sábado, 16 de agosto de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

STF desarmou bomba fiscal na Previdência

O Globo

Ao manter fator previdenciário, Corte evitou despesa adicional de R$ 130 bilhões aos cofres públicos

Para honrar as aposentadorias do setor privado, o Tesouro desembolsa cerca de R$ 300 bilhões por ano. Esse é o tamanho aproximado do rombo da Previdência. Com o aumento da longevidade, ele só tende a aumentar se não houver novas reformas. Como se o desafio nada trivial de mexer nas aposentadorias futuras não bastasse, volta e meia o passado também traz dores de cabeça. É o que mostra uma ação em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as reformas previdenciárias dos anos 1990. Uma eventual decisão favorável aos aposentados custaria R$ 130 bilhões a mais no Orçamento, pelos cálculos da Advocacia-Geral da União (AGU). Felizmente o Supremo já formou maioria para desarmar a bomba fiscal. O julgamento termina na próxima segunda-feira.

Depois do Plano Real, em 1998, o Congresso aprovou uma Emenda Constitucional para mudar o cálculo da aposentadoria dos trabalhadores do setor privado. Estabeleceu novos requisitos e criou um regime de transição para quem estava próximo de se aposentar. No ano seguinte, foi aprovada a Lei do Fator Previdenciário, alterando o cálculo das aposentadorias. Como não havia consenso político para aumentar a idade mínima, a saída foi adotar um mecanismo para desincentivar aposentadorias precoces. Até então elas eram a maioria, devido à regra do “tempo de serviço”. Quem tinha 35 anos de contribuição podia se aposentar com qualquer idade. Em 1997, 82% das aposentadorias urbanas ocorriam até os 54 anos. A partir da aprovação do fator previdenciário, quem se aposentava cedo sofria redução nos vencimentos. Quanto mais tempo ficava no mercado de trabalho, menor o redutor.

A ação examinada pelo STF contesta a aplicação da Lei do Fator Previdenciário para os beneficiários sujeitos às regras de transição criadas em 1998. Eles pleiteiam que a legislação não seja aplicada a eles e pedem ressarcimento de valores a que julgam ter direito. Em seu voto, o relator, ministro Gilmar Mendes, teve o bom senso de não encampar essa tese e votou pela constitucionalidade do redutor. “É constitucional a aplicação do fator previdenciário, instituído pela Lei 9.876/1999, aos benefícios concedidos a segurados filiados ao Regime Geral de Previdência Social antes de 16.12.1998, abrangidos pela regra de transição do art. 9º da EC 20/98”, escreveu Gilmar.

O entendimento de Gilmar está certo. “Os aposentados a quem se aplicou o conjunto de regras de transição não foram prejudicados, não receberam benefícios calculados indevidamente”, escreveu o economista Felipe Salto no jornal O Estado de S. Paulo. Além disso, as sucessivas reformas previdenciárias foram tentativas de dar sobrevida ao INSS. Sem as mudanças de regras das últimas três décadas, o país na certa já teria quebrado. Em vez de desencavar esqueletos do passado, o Brasil precisa encarar o desafio de aprovar novas reformas, já que as contas da Previdência se mostram a cada dia mais insustentáveis. A pressão pode ser medida pelo tamanho das despesas com o INSS como proporção do Produto Interno Bruto (PIB). O gasto equivalia a 2,5% do PIB em 1988, pelo cálculo do economista Fabio Giambiagi. Hoje está perto de 8%. E, a despeito da última reforma em 2019, ameaça voltar a crescer.

Crimes sexuais contra menores na Amazônia exigem ação urgente

O Globo

Num ambiente sem presença efetiva do Estado, estudo constata vulnerabilidade dos mais jovens

São alarmantes os indicadores de violência sexual contra crianças e adolescentes na Amazônia Legal, revela levantamento feito pelo Unicef e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O índice na região alcançou, em 2023, 141,3 casos por 100 mil indivíduos na faixa etária, ou 21,4% acima da média nacional. As notificações aumentaram 26,4% entre 2021 e 2022, ante crescimento de 12,5% no país todo. E os registros contra crianças indígenas, as mais vulneráveis, aumentaram 151% de 2021 a 2023. Seis estados da Amazônia Legal — Acre, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Maranhão — estão entre os dez com maior incidência de crimes contra menores.

