STF desarmou bomba fiscal na Previdência
O Globo
Ao manter fator previdenciário, Corte evitou
despesa adicional de R$ 130 bilhões aos cofres públicos
Para honrar as aposentadorias do setor
privado, o Tesouro desembolsa cerca de R$ 300 bilhões por ano. Esse é o tamanho
aproximado do rombo da Previdência. Com o aumento da longevidade, ele só tende
a aumentar se não houver novas reformas. Como se o desafio nada trivial de
mexer nas aposentadorias futuras não bastasse, volta e meia o passado também
traz dores de cabeça. É o que mostra uma ação em julgamento no Supremo Tribunal
Federal (STF)
sobre as reformas previdenciárias dos anos 1990. Uma eventual decisão favorável
aos aposentados custaria R$ 130 bilhões a mais no Orçamento, pelos cálculos da
Advocacia-Geral da União (AGU). Felizmente o Supremo já formou maioria para
desarmar a bomba fiscal. O julgamento termina na próxima segunda-feira.
Depois do Plano Real, em 1998, o Congresso
aprovou uma Emenda Constitucional para mudar o cálculo da aposentadoria dos
trabalhadores do setor privado. Estabeleceu novos requisitos e criou um regime
de transição para quem estava próximo de se aposentar. No ano seguinte, foi
aprovada a Lei do Fator Previdenciário, alterando o cálculo das aposentadorias.
Como não havia consenso político para aumentar a idade mínima, a saída foi
adotar um mecanismo para desincentivar aposentadorias precoces. Até então elas
eram a maioria, devido à regra do “tempo de serviço”. Quem tinha 35 anos de
contribuição podia se aposentar com qualquer idade. Em 1997, 82% das
aposentadorias urbanas ocorriam até os 54 anos. A partir da aprovação do fator
previdenciário, quem se aposentava cedo sofria redução nos vencimentos. Quanto
mais tempo ficava no mercado de trabalho, menor o redutor.
A ação examinada pelo STF contesta a
aplicação da Lei do Fator Previdenciário para os beneficiários sujeitos às
regras de transição criadas em 1998. Eles pleiteiam que a legislação não seja
aplicada a eles e pedem ressarcimento de valores a que julgam ter direito. Em
seu voto, o relator, ministro Gilmar Mendes,
teve o bom senso de não encampar essa tese e votou pela constitucionalidade do
redutor. “É constitucional a aplicação do fator previdenciário, instituído pela
Lei 9.876/1999, aos benefícios concedidos a segurados filiados ao Regime Geral
de Previdência
Social antes de 16.12.1998, abrangidos pela regra de transição
do art. 9º da EC 20/98”, escreveu Gilmar.
O entendimento de Gilmar está certo. “Os aposentados a quem se aplicou o conjunto de regras de transição não foram prejudicados, não receberam benefícios calculados indevidamente”, escreveu o economista Felipe Salto no jornal O Estado de S. Paulo. Além disso, as sucessivas reformas previdenciárias foram tentativas de dar sobrevida ao INSS. Sem as mudanças de regras das últimas três décadas, o país na certa já teria quebrado. Em vez de desencavar esqueletos do passado, o Brasil precisa encarar o desafio de aprovar novas reformas, já que as contas da Previdência se mostram a cada dia mais insustentáveis. A pressão pode ser medida pelo tamanho das despesas com o INSS como proporção do Produto Interno Bruto (PIB). O gasto equivalia a 2,5% do PIB em 1988, pelo cálculo do economista Fabio Giambiagi. Hoje está perto de 8%. E, a despeito da última reforma em 2019, ameaça voltar a crescer.
