O Estado de S. Paulo
A tensão entre esquerda e direita se acentuou, ao passo que o centro moderado se esvaziou. A política se tornou polarizada, sem mediações
Quando Norberto Bobbio publicou seu famoso
opúsculo Direita e Esquerda, em 1994, corria solta a ideia de que a
dicotomia esquerda x direita havia sido devorada pelas transformações do
capitalismo e pelo avanço do neoliberalismo. Falava-se que direita e esquerda
haviam perdido significado porque teriam os mesmos fins imediatos e poderiam
enveredar pelo mesmo padrão de populismo.
Bobbio respondeu dizendo que não se pode negar validade àquilo que está colado no imaginário coletivo e na linguagem cotidiana. Esquerda e direita têm uma carga emotiva ineliminável e servem para organizar os conflitos políticos. Distinguem-se pelo modo como se relacionam com o igualitarismo (traço distintivo da esquerda), a democracia política e os direitos.
Com as transformações recentes das sociedades
contemporâneas, a tensão entre esquerda e direita se acentuou, ao passo que o
centro moderado se esvaziou. A política se tornou polarizada, sem mediações.
Não há uma só direita, nem uma só esquerda.
Ambas congregam várias posições. Trabalhistas, socialistas e social-democratas,
sabidamente reformistas, compartilharam a esquerda com comunistas
revolucionários. Pelas sendas da direita, o extremismo fanático e reacionário
sempre se diferenciou de conservadores e liberais moderados, atacando-os com
fúria.
Também há distinções entre os liberais. Eles
podem flertar com modalidades suavizadas de socialismo ou pender para um
conservadorismo vetusto. Podem, além disso, pensar a economia em termos de livre
mercado, mas serem sensíveis a políticas de distribuição de renda, direitos e
autonomia individual. Todo liberal admira os procedimentos formais da
democracia, as liberdades e os valores éticos, por mais que se incline para a
direita ou a esquerda.
Hoje, o extremismo de direita avançou. Em muitos países, suas pegadas são claras: a grosseria, a submissão fanática a um líder populista, a defesa étnica e territorial do povo-nação, o autoritarismo, a disposição de produzir caos e confusão. Esses traços espalham-se e dão origem a modulações ou partidos diferentes. No Brasil, por exemplo, o cronista Carlos Andreazza, do Estadão, fala em “bolsonarismo eduardista”, para diferenciá-lo das alas mais “light”. Por aqui, o bolsonarismo é direitista, mas há outras modalidades de direita, umas mais fisiológicas, outras mais pragmáticas, além de uma direita ideológica, liberalconservadora.
Se reunirmos tudo isso sob o rótulo de
“direita”, não estaremos errados, mas perderemos precisão analítica.
Na esquerda, a situação é parecida. Há
progressistas espalhados por diversos partidos, e é justo que sejam vistos como
parte da esquerda. O PT, partido mais forte da esquerda, necessita de
composições para governar, mas nem sempre abraça o campo democrático
progressista ou inclui os demais partidos de esquerda, o que favorece as
oligarquias predominantes.
O manto da esquerda recobre não só aqueles
que se proclamam de esquerda, mas todos os progressistas e democratas que
defendem uma sociedade mais justa e igualitária. O universo é heterogêneo:
desenvolvimentistas, ambientalistas, estatistas, neoliberais,
assistencialistas, socialistas, moderados, comunistas, radicais, realistas,
ideológicos. É difícil encontrar um ponto ótimo que os unifique. O que faz com que
não haja, entre eles, unidade política ou de projetos. Alianças surgem em
momentos eleitorais, mas se desfazem no fechar das urnas.
Falar em esquerda, no singular, só faz
sentido se considerarmos essas distinções.
A polarização lulismo x bolsonarismo, prevalecente
no Brasil, força a realidade e só capta parte dela. Continua a ter força para
dificultar o surgimento de outras candidaturas competitivas. Mas não domina a
sociedade toda. Flutua sobre ela. Saber valorizar as diferenças específicas nos
ajuda a entender melhor o jogo que está sendo jogado.
Polarizações são parte da política, mas ficam
tóxicas quando turvam a livre manifestação de todos e inscrevem, nas disputas,
considerações passionais reciprocamente excludentes e cegas para o quadro
abrangente. Criam-se, assim, blocos adversários para servirem de contrapontos
ideológicos típico-ideais, que deixam de lado projetos e valores substantivos.
Uma metáfora sugerida pelo cientista político Paulo Fábio Dantas Neto nos ajuda
a entender: polarizações tóxicas são como “brigas de turma”: os bandos se pegam
na praça, os transeuntes passam indiferentes, alguns vaiam e aplaudem. No fim,
os brigões debandam. Uns mais esfarrapados, outros mais machucados.
As esquerdas, incluídos progressistas e
democratas, não morreram, evidentemente. Mas estão sob pressão. Se não forem
além dos nichos em que se abrigam e não apresentarem projetos que falem para
todos – e não somente contra as direitas –, poderão se isolar e perder
identidade. Além disso, se quiserem vencer o extremismo de direita, terão de
pedir ajuda à direita moderada, aos liberais, à centro-direita. E explicitar
com clareza as ideias com que pretendem governar o mundo.

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