É preciso agir com presteza. “As crianças e adolescentes da Amazônia Legal estão expostos a diferentes violências”, diz Nayana Lorena da Silva, responsável no Brasil pela Proteção contra a Violência do Unicef. “As desigualdades étnico-raciais, a vulnerabilidade social, os conflitos territoriais, a extensa área de fronteira e a grande incidência de crimes ambientais criam um cenário complexo, que precisa ser compreendido e enfrentado para assegurar a proteção de cada criança e adolescente.”

Num ambiente sem presença efetiva do Estado, em que organizações criminosas ampliam o controle do território, a vulnerabilidade dos mais jovens é enorme. Não é por acaso que as mortes violentas nas cidades amazônicas são 31,9% mais altas que no resto do país, de acordo com o pesquisador Cauê Martins, do FBSP. Todos os dados apontam para a necessidade de um choque de legalidade na região. E a defesa das crianças e adolescentes precisa ter prioridade especial.

A conselheira tutelar Joelma de Souza Leal Ribeira, de Manacapuru, no interior do Amazonas, relatou à reportagem do GLOBO um caso estarrecedor: a aluna de uma escola manifestava comportamento revoltado, que, depois descobriu-se, era resultado de estupros pelo pai e pelos irmãos. “Na nossa cultura amazônica, foi perpetuado um comportamento que chamamos de ‘estupro consensual’ ”, diz ela. “A gente esbarra na questão da logística, da falta de transporte, falta de combustível, falta de acesso a essas comunidades. Muitas vezes nosso trabalho acaba sendo uma proteção tardia. Quando o conselho consegue chegar ao local, a criança já vem sendo vítima por muito tempo.”

O panorama traçado pelo levantamento do Unicef e do FBSP é tão desolador que não há tempo a perder. União e governadores da região deveriam, desde já, resolver o problema grave da falta de meios para que os agentes públicos responsáveis pela defesa dos menores possam ao menos se deslocar com a frequência e a rapidez necessárias para combater a violência sexual. Não é muito — e já faria enorme diferença.

Do motim bolsonarista à busca por impunidade

Folha de S. Paulo

Após truculência, centrão vê oportunidade de fazer avançar propostas que protegem parlamentares de investigações

É improvável que os arruaceiros livrem Bolsonaro do STF, mas contam com o espírito de corpo do Congresso para retardar ou evitar a devida punição

Não se pode acusar o centrão de desperdiçar oportunidades. O pacote de propostas em gestação no Congresso para proteger parlamentares de investigações variadas é um bom exemplo disso.

O arsenal legislativo em proveito próprio ganhou força na esteira do infame motim bolsonarista que interditou a Câmara dos Deputados e o Senado na semana passada. O grupo rebelado queria salvar a pele de Jair Bolsonaro (PL), prestes a ser condenado por tentativa de golpe de Estado no Supremo Tribunal Federal.

É altamente improvável que consiga tal objetivo, dado que o processo do STF está próximo da etapa decisiva. Os arruaceiros, no entanto, contam com o espírito de corpo do Parlamento para retardar, e se possível evitar, a devida punição por sua conduta truculenta e autoritária.

Já o centrão viu no imbróglio uma chance de blindar seus associados contra pressões judiciais e decidiu bancar o pacote, que também poderá contar com o apoio da direita bolsonarista e mesmo de setores da esquerda.

O interesse maior do consórcio fisiológico não é Bolsonaro, mas afastar o espectro do ministro Flávio Dino, do STF, que supervisiona investigações sobre desvios em emendas parlamentares.

Entre as propostas cogitadas, a mais saliente é a de que apurações envolvendo parlamentares só sejam iniciadas mediante autorização das respectivas Casas legislativas. Mesmo que algo assim venha a ser aprovado, é grande a probabilidade de o Supremo julgar a medida inconstitucional. Não se pode, por óbvio, criar uma casta de cidadãos que nem mesmo pode ser investigada.

O alvo principal do pacote é o foro especial, pelo qual políticos e outras autoridades não respondem penalmente na primeira instância, como a maioria das pessoas, mas em algum tribunal, que varia dependendo do cargo.