Crimes sexuais contra menores na Amazônia
exigem ação urgente
O Globo
Num ambiente sem presença efetiva do Estado,
estudo constata vulnerabilidade dos mais jovens
São alarmantes os indicadores de violência
sexual contra crianças e adolescentes na Amazônia Legal,
revela levantamento feito pelo Unicef e pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP). O índice na região alcançou, em 2023, 141,3 casos por 100 mil
indivíduos na faixa etária, ou 21,4% acima da média nacional. As notificações
aumentaram 26,4% entre 2021 e 2022, ante crescimento de 12,5% no país todo. E
os registros contra crianças indígenas, as mais vulneráveis, aumentaram 151% de
2021 a 2023. Seis estados da Amazônia Legal — Acre, Mato Grosso, Pará,
Rondônia, Roraima e Maranhão — estão entre os dez com maior incidência de
crimes contra menores.
É preciso agir com presteza. “As crianças e
adolescentes da Amazônia Legal estão expostos a diferentes violências”, diz
Nayana Lorena da Silva, responsável no Brasil pela Proteção contra a Violência
do Unicef. “As desigualdades étnico-raciais, a vulnerabilidade social, os
conflitos territoriais, a extensa área de fronteira e a grande incidência de
crimes ambientais criam um cenário complexo, que precisa ser compreendido e
enfrentado para assegurar a proteção de cada criança e adolescente.”
Num ambiente sem presença efetiva do Estado,
em que organizações criminosas ampliam o controle do território, a
vulnerabilidade dos mais jovens é enorme. Não é por acaso que as mortes
violentas nas cidades amazônicas são 31,9% mais altas que no resto do país, de
acordo com o pesquisador Cauê Martins, do FBSP. Todos os dados apontam para a
necessidade de um choque de legalidade na região. E a defesa das crianças e
adolescentes precisa ter prioridade especial.
A conselheira tutelar Joelma de Souza Leal
Ribeira, de Manacapuru, no interior do Amazonas, relatou à reportagem do GLOBO
um caso estarrecedor: a aluna de uma escola manifestava comportamento
revoltado, que, depois descobriu-se, era resultado de estupros pelo pai e pelos
irmãos. “Na nossa cultura amazônica, foi perpetuado um comportamento que
chamamos de ‘estupro consensual’ ”, diz ela. “A gente esbarra na questão da
logística, da falta de transporte, falta de combustível, falta de acesso a
essas comunidades. Muitas vezes nosso trabalho acaba sendo uma proteção tardia.
Quando o conselho consegue chegar ao local, a criança já vem sendo vítima por
muito tempo.”
O panorama traçado pelo levantamento do
Unicef e do FBSP é tão desolador que não há tempo a perder. União e
governadores da região deveriam, desde já, resolver o problema grave da falta
de meios para que os agentes públicos responsáveis pela defesa dos menores
possam ao menos se deslocar com a frequência e a rapidez necessárias para
combater a violência sexual. Não é muito — e já faria enorme diferença.
Do motim bolsonarista à busca por impunidade
Folha de S. Paulo
Após truculência, centrão vê oportunidade de
fazer avançar propostas que protegem parlamentares de investigações
É improvável que os arruaceiros livrem Bolsonaro do STF, mas contam com o espírito de corpo do Congresso para retardar ou evitar a devida punição
Não se pode acusar o centrão de desperdiçar
oportunidades. O pacote de
propostas em gestação no Congresso para
proteger parlamentares de investigações variadas é um bom exemplo disso.
O arsenal legislativo em proveito próprio
ganhou força na esteira do infame motim bolsonarista que interditou a Câmara dos
Deputados e o Senado na
semana passada. O grupo rebelado queria salvar a pele de Jair
Bolsonaro (PL), prestes a ser condenado por tentativa de
golpe de Estado no Supremo Tribunal Federal.
É altamente improvável que consiga tal
objetivo, dado que o processo do STF está
próximo da etapa decisiva. Os arruaceiros, no entanto, contam com o espírito de
corpo do Parlamento para retardar, e se possível evitar, a devida punição por
sua conduta truculenta e autoritária.
