- O Globo
Daqui a duas semanas serão lembrados os 50 anos da “Passeata dos Cem Mil", a bonita jornada durante a qual o Centro do Rio foi tomado por milhares de pessoas que defendiam as liberdades públicas. No chão, marchava-se ao lado de intelectuais e artistas. Do alto dos edifícios choviam papéis picados. Será um momento de doce nostalgia para os septuagenários que viveram aquela tarde.
Numa época em que a democracia brasileira vive a tensão dos radicalismos do século XXI, convém que se revisite aquele dia, embebido nos radicalismos da ditadura. A passeata tomou conta da história de 1968, mas ela foi um crepúsculo. A treva amanhecera horas antes, durante a madrugada, quando um caminhão com 50 quilos de dinamite explodiu diante do portão do QG do II Exército, matando o soldado Mário Kozel Filho e ferindo cinco outros militares.
O atentado foi obra da Vanguarda Popular Revolucionária e nele estiveram dez terroristas. Dias antes, a VPR havia roubado fuzis num hospital militar e o general que comandava a tropa do Exército em São Paulo lançara um desafio infantil: “Atacaram um hospital, que venham atacar meu quartel". Vieram. O motorista do caminhão saltou, o veículo bateu num muro, Kozel foi ver se havia alguém na boleia e a dinamite explodiu.
Oito horas depois, no Rio, a passeata saiu da Cinelândia e percorreu a Avenida Rio Branco. No dia seguinte, todos os grandes jornais noticiaram com destaque os dois fatos. Aos poucos, porém, a lembrança do atentado evaporou, abafada pelo romantismo da manifestação do Rio e pelo silêncio que protege o radicalismo esquerdista da época.
Na passeata, enquanto uma parte dos manifestantes dizia que “o povo unido jamais será vencido", outra, menor, proclamava que “o povo armado jamais será vencido". Seis meses depois, o presidente Costa e Silva baixou o Ato Institucional nº 5, e começou a longa noite da ditadura escancarada.
Passados 50 anos, é mais agradável lembrar a passeata do que o atentado. Nas palavras da militante que estava num carro de apoio, a bomba “não serviu para nada, a não ser para matar o rapazinho". O atentado serviu para estimular radicalismos, influenciando a vida do país, enquanto a passeata ficou como uma boa lembrança, nada além disso. Nada a ver com os comícios de 1984 pedindo eleições diretas. Elas não vieram, mas o povo unido levou o colégio eleitoral a eleger indiretamente o oposicionista Tancredo Neves.
O atentado e a facilidade com que se assaltavam bancos no final da década de 60 deram aos grupos radicais de esquerda uma enganosa sensação de invulnerabilidade. Quatro meses depois, dois dos terroristas que estiveram no ataque ao QG participaram do assassinato de um capitão americano que vivia em São Paulo.
A ditadura respondeu ao surto radical com torturas e mortes. Dos treze militantes que participaram dos ataques ao hospital militar e ao QG, dois foram executados, sete foram presos e três deixaram o país. Só um ficou livre no Brasil, com outro nome.
A VPR e suas congêneres nunca defenderam a ordem democrática. Já os ministros que participaram da reunião do Conselho de Segurança Nacional que baixou o AI-5 exaltaram a democracia em dezenove ocasiões. Ao final, fecharam o Congresso e suspenderam o habeas corpus.
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