O dispositivo, embora possa parecer à primeira vista antirrepublicano, tem sua razão de ser. Ao menos em teoria, cortes colegiadas resistem melhor a pressões políticas do que juízes singulares de primeira instância. Elas teriam, portanto, maior latitude tanto para condenar poderosos quanto para inocentar réus politicamente perseguidos.

Historicamente, o desaforamento deu margem a tantos abusos que acabou se tornando sinônimo de impunidade, daí o apelido "foro privilegiado". No último par de décadas, porém, cortes superiores se tornaram mais assertivas, por vezes ativistas, e políticos passaram a temê-las em vez de procurar sua proteção.

O simples fato de parlamentares estarem ansiosos para limitar o instituto já é uma boa razão para mantê-lo. É claro que se pode discutir seu alcance para situações específicas. O próprio Supremo já fez isso, mais de uma vez.

Entretanto parlamentares, se tiverem interesse em preservar a imagem do Legislativo, deveriam adiar a discussão e só retomá-la fora de um contexto de chantagem contra as instituições.

Escândalo mergulha São Bernardo em incertezas

Folha de S. Paulo

Afastamento de prefeito e presidente da Câmara por suspeita de corrupção ameaça governabilidade na cidade do ABC paulista

É lamentável que eventuais atos ilícitos teimam em incrustar-se no poder; cumpre às autoridades apuração austera e eventual reparo aos cofres públicos

Os moradores de São Bernardo do Campo, a maior cidade do ABC paulista, foram surpreendidos na quinta-feira (14) com a notícia de que os chefes do Executivo e do Legislativo municipais haviam sido afastados por um ano de seus cargos, por determinação judicial, em investigação da Polícia Federal por suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro.

Primos e filiados ao Podemos, o prefeito Marcelo Lima e o presidente da Câmara Municipal, Danilo Lima, foram alvos da Operação Estafeta, que também atingiu um outro vereador, um secretário do gabinete, um servidor público e outras dezenas de suspeitos, incluindo empresários da região.

Além dos afastamentos, a Justiça determinou a quebra de sigilos bancário e fiscal —a prisão do alcaide foi negada, mas impôs-se o uso de tornozeleira eletrônica como medida cautelar.

De acordo com o Ministério Público, a organização criminosa recebia recursos a partir de contratos da prefeitura nas áreas de obras, saúde, coleta e informática, entre outros. Apura-se, inclusive, se os desvios bancaram gastos pessoais do prefeito e da família, como cartões de crédito e viagens internacionais.

Como já é praxe em operações do tipo, surreais quantias de dinheiro em espécie foram apreendidas: cerca de R$ 14 milhões em julho, no apartamento de Paulo Iran Paulino Costa, servidor da Assembleia Legislativa apontado como operador financeiro do esquema, ainda foragido, e R$ 3,2 milhões na investida recente.

Se ainda é imperativo aguardar o devido andamento do inquérito da PF e garantir amplo direito de defesa aos envolvidos, também cumpre às autoridades ampliar o escopo das investigações.

Em 2022, Marcelo Lima, então secretário de Serviços Urbanos, já enfrentava medidas cautelares relacionadas a denúncias de irregularidades em licitações. À época, era também vice de Orlando Morando, atual secretário de Segurança Urbana do prefeito de São PauloRicardo Nunes (MDB).

Sob horizonte incerto, a gestão interina está nas mãos da vice Jessica Cormick (Avante), uma sargento da PM neófita na política.

Com mais de 800 mil habitantes, São Bernardo do Campo marcou a história do país como berço do novo sindicalismo, na esteira do avanço da indústria automobilística, que forjou lideranças políticas como o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

É lamentável, pois, que esteja agora engolfada em suspeitas de práticas ilícitas que teimam em incrustar-se no poder, pondo em risco o andamento da administração e perpetuando o atraso.

Tarcísio está certo

O Estado de S. Paulo

Ele resumiu bem: ‘O Brasil não aguenta mais o Lula’ – e desbancá-lo é condição para superar o atraso. Mas os candidatos à direita devem saber que o Brasil também não aguenta mais Bolsonaro

“O Brasil não aguenta mais o PT, o Brasil não aguenta mais o Lula.” O desabafo do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, num encontro promovido pelo BTG Pactual com outros presidenciáveis de centro-direita, como Ratinho Jr., Eduardo Leite e Ronaldo Caiado, vocaliza mais que um diagnóstico político. É a expressão condensada de um esgotamento histórico, comprovado por dados e pelo cotidiano. Não se trata de mera retórica eleitoral. O sentimento popular, traduzido em índices de rejeição, ecoa uma realidade objetiva: o modelo lulopetista é fiscalmente insustentável, economicamente estagnante, institucionalmente corrosivo e diplomaticamente anacrônico.

