segunda-feira, 30 de maio de 2022

Demétrio Magnoli: Ucrânia, encruzilhada da Europa

O Globo

‘Seria uma falência moral, que a História condenaria.’ O ministro do Exterior ucraniano, Dmytro Kuleba, referia-se à hipótese de rejeição da candidatura de seu país ao ingresso na União Europeia (UE). Seus alvos implícitos eram o presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, núcleos da resistência à pretensão da Ucrânia. Kuleba tem razão — e interpreta melhor a história da UE que os governantes das duas nações líderes do projeto europeu.

Segundo Macron, “todos nós sabemos que o processo de adesão da Ucrânia exigiria vários anos, provavelmente várias décadas”. Scholz seguiu a mesma linha ao declarar que a Ucrânia não pode se beneficiar de “um atalho”. Os argumentos franceses e alemães embutem uma visão econômico-burocrática sobre a integração europeia.

Scholz apontou a “injustiça” de acelerar o ingresso ucraniano à frente das candidaturas de seis países balcânicos. Para Macron, o “atalho” ucraniano implicaria “reduzir os padrões de acesso” e “repensar a unidade da Europa”.

— Podemos abrir procedimento de acesso para um país em guerra? — indagou o francês, oferecendo sua resposta:

— Acho que não.

Dessa posição, improvisou a proposta de criar uma “Comunidade Política Europeia”, algo como um pátio de espera destinado a candidato como a própria Ucrânia, os países dos Bálcãs ocidentais, a Moldávia e a Geórgia.

A UE é uma comunidade política e um mercado comum, organizados sobre o núcleo de uma união monetária. Mas o conceito que a originou se situa na esfera política e estratégica. Seu berço, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca) derivou do imperativo de soldar os destinos da Alemanha e da França, para diluir as rivalidades nacionalistas que provocaram as duas grandes guerras e erguer uma barreira democrática à URSS. O projeto europeu surgiu como reação aos espectros de Hitler e Stálin.

O segundo grande ato histórico foi a União Monetária, decidida na hora da reunificação alemã. “A Alemanha inteira para Helmut Kohl; metade do marco alemão para François Miterrand” — o diagnóstico irônico sintetizou o intercâmbio franco-alemão que originou o euro. Tratava-se de, pelo laço matrimonial da unidade monetária, assegurar que a Alemanha reunificada seria uma “Alemanha europeia”, renunciando para sempre à aventura de erguer uma “Europa alemã”.

O terceiro ato veio com a abertura das portas às nações do antigo bloco soviético. Desde 2004, em menos de uma década, 11 países inscritos no espaço soviético da Guerra Fria tornaram-se integrantes plenos da UE. Os “padrões de acesso” foram rebaixados a fim de oferecer à “outra Europa” uma via para a consolidação da democracia.

Europa sempre foi um projeto fincado no alicerce da política. O comércio, os fluxos de capitais, a moeda funcionaram exclusivamente como ferramentas para um fim estratégico. “Podemos abrir acesso a um país em guerra?” A resposta apropriada, no caso ucraniano, é um inequívoco “sim” — e precisamente por causa da natureza desta guerra. A longa espera dos candidatos dos Bálcãs reflete o estado normal das coisas. O “atalho” ucraniano deveria refletir a urgência de proteger a ordem internacional.

Zelensky, o presidente da Ucrânia, repete que, na resistência à invasão russa, sua nação funciona como posto avançado da Europa. Ele tem razão: um triunfo russo colocaria os Estados Bálticos, integrantes da UE, na alça de mira de Putin. Mas há uma paisagem maior: o sistema de regras que emergiu da tragédia nazista. A absorção da Ucrânia a um “espaço pós-soviético” anunciaria a derrocada do tabu que cerca as guerras de anexação territorial.

A Ucrânia, efetivamente, intercambiou a pretensão de ingressar na Otan pelo sucesso de uma candidatura-relâmpago à UE. A aceitação da candidatura ucraniana fortaleceria o moral das tropas, reafirmaria a unidade ocidental contra a agressão russa e, por isso, abreviaria o intervalo para uma negociação de paz. Logo mais, a UE tomará sua decisão mais importante desde, pelo menos, a União Monetária. Será uma escolha entre a fidelidade a sua vocação histórica e a “falência moral”.

 

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

A guerra já devia é ter acabado,aliás,nem devia ter começado.

Anônimo disse...

DM, sempre tentando moldar a realidade às suas crenças...