domingo, 10 de junho de 2018

Ruy Castro: A morte do Paissandu

- Folha de S. Paulo

Sai a cultura de ideias e entra a dos bíceps e tanquinhos

Agora é definitivo: sai uma cultura de ideias na cabeça e câmeras na mão e entra a dos bíceps e tanquinhos. O cine Paissandu, um dos redutos mais vitais da juventude carioca dos anos 60, cede seu espaço na rua Senador Vergueiro, no Flamengo, para uma academia de ginástica. Não é que um cinema esteja sendo fechado e outro ramo tome o seu lugar. O Paissandu já estava fechado há anos e, como cinema de rua, condenado à morte. Nenhum exibidor se empenhou em ocupá-lo. Mesmo porque —perdão, leitores—, o Paissandu não era mais um cinema. Era uma ideia.

Em seu apogeu, tínhamos de frequentá-lo pelo menos uma vez por semana, para assistir a filmes esnobados pelos grandes circuitos, como os da Nouvelle Vague francesa e demais vagas europeias —“Pierrot le Fou”, de Godard, ficou meses em cartaz em 1968. E, se não fosse por isto, havia as imperdíveis sessões de sábado à meia-noite, programadas por Fabiano Canosa, em que assisti desde os filminhos de Lumière e Méliès a “O Cangaceiro”, de Lima Barreto. Os figurões do Cinema Novo, com Glauber Rocha à frente, iam àquelas sessões e faziam comentários em voz alta.

Os garotos do Paissandu só queriam mudar o mundo —alguns pela luta armada, outros pela revolução sexual e ainda outros pelos filmes de Pasolini. Era a “Geração Paissandu”, a única a aplaudir ou vaiar coadjuvantes, fotógrafos e roteiristas quando seus nomes apareciam na tela. Mas, então, veio o AI-5. O mundo acabou e aquela turma se desfez. Uns foram tratar da vida; outros, de coisa mais séria.

Não tenho moral para lamentar a morte do Paissandu. A partir dos anos 90, só estive nele uma vez, para rever “O Processo”, de Orson Welles. Mas também quase não fui mais a cinemas de qualquer espécie.

Não concordo, mas entendo. Para seus proprietários, o Paissandu, para sobreviver, teria de voltar a ser cinema. Ideias não pagam o IPTU.

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