Na oposição, recorde-se, o PT sempre foi irresponsável, rejeitando marcos civilizacionais, a começar pela Constituição e o Plano Real. No governo, o resultado foi inequívoco: retrocesso na produtividade, deterioração fiscal, aparelhamento do Estado, corrosão da moralidade pública e uma política externa que confunde alinhamento com ditaduras e hostilidade ao Ocidente com “soberania”. Na economia, o lulopetismo substituiu reformas estruturais por expansão desenfreada do gasto corrente, subsídios distorcivos e intervencionismo improvisado. O preço está na dívida crescente, no déficit crônico, nos juros exorbitantes, na paralisia do investimento privado. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 45 anos o Brasil despencou do 48.º para o 87.º lugar no ranking de PIB per capita, aproximando-se da metade mais pobre do planeta – e isso tem relação direta com o fato de que o Brasil foi governado pelo PT em 16 dos últimos 22 anos.

A cultura institucional moldada pelo PT é adversa ao mérito e complacente com o clientelismo. A máquina pública foi loteada a aliados; as estatais, transformadas em cabides de emprego; o Congresso é tratado ora como inimigo, ora como balcão de negócios. Na política externa, Lula insiste em bajular autocratas e dar declarações contra o “imperialismo estadunidense”, mesmo enquanto China, Europa ou até o Vietnã negociam pragmaticamente com Washington. No campo moral, a marca é um relativismo corrosivo: o partido que reivindica o monopólio da ética capitaneou o maior escândalo de corrupção da história nacional.

Ao dizer que o Brasil “não aguenta mais”, Tarcísio verbaliza um limite estrutural. A população sente – e as projeções confirmam – que o País não suporta mais regimes fiscais que empilham déficits e empurram a conta para o futuro. A exaustão também é geopolítica e tecnológica: enquanto o mundo corre atrás da transição energética e da economia do conhecimento, o lulopetismo insiste em reviver debates marxistas antediluvianos, preso a um saudosismo sindical e a rancores de grêmio estudantil.

Não é preciso endossar candidaturas para reconhecer que os princípios defendidos pelos governadores durante o encontro apontam na direção certa: responsabilidade social sustentada por responsabilidade fiscal, reforma orçamentária, modernização administrativa, combate à corrupção e privilégios e uma visão de futuro conectada às oportunidades globais. É essa virada de página que importa.

Mas, para ser completa, ela não pode omitir um dado incômodo: o Brasil não aguenta mais o bolsonarismo também. Entre os muitos males que Lula e o PT causaram ao País, um dos mais degradantes foi a ascensão de Jair Bolsonaro. O populismo bolsonarista foi um subproduto dialético do populismo lulopetista. O antipetismo viabilizou a ascensão de Bolsonaro, e o antibolsonarismo viabilizou o retorno de Lula, mantendo o País cativo de um ciclo infernal de ressentimento, radicalização e estagnação. Rompê-lo é condição para avançar. Como resumiu singelamente Ratinho Jr., basta eleger “uma pessoa normal”.

Virar a página não é trocar um demagogo por outro. É abandonar a mentalidade retrógrada que nos prende a crises recorrentes, colocar a responsabilidade fiscal no centro da agenda, reafirmar o compromisso com instituições sólidas e abraçar o mundo como ele é, e não como o imaginário ideológico o descreve. O Brasil não aguenta mais Lula e Bolsonaro – e, se não superá-los de uma vez, estará condenado à mais profunda mediocridade.

Um Congresso acima da lei

O Estado de S. Paulo

A pretexto de enfrentar abusos do STF, parlamentares parecem interessados em tornar o Congresso um Poder imune aos controles republicanos – exatamente a crítica que muitos fazem ao Supremo

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), declarou em entrevista à GloboNews que há “um ambiente de discussão” para restabelecer a exigência de prévia autorização legislativa para a abertura de inquéritos envolvendo parlamentares. Se esse despautério prosperar, o Brasil dará um salto de 24 anos para trás, destruindo um dos avanços institucionais mais relevantes desde a redemocratização do País. O Congresso, ao fim e ao cabo, tornar-se-ia um Poder imune aos devidos controles republicanos, fazendo desta uma república capenga.