Já o centrão viu no imbróglio uma chance de
blindar seus associados contra pressões judiciais e decidiu bancar o pacote,
que também poderá contar com o apoio da direita bolsonarista e mesmo de setores
da esquerda.
O interesse maior do consórcio fisiológico
não é Bolsonaro, mas afastar o espectro do ministro Flávio Dino,
do STF, que supervisiona investigações sobre desvios em emendas
parlamentares.
Entre as propostas cogitadas, a mais saliente
é a de que apurações envolvendo parlamentares só sejam iniciadas mediante
autorização das respectivas Casas legislativas. Mesmo que algo assim venha a
ser aprovado, é grande a probabilidade de o Supremo julgar a medida
inconstitucional. Não se pode, por óbvio, criar uma casta de cidadãos que nem
mesmo pode ser investigada.
O alvo principal do pacote é o foro especial,
pelo qual políticos e outras autoridades não respondem penalmente na primeira
instância, como a maioria das pessoas, mas em algum tribunal, que varia
dependendo do cargo.
O dispositivo, embora possa parecer à
primeira vista antirrepublicano, tem sua razão de ser. Ao menos em teoria,
cortes colegiadas resistem melhor a pressões políticas do que juízes singulares
de primeira instância. Elas teriam, portanto, maior latitude tanto para
condenar poderosos quanto para inocentar réus politicamente perseguidos.
Historicamente, o desaforamento deu margem a
tantos abusos que acabou se tornando sinônimo de impunidade, daí o
apelido "foro
privilegiado". No último par de décadas, porém, cortes
superiores se tornaram mais assertivas, por vezes ativistas, e políticos
passaram a temê-las em vez de procurar sua proteção.
O simples fato de parlamentares estarem
ansiosos para limitar o instituto já é uma boa razão para mantê-lo. É claro que
se pode discutir seu alcance para situações específicas. O próprio Supremo já
fez isso, mais de uma vez.
Entretanto parlamentares, se tiverem
interesse em preservar a imagem do Legislativo, deveriam adiar a discussão e só
retomá-la fora de um contexto de chantagem contra as instituições.
Escândalo mergulha São Bernardo em incertezas
Folha de S. Paulo
Afastamento de prefeito e presidente da
Câmara por suspeita de corrupção ameaça governabilidade na cidade do ABC
paulista
É lamentável que eventuais atos ilícitos teimam em incrustar-se no poder; cumpre às autoridades apuração austera e eventual reparo aos cofres públicos
Os moradores de São Bernardo
do Campo, a maior cidade do ABC paulista, foram surpreendidos na
quinta-feira (14) com a notícia de que os chefes do Executivo e do Legislativo
municipais haviam sido afastados por
um ano de seus cargos, por determinação judicial, em investigação
da Polícia
Federal por suspeitas de corrupção e
lavagem de dinheiro.
Primos e
filiados ao Podemos,
o prefeito Marcelo Lima e o presidente da Câmara Municipal, Danilo Lima, foram
alvos da Operação Estafeta, que também atingiu um outro vereador, um secretário
do gabinete, um servidor público e outras dezenas de suspeitos, incluindo
empresários da região.
Além dos afastamentos, a Justiça determinou a
quebra de sigilos bancário e fiscal —a prisão do alcaide foi negada, mas
impôs-se o uso de tornozeleira eletrônica como medida cautelar.
De acordo com o Ministério
Público, a organização criminosa recebia recursos a partir de
contratos da prefeitura nas áreas de obras, saúde, coleta e informática, entre
outros. Apura-se, inclusive, se os desvios bancaram gastos pessoais do prefeito
e da família, como cartões de crédito e viagens internacionais.
Como já é praxe em operações do tipo,
surreais quantias de dinheiro em espécie foram apreendidas: cerca de R$ 14
milhões em julho, no apartamento de Paulo Iran Paulino Costa, servidor da
Assembleia Legislativa apontado como operador financeiro do esquema, ainda
foragido, e R$ 3,2
milhões na investida recente.
