Valor Econômico
Aumentar gastos e reduzir impostos com base
em melhora temporária de indicadores fiscais é perigoso para as contas públicas
O governo e o Congresso passaram a tomar
uma série de medidas com potencial de fragilizar as contas públicas, num
cenário marcado pela melhora dos indicadores fiscais de curto prazo e pela
disposição do presidente Jair Bolsonaro de tentar reverter a qualquer custo a
sua baixa popularidade, causada pela inflação acima de dois dígitos e pelo
desemprego elevado. O exemplo da vez é a aprovação pela Câmara dos Deputados,
na semana passada, de um teto para as alíquotas do Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre energia elétrica, combustíveis, gás
natural, comunicações e transporte urbano.
Ao mesmo tempo em que pode reduzir um pouco a inflação num ano em que os índices de preços ao consumidor rodam na casa de 12% em 12 meses, a iniciativa deve provocar uma perda bilionária de receitas, que pode chegar a R$ 83,5 bilhões, nas contas do Comsefaz, o comitê que reúne os secretários estaduais da Fazenda. Além disso, a medida deverá ser judicializada, caso o Senado a aprove sem modificações importantes. Na esfera federal, há uma série de iniciativas para reduzir impostos e elevar alguns gastos. No curto prazo, elas não causam problemas para as contas públicas porque há fatores circunstanciais que tornaram mais benigna a situação fiscal. Não se trata, porém, de uma melhora estrutural.
A inflação na casa de dois dígitos é o
principal motivo para os números fiscais mais favoráveis, ajudando a engordar a
arrecadação e elevando o PIB em termos nominais. A combinação contribui para
reduzir o déficit e a dívida do governo como proporção do PIB, o que ocorreu em
2021 e tem se repetido em 2022. O Bradesco, por exemplo, projetava em dezembro
de 2021 um endividamento bruto de 87,7% do PIB para o fim deste ano; no cenário
divulgado neste mês, o previsão passou para 80,1% do PIB. Os reajustes do salário
mínimo limitados à inflação passada também colaboram para o ajuste, ao segurar
despesas obrigatórias como aposentadorias, pensões e benefícios sociais.
Além disso, os preços elevados de
commodities contribuem para aumentar as receitas, mas as cotações não deverão
se sustentar indefinidamente nos atuais níveis. Para completar, a forte alta
dos juros para combater a inflação aumentará os gastos financeiros do governo,
afetando a dinâmica futura do endividamento público.
Pesquisador associado do Insper, Marcos
Mendes vê a repetição de parte dos erros cometidos de 2006 a 2014: “O uso do
aumento temporário de receitas para financiar redução permanente de tributos”.
Embora o governo tenha promovido no fim de 2021 manobras para driblar o teto de
gastos, como a mudança na fórmula de cálculo do instrumento e o adiamento da
quitação de precatórios, o mecanismo ainda tem segurado pressões para expandir
despesas. “Mas o andar da carruagem indica uma nova flexibilização do teto
ainda em 2022”, diz Mendes.
O Tesouro projeta renúncias de receitas de
R$ 60,8 bilhões para este ano, o equivalente a cerca de 0,6% do PIB, nota ele.
As maiores são a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em
35%, estimada em R$ 23,4 bilhões, e o corte das alíquotas do PIS/Cofins para
diesel, biodiesel, querosene de aviação e gás de cozinha, calculado em R$ 14,9
bilhões.
Ao comentar a iniciativa da Câmara de impor
um limite à alíquota máxima do ICMS de produtos como energia e combustíveis,
Mendes diz que o caso exemplifica bem “o prejuízo para o país de um processo de
tomada de decisão pulverizada, em que os poderes interferem nas atribuições uns
dos outros”.
O argumento para a medida é que, como os
Estados estão com os cofres cheios, não haveria problema em colaborarem para a
redução dos preços de energia elétrica e combustíveis. “Mas vamos ver primeiro
por que os governadores estão com os cofres cheios”, diz ele, chefe da
assessoria especial do ministro da Fazenda de 2016 a 2018 e um dos
idealizadores do teto de gastos. Segundo Mendes, isso ocorre por fatores
“temporários e circunstanciais”. Um deles decorre do congelamento da folha de
pagamento dos Estados, medida que acabou em 2021 - e vários governos estaduais,
aliás, já voltaram a dar reajustes aos servidores neste ano, como lembra
Mendes. Outro motivo é que houve um aumento de inflação e das principais bases
tributárias dos Estados, exatamente combustíveis e energia elétrica. “Mas isso
vai passar”, afirma ele.
Com a redução do ICMS, os Estados perderão
receita num cenário em que há pressão por aumento de despesas e dificuldades
para diminuir gastos. Em 2020, diz Mendes, o Supremo Tribunal Federal (STF)
proibiu a redução de jornada de trabalho dos servidores públicos para segurar
gastos com a folha de pagamento, enterrando uma opção para os gestores públicos
tentarem controlar despesas. Além disso, há iniciativas do Congresso que elevam
gastos dos Estados e municípios, como a aprovação do piso salarial para os
profissionais de enfermagem.
Conceder benefícios tributários devido a
aumentos temporários de receita é perigoso, afirma ele, reiterando que também
há muita pressão política para elevar despesas. A ampliação de gastos e os
cortes de impostos com base em fatores transitórios foram decisivos para
deflagrar a crise fiscal que se acentuou a partir de 2014, colocando um fim aos
superávits primários e contribuindo para a recessão que derrubou o PIB em 2015
e 2016. No caso dos Estados, vários governos deixaram de pagar o funcionalismo
em dia e perderam totalmente a capacidade de investimento.
Mendes enfatiza ainda a importância de
promover a redução de alguns impostos no âmbito de uma reforma tributária, e
não por meio de “canetadas parciais, feitas ao sabor do vento”. Ele cita o caso
da redução de 35% do IPI. “É um imposto ruim e que deveria ser diminuído, mas
em um contexto de reforma tributária, em que suas receitas fossem substituídas
pela arrecadação de um IVA [imposto sobre valor agregado] moderno. Cortar o IPI
agora pode fazer falta mais à frente, quando o ciclo virar e o déficit voltar a
crescer”, diz Mendes, organizador do livro “Para Não Esquecer: Políticas
Públicas que Empobrecem o Brasil”, a ser lançado hoje.
Esses riscos, porém, passaram a ser
desprezados pelo governo, que tem como prioridade absoluta a reeleição de Bolsonaro.
Com a rejeição ao presidente nas alturas, o objetivo das medidas é tentar
reduzir a inflação a qualquer custo, como se vê em cortes de impostos feitos no
improviso e nas pressões sobre a Petrobras para a empresa mudar a política de
preços para os combustíveis.
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