Em 2001, foi promulgada a Emenda Constitucional (EC) 35, que fixou parâmetros claros para a imunidade parlamentar. Desde então, a abertura de ações penais em face de deputados e senadores pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – e, consequentemente, os inquéritos que as fundamentam – independe de autorização da respectiva Casa a que pertence o parlamentar investigado ou réu. A um só tempo, a EC 35 fortaleceu o princípio republicano fundamental, qual seja, a igualdade de todos perante a lei, e preservou a natureza da democracia representativa, garantindo aos parlamentares a inviolabilidade civil e penal apenas por suas opiniões, palavras e votos.

À época, os congressistas mantiveram certas prerrogativas que fazem sentido pela natureza de seu trabalho. Por exemplo: desde a diplomação, parlamentares não podem ser presos, “salvo em flagrante de crime inafiançável”. Também não estão obrigados a “testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato”. Estas, a rigor, são garantias da preservação da vontade livre e consciente dos eleitores, e não da pessoa do parlamentar.

O que o sr. Hugo Motta e muitos de seus pares têm defendido, porém, é a impunidade de deputados e senadores suspeitos de crimes comuns, alçando-os a uma classe especial de cidadãos, que passariam a estar imunes às leis. É o que pode acontecer, pois não é difícil imaginar que, diante da perspectiva de persecução criminal de um colega, o espírito de corpo haverá de prevalecer na maioria dos casos. Decerto vocalizando o desejo de muitos no Congresso, o que o presidente da Câmara propôs é reverter a lógica da imunidade parlamentar, criando uma casta intocável de cidadãos que apenas lograram ser eleitos para um mandato temporário. O efeito prático do eventual sucesso dessa monstruosidade legislativa será a legalização do compadrio.

A ameaça de retrocesso não se resume a esse ponto. Desde o momento em que uma malta de bolsonaristas tomou de assalto as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, começaram as tratativas desavergonhadas para restringir o alcance do foro especial por prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado, além do conjunto de medidas que ficou conhecido como a “PEC da Blindagem”. Tudo, é claro, sob o pretexto de reparar injustiças, erros ou abusos cometidos pelo STF, especialmente contra Jair Bolsonaro e outros réus por tentativa de golpe de Estado. A anistia ao ex-presidente, porém, é apenas o verniz na cara de pau: o objetivo real de próceres do Congresso é blindar parlamentares acusados de crimes graves perante o Supremo, como o desvio de bilhões de reais em emendas ao Orçamento da União.

Foi por essa razão que Motta afirmou que há um “incômodo” no Congresso porque “muitos parlamentares”, segundo ele, estariam sendo investigados “por crimes de opinião”. Ora, isso não é verdade. O que há são investigações e processos relativos a crimes de corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e outros, ainda que a responsabilização da delinquência ordinária venha mal disfarçada de “perseguição política” para justificar essas alterações constitucionais voltadas à impunidade.

É legítimo questionar decisões do STF e pugnar pela correção de eventuais abusos que alguns ministros possam cometer. Mas instrumentalizar as críticas ao Judiciário para criar um Congresso acima da lei é corroer o próprio sistema de freios e contrapesos que sustenta a República. Se o Congresso se autoconceder o poder de autorizar ou não a investigação de seus membros, o Brasil passará a ter um Poder que não presta contas a ninguém, exatamente a acusação que hoje se faz ao Supremo.

A inflação de Trump

O Estado de S. Paulo

Presidente nega, mas seu tarifaço começa a se espalhar pelos preços nos EUA

Como esperado, os efeitos da guerra tarifária do presidente Donald Trump já alimentam a inflação nos EUA. Em julho, o índice de preços ao produtor (PPI, na sigla em inglês) subiu 0,9% em relação a junho, quando o esperado era um avanço de 0,2%. Em 12 meses, o PPI teve elevação de 3,3%, o maior patamar desde fevereiro deste ano. Já o núcleo do PPI, que exclui preços mais suscetíveis à volatilidade, como os de alimentos e energia, teve alta mensal de 0,6% em julho, maior patamar desde março de 2022.