Se ainda é imperativo aguardar o devido
andamento do inquérito da PF e garantir amplo direito de defesa aos envolvidos,
também cumpre às autoridades ampliar o escopo das investigações.
Em 2022, Marcelo Lima,
então secretário de Serviços Urbanos, já enfrentava medidas cautelares
relacionadas a denúncias de irregularidades em licitações. À época, era também
vice de Orlando
Morando, atual secretário de Segurança Urbana do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB).
Sob horizonte incerto, a gestão interina está
nas mãos da vice Jessica
Cormick (Avante), uma sargento da PM neófita na política.
Com mais de 800 mil habitantes, São Bernardo
do Campo marcou a história do país como berço do novo
sindicalismo, na esteira do avanço da indústria automobilística, que
forjou lideranças políticas como o hoje presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT).
É lamentável, pois, que esteja agora engolfada em suspeitas de práticas ilícitas que teimam em incrustar-se no poder, pondo em risco o andamento da administração e perpetuando o atraso.
Tarcísio está certo
O Estado de S. Paulo
Ele resumiu bem: ‘O Brasil não aguenta mais o
Lula’ – e desbancá-lo é condição para superar o atraso. Mas os candidatos à
direita devem saber que o Brasil também não aguenta mais Bolsonaro
“O Brasil não aguenta mais o PT, o Brasil não
aguenta mais o Lula.” O desabafo do governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas, num encontro promovido pelo BTG Pactual com outros presidenciáveis de
centro-direita, como Ratinho Jr., Eduardo Leite e Ronaldo Caiado, vocaliza mais
que um diagnóstico político. É a expressão condensada de um esgotamento
histórico, comprovado por dados e pelo cotidiano. Não se trata de mera retórica
eleitoral. O sentimento popular, traduzido em índices de rejeição, ecoa uma
realidade objetiva: o modelo lulopetista é fiscalmente insustentável,
economicamente estagnante, institucionalmente corrosivo e diplomaticamente
anacrônico.
Na oposição, recorde-se, o PT sempre foi
irresponsável, rejeitando marcos civilizacionais, a começar pela Constituição e
o Plano Real. No governo, o resultado foi inequívoco: retrocesso na
produtividade, deterioração fiscal, aparelhamento do Estado, corrosão da
moralidade pública e uma política externa que confunde alinhamento com ditaduras
e hostilidade ao Ocidente com “soberania”. Na economia, o lulopetismo
substituiu reformas estruturais por expansão desenfreada do gasto corrente,
subsídios distorcivos e intervencionismo improvisado. O preço está na dívida
crescente, no déficit crônico, nos juros exorbitantes, na paralisia do
investimento privado. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 45 anos
o Brasil despencou do 48.º para o 87.º lugar no ranking de PIB per capita, aproximando-se da
metade mais pobre do planeta – e isso tem relação direta com o fato de que o
Brasil foi governado pelo PT em 16 dos últimos 22 anos.
A cultura institucional moldada pelo PT é
adversa ao mérito e complacente com o clientelismo. A máquina pública foi
loteada a aliados; as estatais, transformadas em cabides de emprego; o
Congresso é tratado ora como inimigo, ora como balcão de negócios. Na política
externa, Lula insiste em bajular autocratas e dar declarações contra o
“imperialismo estadunidense”, mesmo enquanto China, Europa ou até o Vietnã
negociam pragmaticamente com Washington. No campo moral, a marca é um
relativismo corrosivo: o partido que reivindica o monopólio da ética capitaneou
o maior escândalo de corrupção da história nacional.
Ao dizer que o Brasil “não aguenta mais”,
Tarcísio verbaliza um limite estrutural. A população sente – e as projeções
confirmam – que o País não suporta mais regimes fiscais que empilham déficits e
empurram a conta para o futuro. A exaustão também é geopolítica e tecnológica:
enquanto o mundo corre atrás da transição energética e da economia do
conhecimento, o lulopetismo insiste em reviver debates marxistas
antediluvianos, preso a um saudosismo sindical e a rancores de grêmio
estudantil.
