Folha de S. Paulo
Quem restringe guerra a conflito entre
Estados acha excessivo identificá-la à violência de milícias, terroristas e
neonazistas e não vê que hater é hoje identidade sociopolítica
No anseio necropolítico do Bozo, a ditadura militar deveria ter matado 30 mil pessoas. Não é bizarrice, nem número aleatório, é o total estimado de mortos por Pinochet. Não se conectou essa intenção dolosa ao descaso com a morte de brasileiros durante a pandemia. Mas uma linha de sentido contínua passa pelo caos golpista até o negacionismo ecocida. A explicação cândida, em look colete laranja, do governador gaúcho para a falta de prevenção da catástrofe apesar dos avisos, é uma derivada: "Tínhamos outras prioridades". Entre elas, 50 atos ofensivos ao meio ambiente.
A ninguém ocorreria associar a isso o
conceito de guerra civil. Uma exceção é o alemão Hans Magnus
Enzensberger, que vê na luta travada em maior proximidade física
"a forma original de todos os conflitos coletivos" (em "Guerra
Civil"). Originalmente, o outro odiado é o vizinho. Para ele,
"enquanto a guerra de Estado clássica tende à monopolização do poder,
fortalecendo o aparelho de Estado acima de todos os níveis, na guerra civil
existe a ameaça permanente do colapso da disciplina e da desagregação das
milícias em bandos armados que operam segundo os próprios desígnios". Até
as Forças regulares incorrem no risco.
Quem restringe "guerra" a conflito
entre Estados pode achar excessivo identificá-la ao processo endógeno de
violência sistemática. Passa despercebido o fio conceitual que atravessa
milicianismo, terrorismos, neonazismos, depredações e formas secundárias de
soberania. O mesmo com os urubus do desastre e das fake
news em meio ao sofrimento coletivo. No front de guerrilhas
digitais, contrapõem-se mentira e ódio à solidariedade popular. Essa é a
"essência" da ultradireita.
O fio essencial é a violência livre de
fundamentações ideológicas, "o caráter autista dos criminosos, assim como
sua incapacidade de distinguir entre destruição e autodestruição" (Enzensberger).
É a guerra civil molecular, travada na trincheira tóxica de uma classe média
desiludida, por pessoas emparedadas demais em si mesmas para olhar ao redor.
Uma antiecologia visceral. Seu amplo espectro expõe o negacionismo climático
como estratégia destrutiva de territorialidade.
Não saber, negar, destruir: em Brasília, duas vândalas idosas,
indagadas sobre o 8 de janeiro, nada sabiam. Vestiam amarelo, mas dispensariam
uniformes, porque o ódio basta como motivação: hater é identidade
sociopolítica. Para o extremismo, inimigos seriam, a depender dos lugares,
imigrantes, ciganos, negros ou movimentos organizativos de minorias. É um novo
sentimento social, pós-sindicalista e pós-fabril, que dispensa reflexões e
verdades, pois se retroalimenta num vácuo afetivo: o ódio de si mesmo e do
outro, seja pessoa ou objeto. Destruir, autodestruindo-se, eis a fórmula da
guerra civil molecular em curso.
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