quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Uma crise em duas imagens? Por Malu Gaspar

O Globo

A imagem que traduzirá para a História a operação policial mais letal que já se fez são as dezenas de corpos estirados no chão de uma praça vizinha aos complexos do Alemão e da Penha, recolhidos na mata pelos próprios moradores. São cadáveres de homens muito jovens, quase todos negros, um com a cabeça cortada, outros com marca de algemas nos pulsos. Para o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), são criminosos, não vítimas. Não mereciam nem sequer prisão ou julgamento, mas eliminação.

Por esse viés, 121 mortos são prova de sucesso, embora no Brasil não haja pena de morte e, pelo menos oficialmente, não se autorizem execuções sumárias em ações policiais. A justificativa para a matança é que estamos em guerra, e não se faz guerra sem mortes. Boa parte da população endossa esse discurso, daí por que Castro tem capitalizado politicamente a operação.

Pouco importa que não se tenha capturado o principal alvo, Edgar Alves de Andrade, o Doca, responsável pela expansão do Comando Vermelho, prestes a concluir a tomada das Zonas Oeste e Sudoeste do Rio de Janeiro.

“Não posso deixar de ressaltar que a operação de ontem foi o maior baque que o Comando Vermelho, em toda sua história, já tomou, desde sua fundação”, declarou o secretário da Polícia Civil, Felipe Curi.

Até onde isso é verdade, ainda descobriremos, mas não é preciso esperar para chamar atenção para outra imagem: a que mostra os principais chefes do CV num corredor do presídio de Bangu 3, no momento em que a polícia avançava no Alemão. Na foto, publicada com exclusividade pelo GLOBO, eles conversam no corredor, observados por policiais penais, sem sinal de alteração.

Segundo a inteligência da polícia, foi esse grupo que ordenou os bloqueios e barricadas em represália à operação. Na própria terça-feira, o governo fluminense pediu a transferência de todos a presídios federais de segurança máxima, onde quatro já estiveram.

My Thor passou quase 15 anos em Catanduvas (PR) e voltou em 2021. Em 2023, a Vara de Execuções Penais (VEP) determinou seu retorno ao sistema federal, mas a decisão foi suspensa por um juiz de segunda instância. Em agosto do ano passado, uma operação da Polícia Federal (PF) dentro da cadeia constatou que ele não só continuava comandando o tráfico no Rio e em São Paulo, como mantinha na cela dez celulares. Ainda assim, My Thor continuou onde estava, inabalável.

Outro personagem é Naldinho, homem de confiança de Fernandinho Beira-Mar. Em maio, o repórter Rafael Soares revelou que foi ele quem escreveu o “salve” determinando a trégua no crime durante a reunião do G20. No texto, Naldinho explica que “um representante das autoridades do Rio procurou o irmão que é sintonia e pediu para segurarmos sete dias sem guerras”. E completa:

“Se veio no diálogo, eles demonstraram um respeito por nós”.

Ministério Público e PF tentam desde o ano passado transferi-lo a uma prisão federal, mas os pedidos têm sido negados pela VEP, que alega não ver urgência ou ameaça à ordem pública em sua permanência em Bangu.

Claro que isolar os chefões, apenas, não resolverá o problema. O Rio tem 58 presos no sistema federal, e isso não impediu o CV de ampliar seu domínio. De acordo com um estudo divulgado em 2024 pelo Instituto Fogo Cruzado e pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni-UFF), desde 2008 a área da região metropolitana do Rio dominada por grupos armados mais que dobrou, chegando a 18,2%.

Isso a despeito das constantes operações com enfrentamentos, mortes e prisões. Quem mora nessas regiões sabe o que é sofrer com extorsões, ameaças, tiroteios e toques de recolher. Mas também sabe que, não importa o que aconteça, o “arrego” semanal aos maus agentes do policiamento não falha.

É evidente que enfrentar facções tão poderosas demanda bem mais que integridade. É preciso inteligência, estratégia, preparo, equipamentos, recursos e colaboração entre níveis de governo. Mas, enquanto os bandidos puderem manipular quem deveria combatê-los, nenhuma dessas frentes avançará.

O controle externo das polícias, com ouvidorias independentes para prevenir malfeitos e garantir a eficácia das investigações, é uma das propostas da PEC da Segurança Pública, que enfrenta dura oposição de governadores, incluindo Cláudio Castro. Para eles, a PEC autoriza o governo federal a invadir suas competências.

Apesar disso, Castro e o ministro Ricardo Lewandowski se reuniram na tarde de ontem e fizeram promessas de colaboração mútua. Só não mencionaram My Thor, Naldinho e companhia, tampouco as decisões judiciais que tornam inúteis tantas operações e mortes. Não ficaria bem na foto.

 

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