Não é preciso endossar candidaturas para
reconhecer que os princípios defendidos pelos governadores durante o encontro
apontam na direção certa: responsabilidade social sustentada por
responsabilidade fiscal, reforma orçamentária, modernização administrativa,
combate à corrupção e privilégios e uma visão de futuro conectada às oportunidades
globais. É essa virada de página que importa.
Mas, para ser completa, ela não pode omitir
um dado incômodo: o Brasil não aguenta mais o bolsonarismo também. Entre os
muitos males que Lula e o PT causaram ao País, um dos mais degradantes foi a
ascensão de Jair Bolsonaro. O populismo bolsonarista foi um subproduto
dialético do populismo lulopetista. O antipetismo viabilizou a ascensão de
Bolsonaro, e o antibolsonarismo viabilizou o retorno de Lula, mantendo o País
cativo de um ciclo infernal de ressentimento, radicalização e estagnação.
Rompê-lo é condição para avançar. Como resumiu singelamente Ratinho Jr., basta
eleger “uma pessoa normal”.
Virar a página não é trocar um demagogo por
outro. É abandonar a mentalidade retrógrada que nos prende a crises recorrentes,
colocar a responsabilidade fiscal no centro da agenda, reafirmar o compromisso
com instituições sólidas e abraçar o mundo como ele é, e não como o imaginário
ideológico o descreve. O Brasil não aguenta mais Lula e Bolsonaro – e, se não
superá-los de uma vez, estará condenado à mais profunda mediocridade.
Um Congresso acima da lei
O Estado de S. Paulo
A pretexto de enfrentar abusos do STF,
parlamentares parecem interessados em tornar o Congresso um Poder imune aos
controles republicanos – exatamente a crítica que muitos fazem ao Supremo
O presidente da Câmara, Hugo Motta
(Republicanos-PB), declarou em entrevista à GloboNews que há “um ambiente de
discussão” para restabelecer a exigência de prévia autorização legislativa para
a abertura de inquéritos envolvendo parlamentares. Se esse despautério
prosperar, o Brasil dará um salto de 24 anos para trás, destruindo um dos
avanços institucionais mais relevantes desde a redemocratização do País. O
Congresso, ao fim e ao cabo, tornar-se-ia um Poder imune aos devidos controles
republicanos, fazendo desta uma república capenga.
Em 2001, foi promulgada a Emenda
Constitucional (EC) 35, que fixou parâmetros claros para a imunidade
parlamentar. Desde então, a abertura de ações penais em face de deputados e
senadores pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – e, consequentemente, os
inquéritos que as fundamentam – independe de autorização da respectiva Casa a
que pertence o parlamentar investigado ou réu. A um só tempo, a EC 35
fortaleceu o princípio republicano fundamental, qual seja, a igualdade de todos
perante a lei, e preservou a natureza da democracia representativa, garantindo
aos parlamentares a inviolabilidade civil e penal apenas por suas opiniões,
palavras e votos.
À época, os congressistas mantiveram certas
prerrogativas que fazem sentido pela natureza de seu trabalho. Por exemplo:
desde a diplomação, parlamentares não podem ser presos, “salvo em flagrante de
crime inafiançável”. Também não estão obrigados a “testemunhar sobre
informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato”. Estas, a
rigor, são garantias da preservação da vontade livre e consciente dos
eleitores, e não da pessoa do parlamentar.