Poucos dias antes, os dados de inflação ao consumidor (CPI, na sigla em inglês) já sinalizavam que o período em que empresas utilizaram o que tinham em estoque, anteciparam importações e seguraram os repasses ao consumidor das tarifas impostas por Trump era coisa do passado.

Mas mesmo com CPI anual de 2,7% em julho, muito acima da meta de 2% ao ano perseguida pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), parte do mercado chegou a apostar em queda de juros no mês que vem.

O secretário do Tesouro, Scott Bessent, não se furtou a aventar (e depois negar) a possibilidade de corte nos juros norte-americanos em setembro, numa clara tentativa de agradar ao chefe Trump, para quem a inflação nos EUA é praticamente inexistente.

Não é o que dizem os dados. A bem da verdade, o PPI demolidor de julho reflete apenas efeito parcial do tarifaço, já que as alíquotas mais punitivas (como a de 50% sobre o café brasileiro, por exemplo) entraram em vigor recentemente e ainda não aparecem nos indicadores. O que está ruim, portanto, só tende a piorar.

Em um cenário desses, dificilmente um banco central técnico e independente, como tem sido ao longo das últimas décadas o dos EUA, tem margem para reduzir juros. O único elemento que, no momento, permitiria vislumbrar um corte de juros é o enfraquecimento do mercado de trabalho.

Ocorre que Trump não só alardeia que a inflação é zero nos EUA, como também bravateia que o mercado de trabalho está a pleno vapor, exibindo orgulhosamente toda a sua ignorância econômica. Mercado de trabalho pleno e inflação inexistente são realidade apenas em mentes alienadas como a do republicano.

O problema é que Trump é um delirante com poder nas mãos, e tem conseguido impor, na base do grito e da chantagem, praticamente tudo o que deseja. Irritado com as estatísticas oficiais, que somente refletem uma economia que apenas começou a se deteriorar, o presidente vem atirando para matar os mensageiros.

Foi o que aconteceu com Erika McEntarfer, a comissária que comandava o departamento responsável pela coleta, análise e divulgação dos dados de emprego, bem como do CPI e PPI. Trump não só a demitiu, como para o lugar dela indicou um economista obscuro que já propôs suspender o relatório mensal de emprego.

Até o momento, o Fed, na figura do presidente Jerome Powell, é uma das poucas forças de resistência a Trump. O PPI de julho apenas corrobora a conduta cautelosa da política monetária. Powell tem o apoio dos dados, mas não o de Trump.

Da resolução desse impasse depende não só o futuro dos juros nos EUA, como o da economia global.

A hora do salto de qualidade

Correio Braziliense

O Plano Brasil Soberano dá bons instrumentos para o enfrentamento do tarifaço, mas é insuficiente. Obrigará o país a algo que sempre teve imensa dificuldade em fazer: abrir o mercado

Se o governo tinha esperanças de que a crise que abala as conexões entre Brasil e Estados Unidos se amenizaria com a negociação para a suspensão ou a mitigação daquilo que restou do tarifaço, tem agora a certeza de que extrapolou a seara econômica e contaminou a política. O Plano Brasil Soberano dá bons instrumentos para o enfrentamento da tempestade provocada por Donald Trump no comércio internacional e nas relações de confiança entre antigos aliados, mas é insuficiente. Isso obrigará o país a algo que sempre teve imensa dificuldade em fazer: abrir o mercado.

Das grandes economias mundiais, a brasileira é uma das mais fechadas, por conta, em grande parte, de um permanente desequilíbrio fiscal. Taxar importados é uma forma de arrecadação preguiçosa, mas eficiente. Há, porém, setores do empresariado brasileiro que se acostumaram a uma certa reserva de mercado e têm arrepios à simples menção da palavra "competitividade". Mantêm o país em descompasso tecnológico com as nações mais avançadas e, sempre que ameaçados, acenam com a redução de postos de trabalho, ante a hipótese de enfrentarem um rival importado melhor e mais barato. Como governo algum quer ser acusado de ser responsável por desaquecimento na produção e por maiores percentuais de desemprego, cede com mais concessões.

