sábado, 16 de agosto de 2025

Sobre direitos humanos, por Flávia Oliveira

O Globo

Presidente americano persegue imigrantes sem documentos em ruas, locais de trabalho e até igrejas

O Brasil não é imaculado em violações de direitos humanos. Longe disso. Ano sim, ano também, organizações dedicadas ao tema alertam, em documentos robustos, sobre toda sorte de abusos cometidos em território nacional. Denunciam condições desumanas nas penitenciárias estaduais, tornadas vetores de doenças e incubadoras de facções do crime organizado. Enfileiram casos de violência policial; assassinatos de ativistas por reforma agrária, demarcação de territórios indígenas, titulação de áreas quilombolas. Apontam supressão de direitos à população LGBTQIAP+; trabalho em condições análogas à escravidão; extermínio da juventude negra; exploração sexual de crianças e adolescentes. A Lei Maria da Penha (11.340/2006), contra violência doméstica, teve como impulso uma condenação do país pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.

Em 2021, oito relatores da ONU subscreveram carta cobrando explicações do governo de Jair Bolsonaro (PL) pelo aumento da violência contra os povos nativos. Na pandemia da Covid-19, o então presidente também foi denunciado no exterior pelo descaso com indígenas e comunidades tradicionais. Meses atrás, relatório da Anistia Internacional situava o país como um dos mais perigosos para quem luta por direito à terra e destacava a impunidade persistente em relação à brutalidade de agentes do Estado. O próprio documento que os Estados Unidos apresentaram na última terça-feira menciona relatos de “homicídios arbitrários ou ilegais” decorrentes da Operação Escudo, no litoral de São Paulo, pela polícia do governador bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos).

O Brasil, sabemos, está longe de ser paraíso do respeito aos direitos humanos. Mas causa espanto que o conceito seja evocado para intimidar uma nação amiga pelo governo de um presidente que já defendeu a transformação de Gaza em balneário de férias; que persegue imigrantes sem documentos em ruas, locais de trabalho e até igrejas; que propõe solapar a cidadania por nascimento, prevista na Constituição americana desde o século XIX; que restringiu a identidade de gênero ao sexo biológico; que deporta indivíduos para países onde não nasceram. Ainda ontem, em sanção pela contratação de cubanos para o programa Mais Médicos, entre 2013 e 2018, o Consulado dos Estados Unidos em São Paulo comunicou a suspensão dos vistos da mulher e da filha, uma criança de 10 anos, do ministro da Saúde, Alexandre Padilha.

É movido pelo interesse de proteger um aliado da extrema direita e corporações que se pretendem imunes à regulação que Donald Trump ataca o Brasil num campo que nunca tratou como prioridade. Nem ele nem Bolsonaro, que consagrou o bordão “Bandido bom é bandido morto”; ajudou a popularizar a expressão “CPF cancelado” como eufemismo para execuções policiais; sempre que pôde, exaltou a ditadura militar no Brasil; proclamou como ídolo o coronel-torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra; propôs fuzilar adversários políticos.

No Relatório sobre Práticas de Direitos Humanos, os Estados Unidos acusam o STF de restringir a liberdade de expressão e de prender indevidamente e sem assistência jurídica “centenas de indivíduos acusados de participação nos protestos que levaram à invasão de prédios governamentais em 8 de janeiro de 2023”. Ignoram a aplicação da lei de crimes contra a democracia, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo próprio Bolsonaro em 2021. O Código Penal, no Artigo 359-L, pune com reclusão de quatro a oito anos tentar abolir o Estado Democrático de Direito; no 359-M, impõe quatro a 12 anos de prisão a quem tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.

A Polícia Federal investigou a trama golpista; a Procuradoria-Geral da República denunciou; a Primeira Turma do STF acolheu. Bolsonaro e outros sete réus, entre os quais três generais e um almirante, vão a julgamento a partir de 2 de setembro. Autores dos ataques de 8 de janeiro foram identificados e julgados. Em abril de 2023, receberam a visita, no Complexo Penitenciário da Papuda (DF), da então presidente do STF, Rosa Weber, e do ministro Alexandre de Moraes, para verificar as condições do cárcere. Dos 279 condenados por tentativa de golpe, abolição do Estado Democrático, dano qualificado, associação criminosa e deterioração do patrimônio público, 141 seguem presos.

No recém-lançado — e para lá de oportuno — “Dicionário de direitos humanos e afins”, Nei Lopes, um dos maiores intelectuais do país, define democracia como “a forma de governo na qual o povo exerce a soberania, ou seja, a autoridade moral suprema, através de representantes eleitos pelo voto popular”. Direitos humanos são as “prerrogativas básicas de que gozam todos os seres humanos, a começar pelo direito à própria vida e, continuando, por suas garantias como cidadãos”. Dizem respeito a todos, não ao escolhido por um grupo político, uma família ou um líder estrangeiro.

 

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