O Estado de S. Paulo
O Senado é a casa dos Estados e o revisor das decisões da Câmara. Por isso, não se pode eximir de descartar argumentos insustentáveis contra a reforma
A reforma tributária aprovada pela Câmara é
a mudança estrutural mais relevante desde a restauração da democracia. Livrará
o País do manicômio da tributação do consumo, causa maior da
desindustrialização precoce e da armadilha de baixo crescimento de que
padecemos. Acarretará ganhos de produtividade que restaurarão a competitividade
dos produtos e serviços, elevando o potencial de crescimento da economia e da
geração de emprego e renda. É um grande momento para o Brasil.
Poderia ter sido melhor. A força de grupos de interesse diminuiu sua qualidade. Em vez da adoção da alíquota única prevista no texto original da PEC 45, que prevalece nas versões mais eficientes do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), as reduções da alíquota básica beneficiarão essencialmente as classes mais abastadas. Não há razão econômica ou social para justificar as exceções. Esse foi o preço a pagar, reconheço, para aprovar a reforma. Mesmo assim, há motivos de sobra para festejar sua aprovação.
Ocorre que a epopeia ainda não terminou.
Precisamos ficar atentos à sua tramitação no Senado. Novas exceções estão à
espreita. A pior seria a submissão aos apelos de governadores e prefeitos –
apoiados por tributaristas – em prol da autonomia para estabelecer as regras do
imposto em cada Estado ou município. Isso restabeleceria o caos que hoje
impera, especialmente no ICMS. O IVA precisa ser uniforme em todo o território
nacional. É assim que funciona na grande maioria dos 174 países onde vigora o
modelo, incluindo todas as nações ricas que o adotam.
Países federados que implementaram o IVA
enfrentaram o dilema entre manter a autonomia das esferas de governo ou
renunciar a ela em benefício da prosperidade, levando em conta seu efeito na
expansão da atividade econômica e da riqueza do país. A Alemanha, uma das
federações mais fortes do mundo, escolheu a prosperidade. Seus Estados não
gozam de autonomia para dispor sobre regras tributárias. Afinal, a função
básica do Estado moderno e da democracia é propiciar as condições para o
crescimento sustentado da renda per capita e do bem-estar da sociedade.
Alguns tributaristas continuam a defender a
autonomia dos Estados e municípios. Afirmam que a reforma destruiria o pacto
federativo. Não percebem que esses entes terão autonomia para fixar a alíquota
do imposto em seus territórios. Há quem sustente que a República de Weimar
enfraqueceu a autonomia dos Estados alemães, o que teria contribuído para a
ascensão do nazismo e de Hitler. Trata-se de uma interpretação que não se
compadece com a história do respectivo período.
Na verdade, Hitler surgiu basicamente das
reparações de guerra que o Tratado de Versalhes (1919) impôs à Alemanha,
derrotada no conflito mundial de 1914-1918. A impossibilidade de cumprir tais
obrigações e a intransigência de alguns dos vencedores em rever a punição,
afora a devastação da guerra, desaguou na hiperinflação dos anos 1920. A
humilhação imposta pelo tratado, a indignação e o empobrecimento do país
contribuíram para a vitória do Partido Nazista nas eleições de 1933, o que
levou à designação de Hitler para o cargo de chanceler (chefe do governo).
A reforma seria, na opinião de alguns, um projeto de poder de Lula com o propósito de subjugar Estados e municípios à vontade do governo e, assim, aumentar a carga tributária. Nessa mesma linha, a reforma teria sido formulada para que a União se apropriasse da arrecadação proveniente da crescente participação dos serviços na economia brasileira, compensando a redução correspondente da indústria, fonte maior das receitas federais. O ex-presidente Jair Bolsonaro buscou mobilizar seu partido, o PL, no sentido de votar contra o texto. “Sou contra a reforma tributária do PT”, disse. Perdeu.
Pela primeira vez, uma profunda mudança
tributária não nasceu de iniciativa do Poder Executivo. A PEC 45 decorreu de
trabalhos do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), uma organização privada sem
fins lucrativos. O texto foi elaborado por um grupo abnegado de especialistas,
incluindo a participação de dezenas de tributaristas, acadêmicos e auditores
fiscais das três esferas de governo que ajudaram a construir a proposta. O
projeto foi assumido pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) em 2019, quando o
presidente da República era Jair Bolsonaro. Ocorreram, então, as primeiras
negociações em torno da PEC 45. Não dá para acreditar que o CCiF e o deputado
tiveram a premonição de que Lula se elegeria em 2022. Por que teriam conspirado
contra os interesses dos Estados, dos municípios e da sociedade?
O Senado é, ao mesmo tempo, a casa dos
Estados e o revisor das decisões da Câmara dos Deputados. Por isso, não se pode
eximir de descartar argumentos insustentáveis contra a reforma. Espera-se que
aprove o projeto, aperfeiçoando-o no que for necessário. Não pode privar o
Brasil do que deve ser um passo gigantesco destinado a assegurar um futuro melhor
para nossos filhos e netos.
*Sócio da Tendências Consultoria, foi
ministro da Fazenda
Um comentário:
Esclarecedor o artigo.
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