A coletânea As Esquerdas e a Democracia, organizada por José Antonio Segatto, Milton Lahuerta e Raimundo Santos, é uma importante contribuição para um debate que tem sido imprescindível para a reconstituição do pensamento de esquerda no Brasil e no mundo: como avançar agendas de reformas sociais e econômicas, e, ao mesmo tempo, expandir as instituições democráticas?
A ligação entre democracia e socialismo sempre foi um tema incômodo para as esquerdas. neste centenário da revolução russa, podemos relembrar várias experiências de construção do socialismo que terminaram gerando burocracias despóticas e ideias políticas que desprezaram a importância da democracia e suas instituições.
Por outro lado, onde a esquerda abraçou a democracia, como é o caso da Social-Democracia europeia, o ímpeto revolucionário acabou arrefecido por uma visão hegemônica que, se construiu em estado de Bem-Estar social e favoreceu a moderação na política, por outro lado, há décadas vem apresentando visíveis sinais de estagnação e esgotamento. Como então navegar entre a tentação de instrumentalizar os processos democráticos e, ao mesmo tempo, resistir ao apelo à acomodação vindo do ethos das democracias contemporâneas? E mais: como incorporar certos elementos tradicionais do discurso liberal – como os direitos civis e políticos – e manter a identidade de esquerda, sem render-se à lógica triunfante dos mercados globalizados?
São tais desafios que os textos que compõem As Esquerdas e a Democracia ajudam a enfrentar, ao iluminarem especificamente o caso brasileiro. a escolha por “as esquerdas” no título, ao invés de “a esquerda”, não é um mero detalhe. a diversidade de esquerdas, antes entendida como um problema, agora se torna um incentivo para um debate que não se volta mais para definir quem é a “verdadeira esquerda”, mas para reconstituir o pensamento da esquerda em sua pluralidade.
Fazem parte desta coletânea temas cruciais para esta reconstrução. Basta pensarmos na questão da modernização do estado brasileiro, que envolve a superação da nossa tradicional cultura patrimonialista, a definição de fronteiras mais visíveis entre o público e o privado, e o próprio papel do estado enquanto estimulador do desenvolvimento econômico e social do país. se antes qualquer questionamento do estado, de seu “tamanho” ou funções, era tido como anátema, atualmente tal discussão tornou-se mais que imprescindível nas esquerdas brasileiras.
O futuro político dos partidos políticos da esquerda brasileira é outro tema central abordado nesta coletânea. os dois principais partidos que disputavam a hegemonia no campo da esquerda e da centro-esquerda brasileira, e que se revezaram no poder nas últimas duas décadas, mostram sinais de declínio político. tanto o Partido dos trabalhadores (PT), como o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) cederam à corrupção e a práticas patrimonialistas tradicionais, o que colocou suas identidades em xeque e abriu espaço para um possível protagonismo de outras correntes de esquerda que vierem a surgir no horizonte político brasileiro.
Daí a indagação que perpassa vários textos da coletânea: como evitar que uma esquerda renovada repita a tradicional forma de se fazer política no Brasil? em tempos de polarização política, crise econômica e descrença nos políticos, como os que estamos vivendo atualmente no Brasil, a reflexão empreendida em As Esquerdas e a Democracia certamente contribuirá para o debate sobre o papel que as esquerdas devem desempenhar no cenário político nacional.
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Paulo César Nascimento, professor associado do Instituto de Política da UnB
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