Momentos de crise podem ser ótimos para momentos de reflexão e aperfeiçoamento (às vezes, reinvenção) institucional. No âmbito do direito constitucional, não é raro que constituições gestadas em momentos de ruptura, algumas feitas até mesmo às pressas, se revelem duradouras e garantidoras de uma solidez institucional inesperada.
As intensas manifestações que ocorreram em junho, e a desestabilização política que se seguiu e que, de certa forma, ainda perdura, poderiam ter servido como início de um desses momentos de reflexão profunda. É certo que alguns dos tópicos da fragmentada pauta dessas manifestações - como transporte, saúde e educação - não diziam respeito apenas à reflexão sobre instituições. Mas não há dúvida: um recado claro veio das ruas e ele descortina a insatisfação generalizada com as instituições representativas brasileiras. Em alguns momentos mais tensos, essa insatisfação incluiu também uma certa rejeição à própria ideia de democracia representativa exercida por meio de partidos políticos e um desejo, ainda que desarticulado, de se fazer ouvir sem necessitar dos partidos como intermediários.
Depois de alguns dias sem reação, o governo abriu o baú de propostas empoeiradas e sugeriu uma reforma política a ser feita por uma miniconstituinte e a convocação de um plebiscito. Em suma, nada de novo.
O governo não tem proposta e a oposição está perdida
O governo até agora preferiu um meta-debate. Em vez de tomar as rédeas do processo (afinal, se há algo que não falta para uma presidente com dezenas de milhões de votos é legitimidade para isso) e de propor soluções, perdeu-se em um "debate sobre como poderia ser o debate", com propostas irrefletidas que duravam de algumas horas a algumas poucas semanas. O momento de dar vazão a uma produtiva reflexão institucional, se não foi ainda perdido por completo, parece estar se esvaindo.
Em uma democracia madura, essa inabilidade para propor novos caminhos seria o terreno ideal para a oposição mostrar que é uma alternativa ao governo. Não foi, contudo, o que vimos nos últimos dois meses. A oposição mostra-se ainda mais perdida do que o governo, e parece não ter proposta alguma.
Do lado do governo, a convocação de um plebiscito foi a ideia que chegou mais longe (e oficialmente, ainda não foi abandonada). Os principais problemas de um plebiscito como esse já são mais do que conhecidos: poucos conseguiriam responder a perguntas técnicas sobre o tamanho das circunscrições eleitorais, a fórmula eleitoral, ou as formas de candidatura.
Mas, mais dos que simples dificuldades técnicas, há uma pergunta mais fundamental a ser feita: será que uma demanda por maior participação popular precisa mesmo ser respondida por meio de um plebiscito sobre detalhes técnicos do sistema eleitoral e partidário? Salvo engano, as perguntas para o plebiscito diriam respeito apenas a alternativas institucionais convencionais, como sistema majoritário x proporcional ou listas abertas x fechadas. Em suma, nada que repensasse de verdade a democracia representativa para o século XXI.
Se o que se quer é maior participação popular nas decisões políticas, mais importante seria discutir como os cidadãos poderiam participar de debates sobre projetos de lei ou como poderiam influenciar na definição da agenda legislativa. Se a tendência crescente é um deslocamento do debate em praça pública para uma arena digital (ainda que, como ficou claro com as manifestações de junho, o debate possa em alguns momentos voltar às ruas), então parece que a participação popular sobre a qual devemos pensar não é aquela de um simples plebiscito que se limita a apenas um dia, com perguntas que poderiam ter sido feitas no fim do século XIX.
Paralelo a isso, deve haver, sim, um fortalecimento das instituições representativas, que claramente têm padecido de um déficit de legitimidade. Nesse ponto, alguns dos recados das ruas parecem ter sido interpretados de forma reducionista. Um slogan recorrente era o "nenhum partido me representa". Entender isso como um réquiem para os partidos é um grande equívoco. Não há rede social que substitua partidos políticos nem arranjo que substitua a democracia representativa. Diante disso, é preciso sobriedade (e um pouco de coragem) para propor uma reforma que tenha como uma das metas fortalecer, e não enfraquecer os partidos. E esse fortalecimento deve vir acompanhado de uma democratização interna das estruturas partidárias.
No entanto, as propostas que mais têm surtido efeito são aquelas que vão na direção oposta, a de minar os partidos e personalizar ainda mais o cenário político. A principal dessas propostas é a de adoção de alguma forma de eleição majoritária distrital. Esse tipo de eleição personaliza as disputas, ajuda a manter feudos eleitorais e distorce a relação de proporcionalidade entre votos e mandatos. Esses são problemas há muito conhecidos pelos estudiosos dos sistemas eleitorais, mas poderiam passar despercebidos em um embate plebiscitário polarizado e acalorado. Seria um enorme retrocesso, mas nem governo, nem oposição, nem boa parte dos articulistas de grandes jornais parecem estar conscientes disso.
A reforma de que precisamos, portanto, muito provavelmente não sairá de opções simplistas de um plebiscito. Um governo que sabe ouvir as vozes das ruas tem que saber canalizá-las para uma reflexão institucional qualificada. Ou seja: a proposta tem que vir do governo, que, para aprová-la, tem que arregimentar a sua base aliada e assumir os riscos que toda transformação significativa desperta. Passados quase dois meses das primeiras manifestações, nada disso ocorreu. O governo não tem propostas, a oposição não consegue apresentar-se como alternativa, e a janela de oportunidades vai se fechando. Parece que ambos estão torcendo para que isso ocorra o mais rápido possível. Se, nos próximos anos, a população voltar às ruas, não é implausível supor que, mais uma vez, alguém irá propor uma miniconstituinte ou, quem sabe, um plebiscito.
Virgílio Afonso da Silva é professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP
Fonte: Valor Econômico
Nenhum comentário:
Postar um comentário