O que o sr. Hugo Motta e muitos de seus pares
têm defendido, porém, é a impunidade de deputados e senadores suspeitos de
crimes comuns, alçando-os a uma classe especial de cidadãos, que passariam a
estar imunes às leis. É o que pode acontecer, pois não é difícil imaginar que,
diante da perspectiva de persecução criminal de um colega, o espírito de corpo
haverá de prevalecer na maioria dos casos. Decerto vocalizando o desejo de
muitos no Congresso, o que o presidente da Câmara propôs é reverter a lógica da
imunidade parlamentar, criando uma casta intocável de cidadãos que apenas
lograram ser eleitos para um mandato temporário. O efeito prático do eventual
sucesso dessa monstruosidade legislativa será a legalização do compadrio.
A ameaça de retrocesso não se resume a esse
ponto. Desde o momento em que uma malta de bolsonaristas tomou de assalto as
Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, começaram as tratativas desavergonhadas
para restringir o alcance do foro especial por prerrogativa de função, o
chamado foro privilegiado, além do conjunto de medidas que ficou conhecido como
a “PEC da Blindagem”. Tudo, é claro, sob o pretexto de reparar injustiças,
erros ou abusos cometidos pelo STF, especialmente contra Jair Bolsonaro e
outros réus por tentativa de golpe de Estado. A anistia ao ex-presidente,
porém, é apenas o verniz na cara de pau: o objetivo real de próceres do
Congresso é blindar parlamentares acusados de crimes graves perante o Supremo,
como o desvio de bilhões de reais em emendas ao Orçamento da União.
Foi por essa razão que Motta afirmou que há
um “incômodo” no Congresso porque “muitos parlamentares”, segundo ele, estariam
sendo investigados “por crimes de opinião”. Ora, isso não é verdade. O que há
são investigações e processos relativos a crimes de corrupção, peculato,
lavagem de dinheiro e outros, ainda que a responsabilização da delinquência
ordinária venha mal disfarçada de “perseguição política” para justificar essas
alterações constitucionais voltadas à impunidade.
É legítimo questionar decisões do STF e
pugnar pela correção de eventuais abusos que alguns ministros possam cometer.
Mas instrumentalizar as críticas ao Judiciário para criar um Congresso acima da
lei é corroer o próprio sistema de freios e contrapesos que sustenta a
República. Se o Congresso se autoconceder o poder de autorizar ou não a
investigação de seus membros, o Brasil passará a ter um Poder que não presta
contas a ninguém, exatamente a acusação que hoje se faz ao Supremo.
A inflação de Trump
O Estado de S. Paulo
Presidente nega, mas seu tarifaço começa a se
espalhar pelos preços nos EUA
Como esperado, os efeitos da guerra tarifária
do presidente Donald Trump já alimentam a inflação nos EUA. Em julho, o índice
de preços ao produtor (PPI, na sigla em inglês) subiu 0,9% em relação a junho,
quando o esperado era um avanço de 0,2%. Em 12 meses, o PPI teve elevação de
3,3%, o maior patamar desde fevereiro deste ano. Já o núcleo do PPI, que exclui
preços mais suscetíveis à volatilidade, como os de alimentos e energia, teve
alta mensal de 0,6% em julho, maior patamar desde março de 2022.
Poucos dias antes, os dados de inflação ao
consumidor (CPI, na sigla em inglês) já sinalizavam que o período em que
empresas utilizaram o que tinham em estoque, anteciparam importações e
seguraram os repasses ao consumidor das tarifas impostas por Trump era coisa do
passado.
Mas mesmo com CPI anual de 2,7% em julho,
muito acima da meta de 2% ao ano perseguida pelo Federal Reserve (Fed, o banco
central dos EUA), parte do mercado chegou a apostar em queda de juros no mês
que vem.
O secretário do Tesouro, Scott Bessent, não
se furtou a aventar (e depois negar) a possibilidade de corte nos juros
norte-americanos em setembro, numa clara tentativa de agradar ao chefe Trump,
para quem a inflação nos EUA é praticamente inexistente.
Não é o que dizem os dados. A bem da verdade,
o PPI demolidor de julho reflete apenas efeito parcial do tarifaço, já que as
alíquotas mais punitivas (como a de 50% sobre o café brasileiro, por exemplo)
entraram em vigor recentemente e ainda não aparecem nos indicadores. O que está
ruim, portanto, só tende a piorar.
