quinta-feira, 30 de outubro de 2025

A USP diante da intolerância, por Maria Hermínia Tavares

Folha de S. Paulo

A universidade não pode ser campo de batalha de 'guerras culturais'

Grupos de extrema direita atacaram espaços ocupados por estudantes da FFLCH

Universidade de São Paulo se prepara para escolher quem ocupará a Reitoria nos próximos quatro anos.

USP é responsável por 20% da produção científica brasileira; rankings internacionais a situam nos primeiros lugares entre as universidades latino-americanas e entre as 100 ou 200 instituições mais importantes do mundo. A cada ano, nela se titulam, em média, quase 6.000 pós-graduados —mestres e doutores. Mais do que isso, ali se formam não só lideranças científicas e culturais, mas também quadros qualificados para governos e partidos, empresas e organizações da sociedade.

Junto com a Unicamp e a Unesp, a USP constitui o alicerce de um robusto sistema de produção de ciência e cultura, que distingue o Estado de São Paulo.

Desde 2017, uma renovação social, tão importante quanto silenciosa, vem ocorrendo em seus campi. A adoção de políticas afirmativas —sob a forma de cotas raciais e para estudantes egressos da escola pública— tornou seu corpo docente mais diverso e próximo das cores e da composição social da população brasileira.

Por sua importância para o país, tudo o que ali ocorre é de interesse geral. Mas nem tudo é promissor. A intolerância política, que alimenta as bolhas radicais na sociedade, é hoje, como não poucas vezes foi, uma realidade nos campi da maior universidade brasileira.

Recentemente, o Jornal do Campus noticiou encorpada manifestação de estudantes que, reunidos na principal praça da sede do Butantã, entoavam cânticos religiosos e gritavam que "a USP pertence ao Senhor Jesus Cristo!" e bradavam contra Karl Marx acusado de "possuir’ (sic) a universidade. O evento foi organizado por um certo Dunamis Movement, empenhado na "guerra espiritual contra o comunismo".

O despropósito se soma a incursões de grupos de extrema direita que, ao longo deste ano, atacaram espaços ocupados por estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, rasgando cartazes e ameaçando os presentes.

Por seu turno, a Congregação da FFLCH, em solidariedade ao povo palestino, decidiu romper um convênio de cooperação científica com a Universidade de Haifa, em Israel. Pouco mais de 42% dos estudantes dessa universidade são palestinos, assim como sua atual reitora. O gesto dá sequência a outras manifestações, em que a justa oposição à matança promovida pelo governo israelense chegou a cruzar a linha do antissemitismo.

Bem-sucedida em promover a diversidade social, a USP tem agora o dever de garantir o pluralismo de ideias, que já existe de fato entre as mais de 120 mil pessoas que compõem a comunidade universitária —alunos, professores e funcionários. O desafio é colocar as diferenças frente a frente por meio de um debate organizado e respeitoso.

A USP não pode ser campo de batalha de "guerras culturais" nutridas pela ignorância, mas o lugar onde a discussão de valores relativos à vida pública ou ao comportamento privado permita a convivência civilizada dos diferentes pontos de vista.

A alternativa é o crescimento dos redutos da intolerância, incompatíveis com a missão da universidade pública. Eis a intransferível responsabilidade das lideranças que assumirão no ano que vem e do conjunto dos professores dessa grande casa do conhecimento.

 

 

Nenhum comentário: