Folha de S. Paulo
A universidade não pode ser campo de batalha
de 'guerras culturais'
Grupos de extrema direita atacaram espaços
ocupados por estudantes da FFLCH
A Universidade de
São Paulo se prepara para escolher quem ocupará a Reitoria nos próximos quatro
anos.
A USP é
responsável por 20% da produção científica brasileira; rankings internacionais
a situam nos primeiros lugares entre as universidades latino-americanas e entre
as 100 ou 200 instituições mais importantes do mundo. A cada ano, nela se
titulam, em média, quase 6.000 pós-graduados —mestres e doutores. Mais do que
isso, ali se formam não só lideranças científicas e culturais, mas também
quadros qualificados para governos e partidos, empresas e organizações da
sociedade.
Junto com a Unicamp e a Unesp, a USP
constitui o alicerce de um robusto sistema de produção de ciência e cultura,
que distingue o Estado de São Paulo.
Desde 2017, uma renovação social, tão importante quanto silenciosa, vem ocorrendo em seus campi. A adoção de políticas afirmativas —sob a forma de cotas raciais e para estudantes egressos da escola pública— tornou seu corpo docente mais diverso e próximo das cores e da composição social da população brasileira.
Por sua importância para o país, tudo o que
ali ocorre é de interesse geral. Mas nem tudo é promissor. A intolerância
política, que alimenta as bolhas radicais na sociedade, é hoje, como não poucas
vezes foi, uma realidade nos campi da maior universidade brasileira.
Recentemente, o Jornal do Campus noticiou
encorpada manifestação
de estudantes que, reunidos na principal praça da sede do
Butantã, entoavam cânticos religiosos e gritavam que
"a USP pertence ao Senhor Jesus Cristo!" e bradavam contra Karl Marx
acusado de "possuir’ (sic) a universidade. O evento foi organizado por um
certo Dunamis
Movement, empenhado na "guerra espiritual contra o
comunismo".
O despropósito se soma a incursões de grupos
de extrema direita que, ao longo deste ano, atacaram espaços ocupados por
estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, rasgando
cartazes e ameaçando os presentes.
Por seu turno, a Congregação da FFLCH, em
solidariedade ao povo palestino, decidiu romper um convênio de cooperação
científica com a Universidade de Haifa, em Israel. Pouco mais de 42% dos
estudantes dessa universidade são palestinos, assim como sua atual reitora. O
gesto dá sequência a outras manifestações, em que a justa oposição à matança
promovida pelo governo israelense chegou a cruzar a linha do antissemitismo.
Bem-sucedida em promover a diversidade
social, a USP tem agora o dever de garantir o pluralismo de ideias, que já
existe de fato entre as mais de 120 mil pessoas que compõem a comunidade
universitária —alunos, professores e funcionários. O desafio é colocar as
diferenças frente a frente por meio de um debate organizado e respeitoso.
A USP não pode ser campo de batalha de
"guerras culturais" nutridas pela ignorância, mas o lugar onde a
discussão de valores relativos à vida pública ou ao comportamento privado
permita a convivência civilizada dos diferentes pontos de vista.
A alternativa é o crescimento dos redutos da
intolerância, incompatíveis com a missão da universidade pública. Eis a
intransferível responsabilidade das lideranças que assumirão no ano que vem e
do conjunto dos professores dessa grande casa do conhecimento.

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