sábado, 16 de agosto de 2025

Indivíduos inconvenientes, por Eduardo Affonso

O Globo

Antagonismo impede conceber a existência de alternativas ao que for binário e esquemático. Cria um mundo em preto e branco

Se Buda vivesse hoje entre nós, estaria lascado. Sua teoria do “caminho do meio” — evitar os excessos, buscar o equilíbrio, se abrir a novas perspectivas, se adaptar às mudanças — lhe valeria a pecha de isentão e covarde por parte de lulistas e bolsonaristas, que se consideram antípodas, sem perceber que estão nas pontas da ferradura, a intolerância de uns roçando o cotovelo no autoritarismo dos outros.

Na coluna da semana passada, havia este trecho: “Sete anos, um ex-presidiário e um futuro presidiário depois”. Muitos pararam na menção ao ex-presidiário: ela fazia de mim um direitista; outros só leram a do futuro presidiário, inequívoco sinal de esquerdismo. Por sorte, a polarização não chegou (ainda) à aritmética, ou o número sete também teria sido alvo de ataques (é ímpar, logo é comunista; é primo, portanto fascista). Esse antagonismo impede conceber a existência de alternativas ao que for binário e esquemático. Cria um mundo em preto e branco — os infinitos tons de cinza são uma heresia, as cores estão fora de cogitação, seja na política, na ciência, na arte, no comportamento.

A professora Catarina Rochamonte tocou no tema, no site O Antagonista:

— Me insiro ideologicamente em um espectro que oscila do campo liberal-conservador à esquerda social-democrata, ou seja, tenho por campo político mais familiar a centro-direita, mas aceno favorável e complacentemente à centro-esquerda. (...) Se não há lado certo, por que se juntar a um dos lados errados em vez de apontar o erro de ambos? (...) O fanatismo político nos trouxe até aqui. A prudência e a escolha criteriosa do eleitor “isentão” em 2026 pode ser o primeiro passo para nos retirar dessa lama.

Pegaram-na para Buda. Os comentários a seu artigo mostram o nível de dissonância cognitiva de quem prefere o megafone aos argumentos: “O isentão sempre vai cair para o lado direito do muro”, “O isentão é um joão-bobo que só cai para a esquerda”, “Covarde, oportunista, imbecil, canalha”, “A Bíblia condena o isento”, “Isentão é esquerdista enrustido”, “O isentão sempre se revela ser de direita”, “Apocalipse 3:15-16: não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca”, “Ser isento é ir contra o conceito de que existe uma verdade. Isso é satânico”.

No dicionário dos polarizados, “covarde” quer dizer “pessoa que tem o desplante de pensar de modo diferente do meu”. “Em cima do muro” é “expressão idiomática usada para qualificar quem se rege por outros parâmetros: no mundo do garfo e faca, o hashi está em cima do muro; no mundo do Fla x Flu, são os botafoguenses, vascaínos, corintianos, cruzeirenses que estão lá”. Só que o isentão não está acomodado em muro algum, mas abrindo um caminho em meio a duas facções que se acham donas do pedaço, investindo no diálogo com a direita não troglodita e com a esquerda democrática (sim, elas existem).

Estamos para os polarizados assim como os cidadãos estão para os juízes do Tribunal Superior do Trabalho: somos indivíduos inconvenientes, não deveríamos existir. Mas a sala VIP de lulistas e bolsonaristas — onde se retroalimentam e se revezam no toma lá dá cá, no cerceamento à liberdade de expressão e no desmonte da democracia – é bancada com nosso voto e nossos recursos. Passou da hora de acabar com essa mordomia.


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