Aquele rio
está na memória 
como um cão vivo 
dentro de uma sala. 
Como um cão vivo 
dentro de um bolso. 
Como um cão vivo 
debaixo dos lençóis, 
debaixo da camisa, 
da pele. 
Um cão, porque vive, 
é agudo. 
O que vive 
não entorpece. 
O que vive fere. 
O homem, 
porque vive, 
choca com o que vive. 
Viver 
é ir entre o que vive. 
O que vive 
incomoda de vida 
o silêncio, o sono, o corpo 
que sonhou cortar-se 
roupas de nuvens. 
O que vive choca, 
tem dentes, arestas, é espesso. 
O que vive é espesso 
como um cão, um homem, 
como aquele rio. 
Como todo o real 
é espesso. 
Aquele rio 
é espesso e real. 
Como uma maçã 
é espessa. 
Como um cachorro 
é mais espesso do que uma maçã. 
Como é mais espesso 
o sangue do cachorro 
do que o próprio cachorro. 
Como é mais espesso 
um homem 
do que o sangue de um cachorro. 
Como é muito mais espesso 
o sangue de um homem 
do que o sonho de um homem. 
Espesso 
como uma maçã é espessa. 
Como uma maçã 
é muito mais espessa 
se um homem a come 
do que se um homem a vê. 
Como é ainda mais espessa 
se a fome a come. 
Como é ainda muito mais espessa 
se não a pode comer 
a fome que a vê. 
Aquele rio 
é espesso 
como o real mais espesso. 
Espesso 
por sua paisagem espessa, 
onde a fome 
estende seus batalhões de secretas 
e íntimas formigas. 
E espesso 
por sua fábula espessa; 
pelo fluir 
de suas geléias de terra; 
ao parir 
suas ilhas negras de terra. 
Porque é muito mais espessa 
a vida que se desdobra 
em mais vida, 
como uma fruta 
é mais espessa 
que sua flor; 
como a árvore 
é mais espessa 
que sua semente; 
como a flor 
é mais espessa 
que sua árvore, 
etc. etc. 
Espesso, 
porque é mais espessa 
a vida que se luta 
cada dia, 
o dia que se adquire 
cada dia 
(como uma ave 
que vai cada segundo 
conquistando seu vôo).
João Cabral de Melo Neto 
"O Cão sem Plumas"
In Poesias Completas (1940-1965)
José Olympio, 3a. ed., 1979

 
 
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