O trauma generalizado causado por Trump nas relações entre as nações, sejam comerciais ou diplomáticas, obrigará o governo e o empresariado brasileiros a encontrarem fórmulas que deem condições à abertura da economia nacional. E pelo óbvio motivo de que a busca de novas parcerias pressupõe disposição em receber aquilo que o outro país não tem para onde escoar. É simples entender: se quero aumentar meu fluxo de comércio, para compensar o que os EUA não mais me oferecem, preciso ser receptivo a um volume de produtos maior do que o que me satisfazia até então.

Isso, claro, mexe com o mercado e a produção interna. Alíquotas de impostos terão de ser revistas, burocracias precisarão ser suspensas, canais de escoamento passarão por melhorias, logísticas carecerão de mais eficiência. Representa que o fluxo de comércio dentro do país será profundamente afetado. A exigência aumentará, trazendo no bojo a necessidade de investimentos do Estado na ampliação dessa cadeia. Um Plano Brasil Soberano II, em adição ao recém-lançado, seria obrigatório.

Em recente entrevista, o empresário Lawrence Pih, maior produtor brasileiro de farinha de trigo, ousou dizer — para horror de economistas, parcela do empresariado e analistas de mercado — que o Brasil não precisa dos EUA para coisa alguma e que Trump, sem saber, nos dá a chance de intensificarmos as trocas com outros países e contornarmos rapidamente a barreira norte-americana. Advertiu que teremos de ceder mais do que estamos acostumados, mas frisou que, dessa maneira, daremos o salto de qualidade e de capacidade que há muito almejamos.

Relatório dos EUA é mais um ataque ao Brasil

O Povo (CE)

Por tudo o que se conhece de Donald Trump, ele não é a pessoa mais indicada para dar aulas de liberdade de expressão ou sobre direitos humanos

O relatório do Escritório de Direitos Humanos do Departamento de Estado dos EUA, divulgado na terça-feira, foi usado como mais uma peça de ataque ao governo brasileiro e ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Esse documento é emitido todos os anos pelos Estados Unidos, abrangendo todos os países que fazem parte da Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, em vez de um levantamento técnico e referenciado em fatos, o deste ano (referente a 2024) claramente obedece às injunções políticas do presidente Donald Trump.

Como sempre acontece, quando se trata de Donald Trump, sobressaem as imprecisões, avolumam-se as mentiras e destacam-se as ofensas e agressões disparatadas a quem ele elege como inimigo.

Observa-se que o relatório alivia para os países considerados aliados do governo americano, como Israel e El Salvador, mas pesa a mão contra o Brasil, em litígio com os Estados Unidos devido ao tarifaço imposto por Washington.

O documento começa com duas afirmações falsas. A primeira sobre a avaliação dos direitos humanos no Brasil e, a outra, a respeito de decisões tomadas pelo sistema judiciário.

De acordo com o relatório, "a situação dos direitos humanos piorou no Brasil ao longo do ano (2024)", referência ao governo Lula. Quanto ao sistema Judiciário, o texto afirma que os "tribunais (brasileiros) tomaram medidas amplas e desproporcionais para minar a liberdade de expressão e a liberdade na internet", referência ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

O fato é que Moraes age conforme a legislação brasileira, com todas as suas decisões referendadas pela Primeira Turma do STF, onde correm os processos contra Bolsonaro. Além de tudo, parece haver uma certa confusão no relatório, como se o Executivo fosse responsável pelas decisões do Judiciário. Quanto afirmar que houve deterioração na área dos direitos humanos durante o mandato de Lula, trata-se de falsidade.

Mas a situação se torna mais grave ainda, como assinalou este jornal em seu editorial na edição de ontem, quando o secretário de Estado, Marco Rubio, faz uma acusação absurda contra o Brasil. Ele alega que o programa brasileiro Mais Médicos envolveu um "esquema de exportação de trabalho forçado" por parte de Cuba, ao qual os médicos cubanos eram submetidos.

Pelo que se observa, os Estados Unidos não demonstram interesse em negociar. Além disso, parecem dispostos a escalar a crise a níveis nunca vistos na relação de mais de 200 anos entre os dois países.

É ainda preciso dizer que, por tudo o que se conhece de Donald Trump, ele não é a pessoa mais indicada para dar aulas de liberdade de expressão ou sobre direitos humanos. 

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