Em um cenário desses, dificilmente um banco
central técnico e independente, como tem sido ao longo das últimas décadas o
dos EUA, tem margem para reduzir juros. O único elemento que, no momento,
permitiria vislumbrar um corte de juros é o enfraquecimento do mercado de
trabalho.
Ocorre que Trump não só alardeia que a
inflação é zero nos EUA, como também bravateia que o mercado de trabalho está a
pleno vapor, exibindo orgulhosamente toda a sua ignorância econômica. Mercado
de trabalho pleno e inflação inexistente são realidade apenas em mentes
alienadas como a do republicano.
O problema é que Trump é um delirante com
poder nas mãos, e tem conseguido impor, na base do grito e da chantagem,
praticamente tudo o que deseja. Irritado com as estatísticas oficiais, que
somente refletem uma economia que apenas começou a se deteriorar, o presidente
vem atirando para matar os mensageiros.
Foi o que aconteceu com Erika McEntarfer, a
comissária que comandava o departamento responsável pela coleta, análise e
divulgação dos dados de emprego, bem como do CPI e PPI. Trump não só a demitiu,
como para o lugar dela indicou um economista obscuro que já propôs suspender o
relatório mensal de emprego.
Até o momento, o Fed, na figura do presidente
Jerome Powell, é uma das poucas forças de resistência a Trump. O PPI de julho
apenas corrobora a conduta cautelosa da política monetária. Powell tem o apoio
dos dados, mas não o de Trump.
Da resolução desse impasse depende não só o futuro dos juros nos EUA, como o da economia global.
A hora do salto de qualidade
Correio Braziliense
O Plano Brasil Soberano dá bons instrumentos
para o enfrentamento do tarifaço, mas é insuficiente. Obrigará o país a algo
que sempre teve imensa dificuldade em fazer: abrir o mercado
Se o governo tinha esperanças de que a crise
que abala as conexões entre Brasil e Estados Unidos se amenizaria com a
negociação para a suspensão ou a mitigação daquilo que restou do tarifaço, tem
agora a certeza de que extrapolou a seara econômica e contaminou a política. O
Plano Brasil Soberano dá bons instrumentos para o enfrentamento da tempestade
provocada por Donald Trump no comércio internacional e nas relações de
confiança entre antigos aliados, mas é insuficiente. Isso obrigará o país a
algo que sempre teve imensa dificuldade em fazer: abrir o mercado.
Das grandes economias mundiais, a brasileira
é uma das mais fechadas, por conta, em grande parte, de um permanente
desequilíbrio fiscal. Taxar importados é uma forma de arrecadação preguiçosa,
mas eficiente. Há, porém, setores do empresariado brasileiro que se acostumaram
a uma certa reserva de mercado e têm arrepios à simples menção da palavra
"competitividade". Mantêm o país em descompasso tecnológico com as
nações mais avançadas e, sempre que ameaçados, acenam com a redução de postos
de trabalho, ante a hipótese de enfrentarem um rival importado melhor e mais
barato. Como governo algum quer ser acusado de ser responsável por
desaquecimento na produção e por maiores percentuais de desemprego, cede com
mais concessões.
O trauma generalizado causado por Trump nas
relações entre as nações, sejam comerciais ou diplomáticas, obrigará o governo
e o empresariado brasileiros a encontrarem fórmulas que deem condições à
abertura da economia nacional. E pelo óbvio motivo de que a busca de novas
parcerias pressupõe disposição em receber aquilo que o outro país não tem para
onde escoar. É simples entender: se quero aumentar meu fluxo de comércio, para
compensar o que os EUA não mais me oferecem, preciso ser receptivo a um volume
de produtos maior do que o que me satisfazia até então.
