Existe, porém, uma crise ainda mais profunda, que tem consequências devastadoras sobre a (in)capacidade de lidar com as múltiplas crises que envenenam nossas vidas: a ruptura da relação entre governantes e governados. A desconfiança nas instituições, em quase todo o mundo, deslegitima a representação política e, portanto, nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum. Não é uma questão de opções políticas, de direita ou esquerda. A ruptura é mais profunda, tanto em nível emocional quanto cognitivo. Trata-se do colapso gradual de um modelo político de representação e governança: a democracia liberal que se havia consolidado nos dois últimos séculos, à custa de lágrimas, suor e sangue, contra os Estados autoritários e o arbítrio institucional. Já faz algum tempo, seja na Espanha, nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil, na Coreia do Sul e em múltiplos países, assistimos a amplas mobilizações populares contra o atual sistema de partidos políticos e democracia parlamentar sob o lema “Não nos representam!”. Não é uma rejeição à democracia, mas à democracia liberal tal como existe em cada país, em nome da “democracia real”, como proclamou na Espanha o movimento 15-M. Um termo evocador que convida a sonhar, deliberar e agir, mas que ultrapassa os limites institucionais estabelecidos.
Dessa rejeição, em outros países, surgem lideranças políticas que, na prática, negam as formas partidárias existentes e alteram de forma profunda a ordem política nacional e mundial. Trump, Brexit, Le Pen, Macron (coveiro dos partidos) são expressões significativas de uma ordem (ou de um caos) pós-liberal. Assim como o é a total decomposição do sistema político do Brasil, país fundamental da América Latina. Ou de um México vítima do narcoestado. Ou de uma Venezuela pós-Chávez em quase guerra civil. Ou da democracia sul-coreana, com a destituição popular da corrupta presidente Park Geun-hye, entregue ao feitiço de Choi Soon-sil, a líder de uma seita ocultista. Ou de um presidente das Filipinas que pratica a execução sumária como forma de resolver a insegurança. Dessas crises institucionais surgiram na última década algumas revoluções populares que procuraram articular uma nova relação entre representação parlamentar e representação social, particularmente na Bolívia e no Equador. Mas em boa parte do mundo, em especial na China e na Rússia, consolidaram-se regimes autoritários que se constituem alternativas eficazes à democracia liberal. Ao mesmo tempo, o Oriente Médio é governado por teocracias (Irã, Arábia Saudita) ou por ditaduras (Egito, Síria), excetuando Israel, que está em guerra permanente com os territórios ocupados. E na Europa, na última década, produziu-se uma verdadeira reviravolta eleitoral em favor de partidos nacionalistas, xenófobos e críticos em relação aos partidos tradicionais que dominaram a política por meio século. Além do Brexit no Reino Unido e do colapso dos partidos franceses ante o macronismo, que analiso neste livro, recordarei a porcentagem de votos de partidos identitários e antiestablishment no período 2013-17: França, 21,3%; Dinamarca, 21,1%; Suécia, 12,9%; Áustria, 20,5%; Suíça, 29,4%; Grécia, 12%; Holanda, 13%. E partidos xenófobos governam, sozinhos ou em coalizão, na Polônia e na Hungria, na Noruega e na Finlândia. Na Itália, enquanto escrevo estas linhas, pesquisas apontam em primeiro lugar, para as eleições de 2018, o Movimento 5 Estrelas, de ideologia ambígua, mas claramente antiestablishment. Na Alemanha, a rocha da estabilidade europeia, Angela Merkel perdeu oito pontos percentuais nas eleições de setembro de 2017 e os social-democratas se reduziram a 20%, enquanto os neonazistas da Alternativa para a Alemanha obtiveram quase 13% e se tornaram a terceira força política. Em consequência, acabou-se a “grande coalizão” na Alemanha, com a retirada dos social-democratas de sua sempiterna e catastrófica aliança com a direita, surgindo um horizonte instável de difíceis alianças com o restante do espectro político, fracionado entre liberais, verdes e esquerda. Na raiz desse novo panorama político europeu e mundial, está a distância crescente entre a classe política e o conjunto dos cidadãos.
Este livro fala das causas e consequências
da ruptura entre cidadãos e governos e da mãe de todas as crises: a crise da
democracia liberal, que havia representado a tábua de salvação para superar
naufrágios históricos de guerras e violência. Não oferecerei soluções, porque
não as tenho. E porque são específicas de cada país. Mas, se a crise política
que constato tem uma dimensão global, acima das características próprias de
cada sociedade, teremos de pensar que se trata do colapso gradual de um modelo
de representação. Um colapso que, se acentuado, nos deixaria por ora sem instrumentos
legítimos para resolver coletivamente nossos graves problemas, no exato momento
em que recrudesce o furacão sobre nossas vidas
*Capitulo do livro “Ruptura – A crise da democracia liberal”, p.7, Zahar, 2018.
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