- Valor Econômico/Eu & Fim de Semana
A facilidade com que se fala em racismo no Brasil revela muita coisa e muita coisa esconde. Melhor seria falar em preconceitos, dos quais o preconceito de cor é apenas uma variante. Preconceito de cor, e não de raça, pois o preconceito de raça envolve muito mais que a cor. Envolve também marcas de origem, intuídas, mas não compreendidas. Num cenário culturalmente difuso, a mesma palavra pode significar coisas opostas.
"Negão" é um apelido e tratamento comum entre amigos da mesma cor ou de cor diferente. Ressalta a diferença, mas o tom da palavra expressa afeto e amizade. Essa palavra, usada por pessoa desconhecida ou hostil, diz o oposto e, provavelmente, pode caracterizar intuito ou disposição racista. O mesmo se dá com o "Branquelo", que pardos e pretos às vezes usam para designar um branco. Conforme a circunstância, evidencia afeto na ironia ou insulto racista, o que só pode ser decodificado por aquilo que não foi dito: o olhar, a expressão do rosto, gestos.
Há alguns dias o IBGE divulgou os dados da PNAD Contínua sobre composição racial da população brasileira: pardos, 46,7%; brancos, 44,2%; pretos, 8,2%. Em relação a anos anteriores, o número de pardos e o de pretos aumentou; o número de brancos diminuiu. Dados baseados em autoidentificação, é possível que o brasileiro esteja se tornando mais consciente da questão da cor e mais cuidadoso na identificação da cor de sua pele. Os dados, porém, mostram que os pardos não se reconhecem no grupo dos negros, uma confusão frequente nas disputas ideológicas sobre raças no Brasil.
Este é um país de mestiços. Durante os 388 anos que durou a escravidão negra e durante os 257 anos que durou a escravidão indígena, houve acentuada mestiçagem de etnias negras, as de origem africana, entre si, e de etnias indígenas entre si, as dos pardos. Como houve, também, no cativeiro, mestiçagem de índios e negras, mestiçagem de escravas e índios administrados. Era uma forma de ampliar a escravidão: índios, ao procriarem com uma negra escrava, geravam filhos escravos. Isso valia, também, para os brancos que engravidavam negras escravas.
O ventre cativo da mulher negra era a fonte jurídica da escravidão, o que não acontecia com a mulher indígena, de condição diferente da do negro mercadoria. Gerava filhos escravos de índios em cativeiro que não eram, porém, mercadoria e coisa: não podiam ser vendidos nem comprados. E, mestiçagem de brancos e índias, pais dos mamelucos que foram a cara do brasileiro desde o início da conquista.
As duas categorias sociais que fundamentaram a cultura brasileira da discriminação pela cor, a dos pardos, para os índios, e a dos negros, para os africanos, foram, na verdade, inventadas por brancos. Nem negros nem índios se identificavam como tais ao longo de toda a longa história do escravismo brasileiro. Os nossos pardos, brancos e pretos de hoje frequentemente são mestiços, ainda que no interior da mesma categoria de cor.
Pero Vaz de Caminha, em sua carta ao rei de Portugal, diz que os primeiros seres humanos da nova terra foram vistos no dia 23 de abril de 1500, quinta-feira, de manhã. "Eram pardos", explicou ele, que assim acabara de fazer o batismo racial dos índios, provavelmente pataxó. "Pardo" indicava um critério branco para definir a diferença entre os brancos que chegavam e os nativos que já ali estavam.
Os índios brasileiros nunca se identificaram como pardos. Só tardiamente, já destribalizados, passaram a assumir essa identificação para diferençar-se também dos negros. Em 2014, no julgamento da questão das cotas raciais na Universidade de Brasília, compareceu ao STF e pediu a palavra para falar na condição de "amici curiae" um movimento organizado do Norte do Brasil, autoidentificado como de pardos, para questionar a inclusão demográfica dos pardos na categoria dos negros, o que alargaria as cotas destes últimos em prejuízo dos primeiros.
Os próprios pretos viveram, durante séculos, o drama da usurpação de identidade pelo fato de serem como tais definidos pelos brancos. Do lado dos senhores de escravos, havia nítida consciência de que a categoria preto escamoteava o que era etnicamente próprio das populações escravizadas. Na hora de definir preços, aí, então, com facilidade traficantes e fazendeiros identificavam o traço étnico original do cativo. É que no mercado uns valiam mais e outros valiam menos, em função do que na cultura de origem os tornava mais dóceis e mais adaptáveis ao trabalho do eito.
Na diversidade dos tons de preto, os senhores de escravos viam outra coisa: a maior competência para o trabalho em condições adversas. A escravidão se foi, e a cor ficou como rótulo da subalternização da pessoa.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).
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