Isso, claro, mexe com o mercado e a produção
interna. Alíquotas de impostos terão de ser revistas, burocracias precisarão
ser suspensas, canais de escoamento passarão por melhorias, logísticas
carecerão de mais eficiência. Representa que o fluxo de comércio dentro do país
será profundamente afetado. A exigência aumentará, trazendo no bojo a
necessidade de investimentos do Estado na ampliação dessa cadeia. Um Plano
Brasil Soberano II, em adição ao recém-lançado, seria obrigatório.
Em recente entrevista, o empresário Lawrence Pih, maior produtor brasileiro de farinha de trigo, ousou dizer — para horror de economistas, parcela do empresariado e analistas de mercado — que o Brasil não precisa dos EUA para coisa alguma e que Trump, sem saber, nos dá a chance de intensificarmos as trocas com outros países e contornarmos rapidamente a barreira norte-americana. Advertiu que teremos de ceder mais do que estamos acostumados, mas frisou que, dessa maneira, daremos o salto de qualidade e de capacidade que há muito almejamos.
Relatório dos EUA é mais um ataque ao Brasil
O Povo (CE)
Por tudo o que se conhece de Donald Trump,
ele não é a pessoa mais indicada para dar aulas de liberdade de expressão ou
sobre direitos humanos
O relatório do Escritório de Direitos Humanos
do Departamento de Estado dos EUA, divulgado na terça-feira, foi usado como
mais uma peça de ataque ao governo brasileiro e ao ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Esse documento é emitido todos os anos pelos
Estados Unidos, abrangendo todos os países que fazem parte da Organização das
Nações Unidas (ONU). No entanto, em vez de um levantamento técnico e
referenciado em fatos, o deste ano (referente a 2024) claramente obedece às
injunções políticas do presidente Donald Trump.
Como sempre acontece, quando se trata de
Donald Trump, sobressaem as imprecisões, avolumam-se as mentiras e destacam-se
as ofensas e agressões disparatadas a quem ele elege como inimigo.
Observa-se que o relatório alivia para os
países considerados aliados do governo americano, como Israel e El Salvador,
mas pesa a mão contra o Brasil, em litígio com os Estados Unidos devido ao
tarifaço imposto por Washington.
O documento começa com duas afirmações
falsas. A primeira sobre a avaliação dos direitos humanos no Brasil e, a outra,
a respeito de decisões tomadas pelo sistema judiciário.
De acordo com o relatório, "a situação
dos direitos humanos piorou no Brasil ao longo do ano (2024)", referência
ao governo Lula. Quanto ao sistema Judiciário, o texto afirma que os
"tribunais (brasileiros) tomaram medidas amplas e desproporcionais para
minar a liberdade de expressão e a liberdade na internet", referência ao
ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
O fato é que Moraes age conforme a legislação
brasileira, com todas as suas decisões referendadas pela Primeira Turma do STF,
onde correm os processos contra Bolsonaro. Além de tudo, parece haver uma certa
confusão no relatório, como se o Executivo fosse responsável pelas decisões do
Judiciário. Quanto afirmar que houve deterioração na área dos direitos humanos
durante o mandato de Lula, trata-se de falsidade.
Mas a situação se torna mais grave ainda,
como assinalou este jornal em seu editorial na edição de ontem, quando o
secretário de Estado, Marco Rubio, faz uma acusação absurda contra o Brasil.
Ele alega que o programa brasileiro Mais Médicos envolveu um "esquema de
exportação de trabalho forçado" por parte de Cuba, ao qual os médicos
cubanos eram submetidos.
Pelo que se observa, os Estados Unidos não demonstram
interesse em negociar. Além disso, parecem dispostos a escalar a crise a níveis
nunca vistos na relação de mais de 200 anos entre os dois países.
É ainda preciso dizer que, por tudo o que se conhece de Donald Trump, ele não é a pessoa mais indicada para dar aulas de liberdade de expressão ou sobre direitos humanos.
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