O Estado de S. Paulo
Quando quem tira proveito da injustiça se destaca, ao contrário de quem nada ganha sendo justo, é preferível o delírio dos lunáticos a confiar na existência de alguma ordem mundial
Há nações que preparam cuidadosamente seus
erros. Numa ambivalência congênita de estratégias incompatíveis para enfrentar
reveses, os Estados não se equilibram bem entre poder e legitimidade. Não
conseguem afetar os cálculos dos usuários da criminalidade e diminuir a
confiança que os violentos têm no seu sucesso. A violência brota sem esforço
como coisa fixa. As ações por mudança e a pedra bruta da realidade são duas
imagens que não se fundem a ponto de uma superar a outra. Ordem e desordem são
dois lados da mesma moeda. Muitas vezes com a colaboração e a negligência das
forças de segurança dos governos, permanece vago o fim da insegurança crônica
em muitos países.
A mexicana Colima, de 330 mil habitantes, é a cidade mais violenta e insegura do mundo. O México tem as sete primeiras cidades no ranking em que a vida humana vale pouco ou não vale nada. O Brasil é o segundo país com mais cidades violentas. EUA, Colômbia, África do Sul, Honduras, Porto Rico, Equador e Jamaica fornecem as demais da lista das 50 cidades onde os criminosos são mais eficientes que o Estado. Os dados são da ONG mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal.
Isso faz lembrar a atualidade daquele
cinquentão erudito e magro como seu cavalo se fazer acompanhar de um camponês
simples e gordo, em cima de um burro, vestido com roupa esquisita, segurar uma
lança e sair pelo país em busca de um desígnio incompreensível de reparar a
injustiça e desfazer agravos, proteger os fracos, respeitar as mulheres,
oferecer um horizonte às crianças. Quatro séculos passados de sua publicação –
o mais espetacular livro já escrito em língua espanhola, enlouquecido sonho de
Miguel de Cervantes –, permanece necessário entender as razões de Dom Quixote
de La Mancha.
O mundo histórico em que viveram o autor e
o personagem pode até ter desaparecido em parte, mas o espírito de humanidade
que relata poderia ajudar as pessoas a enfrentarem a frágil espiritualidade em
que vivem as nações.
A baixa qualidade de vida das experiências
nacionais no mundo não é motivo de orgulho para os Estados, nem para seus
governos, diante da maneira como enfrentam as dificuldades econômicas, a
segurança pública, a defesa dos valores humanos e democráticos. Os países não
observam as mesmas regras e normas de conduta, abraçam sistemas econômicos
egoístas e excludentes, ambições territoriais de líderes arcaicos, e permanece
em seu interior a veemente luta interna pelo poder. Sem vocação para a eternidade,
perdidos no tempo e no espaço, não conseguem abraçar as causas de preservação
da natureza e de elevação do respeito aos direitos humanos.
Faltam clarividência e instrumentos capazes
de fazer mudanças que sejam úteis no combate à opressão da necessidade, de
coibir a violência e o desamparo. A espetacular ausência das autoridades e das
instituições nos bairros pobres e desassistidos só é agravada quando elas
aparecem, pois, ao invés de resolver, pioram as coisas pelo desaforo com que
costumam cometer arbitrariedades. Em muitas capitais, a barbaridade vil é
vizinha dos palácios de governo.
Nenhum governo conseguirá perceber o que
realmente importa nem entenderá as circunstâncias dos humildes, inocentes, sem
ênfase, como são a maioria das pessoas. Não há dentro das nações entendimento
elevado sobre como alcançar a justiça para todos. Os sonhos e os ideias
declinam, consumidos por si mesmos diante de uma realidade que não alcançou o
máximo das suas possibilidades virtuosas e não sustenta o otimismo diante do
poder estatal.
A liberdade, ensina o Quixote, é individual
e necessita de um mínimo de prosperidade. Liberdade é felicidade. “A liberdade
é um dos mais preciosos dons que os céus deram aos homens. Sem desfrutar de
liberdade qualquer obrigação, benefício ou favor recebidos são ataduras que não
deixam o ânimo campear livre. Venturoso é aquele a quem o céu deu um pedaço de
pão sem que lhe fique obrigação de o agradecer a outro que o próprio céu!”
Os eventos mundiais configuram a mesma
estratégia política de sempre. O país que não assume uma atitude amistosa com o
outro o leva a procurar aliados em outro parte. A balança do poder das nações
só visa a interesse e não admite que argumentos fundados em princípios éticos
sirvam para ampliar a liberdade de manobra.
A violência estatal em guerra, e a não
estatal dentro do país, ou é por acumulação de poder interno ou extorsão da
sociedade abandonada. A ambivalência de falar em liberdade sem assegurá-la
separa poder e princípios. Boa vontade e barganha são ilusões, fazer pela
metade não é o mesmo que fazer o necessário. Sem falar do domínio digital, que
já derrotou o Estado no campo psicológico – aplicativos tomaram o lugar dos
governos no inconsciente humano.
Tocar a vida, roer o osso, ser impertinente. Quando quem tira proveito da injustiça se destaca, ao contrário de quem nada ganha sendo justo, é preferível o delírio dos lunáticos a confiar na existência de alguma ordem mundial. Não se trata de reatualizar o passado. É preciso saber lutar pela harmonia no mundo para espantar o pesadelo da desordem global que torna Dom Quixote atual.
*É sociólogo.
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