ideias.
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