O Globo
Presidente americano persegue imigrantes sem
documentos em ruas, locais de trabalho e até igrejas
O Brasil não é imaculado em violações de direitos humanos. Longe disso. Ano sim, ano também, organizações dedicadas ao tema alertam, em documentos robustos, sobre toda sorte de abusos cometidos em território nacional. Denunciam condições desumanas nas penitenciárias estaduais, tornadas vetores de doenças e incubadoras de facções do crime organizado. Enfileiram casos de violência policial; assassinatos de ativistas por reforma agrária, demarcação de territórios indígenas, titulação de áreas quilombolas. Apontam supressão de direitos à população LGBTQIAP+; trabalho em condições análogas à escravidão; extermínio da juventude negra; exploração sexual de crianças e adolescentes. A Lei Maria da Penha (11.340/2006), contra violência doméstica, teve como impulso uma condenação do país pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
Em 2021, oito relatores da ONU subscreveram
carta cobrando explicações do governo de Jair
Bolsonaro (PL) pelo aumento da violência contra os povos nativos. Na
pandemia da Covid-19, o então presidente também foi denunciado no exterior pelo
descaso com indígenas e comunidades tradicionais. Meses atrás, relatório da
Anistia Internacional situava o país como um dos mais perigosos para quem luta
por direito à terra e destacava a impunidade persistente em relação à
brutalidade de agentes do Estado. O próprio documento que os Estados Unidos
apresentaram na última terça-feira menciona relatos de “homicídios arbitrários
ou ilegais” decorrentes da Operação Escudo, no litoral de São Paulo, pela
polícia do governador bolsonarista Tarcísio
de Freitas (Republicanos).
O Brasil, sabemos, está longe de ser paraíso
do respeito aos direitos humanos. Mas causa espanto que o conceito seja evocado
para intimidar uma nação amiga pelo governo de um presidente que já defendeu a
transformação de Gaza em balneário de férias; que persegue imigrantes sem
documentos em ruas, locais de trabalho e até igrejas; que propõe solapar a
cidadania por nascimento, prevista na Constituição americana desde o século
XIX; que restringiu a identidade de gênero ao sexo biológico; que deporta
indivíduos para países onde não nasceram. Ainda ontem, em sanção pela
contratação de cubanos para o programa Mais Médicos, entre 2013 e 2018, o
Consulado dos Estados Unidos em São Paulo comunicou a suspensão dos vistos da
mulher e da filha, uma criança de 10 anos, do ministro da Saúde, Alexandre
Padilha.
É movido pelo interesse de proteger um aliado
da extrema direita e corporações que se pretendem imunes à regulação que Donald Trump ataca
o Brasil num campo que nunca tratou como prioridade. Nem ele nem Bolsonaro, que
consagrou o bordão “Bandido bom é bandido morto”; ajudou a popularizar a
expressão “CPF cancelado” como eufemismo para execuções policiais; sempre que
pôde, exaltou a ditadura militar no Brasil; proclamou como ídolo o
coronel-torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra; propôs fuzilar adversários
políticos.
No Relatório sobre Práticas de Direitos
Humanos, os Estados Unidos acusam o STF de
restringir a liberdade de expressão e de prender indevidamente e sem
assistência jurídica “centenas de indivíduos acusados de participação nos
protestos que levaram à invasão de prédios governamentais em 8 de janeiro de
2023”. Ignoram a aplicação da lei de crimes contra a democracia, aprovada pelo
Congresso Nacional e sancionada pelo próprio Bolsonaro em 2021. O Código Penal,
no Artigo 359-L, pune com reclusão de quatro a oito anos tentar abolir o Estado
Democrático de Direito; no 359-M, impõe quatro a 12 anos de prisão a quem
tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente
constituído.
A Polícia Federal investigou a trama
golpista; a Procuradoria-Geral da República denunciou; a Primeira Turma do STF
acolheu. Bolsonaro e outros sete réus, entre os quais três generais e um
almirante, vão a julgamento a partir de 2 de setembro. Autores dos ataques de 8
de janeiro foram identificados e julgados. Em abril de 2023, receberam a
visita, no Complexo Penitenciário da Papuda (DF), da então presidente do
STF, Rosa Weber,
e do ministro Alexandre
de Moraes, para verificar as condições do cárcere. Dos 279 condenados por
tentativa de golpe, abolição do Estado Democrático, dano qualificado,
associação criminosa e deterioração do patrimônio público, 141 seguem presos.
No recém-lançado — e para lá de oportuno — “Dicionário
de direitos humanos e afins”, Nei Lopes, um dos maiores intelectuais do país,
define democracia como “a forma de governo na qual o povo exerce a soberania,
ou seja, a autoridade moral suprema, através de representantes eleitos pelo
voto popular”. Direitos humanos são as “prerrogativas básicas de que gozam
todos os seres humanos, a começar pelo direito à própria vida e, continuando,
por suas garantias como cidadãos”. Dizem respeito a todos, não ao escolhido por
um grupo político, uma família ou um líder estrangeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário