domingo, 23 de agosto de 2020

Mensagem tranquilizadora – Editorial | O Estado de S. Paulo

STF disse aos brasileiros, em especial aos saudosos da arapongagem, que aqui vige Constituição que não autoriza práticas obscuras

São tempos estranhos estes em que atributos comezinhos da democracia, como a liberdade de expressão e o direito de reunião pacífica, precisam ser reassegurados como nunca antes tiveram de ser desde a redemocratização do País, lá se vão 35 anos. Na quinta-feira passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que órgãos da administração pública, em particular o Ministério da Justiça, não podem produzir “dossiês” ou “relatórios” contendo dados sobre a vida pessoal e as atividades políticas de cidadãos que simplesmente se opõem ao governo do presidente Jair Bolsonaro, sabe-se lá para que finalidade. Para agraciá-los não é.

A Corte Suprema nada mais fez do que dizer aos brasileiros em alto e bom som, especialmente aos saudosos da arapongagem, que aqui vige uma Constituição que não autoriza práticas obscuras que devem permanecer trancadas nos porões de um passado de triste memória. Disse o STF que quaisquer atos praticados por quem quer que seja contra o texto da Lei Maior serão devidamente repelidos por aqueles que têm o dever institucional de resguardá-lo.

Do ponto de vista jurídico, a decisão foi absolutamente correta. Mais importante, porém, foi a mensagem tranquilizadora que o STF transmitiu à Nação. Arreganhos autoritários não passarão incólumes pelo crivo dos ministros. “Não compete a órgão estatal nem a particulares fazer dossiê contra quem quer que seja ou instalar procedimento de cunho inquisitorial. O Estado não pode ser infrator. O abuso da máquina estatal para colheita de informações de servidores contrários ao governo é um desvio de finalidade”, disse a ministra Cármen Lúcia, relatora da ação.

No dia 24 de abril, como foi amplamente divulgado a partir da revelação do portal UOL, um servidor da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça, talvez para ficar bem aos olhos do presidente Jair Bolsonaro, aproveitou o vácuo de liderança na pasta entre a saída do ex-ministro Sérgio Moro e a posse do ministro André Mendonça, ocorrida no dia 27 daquele mês, e começou a produzir o tal “dossiê” sobre 579 servidores públicos federais e estaduais que seriam integrantes de movimentos antifascistas.

A bem da verdade, chamar de “dossiê” um apanhado de publicações nas redes sociais feitas pelos alvos dessa espécie de Stasi tupiniquim é uma baita concessão. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes disse que o conteúdo do documento está mais para “fofocalhada” do que para um relatório de inteligência. Isso não torna o episódio menos grave, evidentemente. A mera existência de tal prática em um dos mais importantes Ministérios da Esplanada é grave por si só.

Agora cabe ao ministro André Mendonça dizer claramente ao País em que circunstâncias o tal “dossiê” foi elaborado na pasta sob seu comando. O comportamento do ministro tem sido dúbio, para dizer o mínimo. Primeiro, ele negou a existência do documento. Depois, admitiu sua existência, afirmando ter tomado conhecimento dele “pela imprensa”. Ainda assim, recusou-se a cumprir uma ordem da ministra Cármen Lúcia para que o “dossiê” fosse enviado à Corte. O ministro Mendonça alegou que sua divulgação “constitui circunstância apta a tisnar a reputação internacional do País e impingir-lhe a pecha de ambiente inseguro para trânsito de relatórios estratégicos”, o que não faz sentido.

A petulância do ministro da Justiça não passou em branco. Em seu duro voto, a ministra Cármen Lúcia não disse, mas só faltou dizer que André Mendonça faltou com a verdade. “Existe ou não existe dossiê?”, questionou a ministra. “Se não existe, bastaria dizer que não existe.” Mas o dossiê apareceu.

Os ministros do STF deixaram claro no julgamento que uma coisa é a produção de relatórios de inteligência, fundamentais para o processo de tomada de decisão em qualquer governo do mundo. Outra, bem distinta, é o uso da força do Estado para bisbilhotar os opositores do governo. Resta ver se este tipo de prática cessará, como deve, ou se os arapongas apenas passarão a ser menos mambembes.

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