Valor Econômico
Votação da reforma tributária no Senado virou um leilão de benefícios para setores empresariais
Num episódio shakespeareano de nossa
história, Fernando Collor, primeiro presidente da República eleito após a
ditadura, foi acusado de patrocinar um imenso esquema de corrupção envolvendo o
pagamento de propinas para a concessão de benesses de toda ordem em estatais,
ministérios e outros órgãos públicos.
A denúncia - e aqui surge seu lance mais surreal - partiu do seu próprio irmão, Pedro, que, motivado por divergências quanto aos negócios da família e um misto de fatores psicológicos que vão de traumas de infância a ciúmes, procura a revista de maior circulação nacional para contar tudo o que sabia sobre o caso. A história, contada de modo eletrizante por Évelin Argenta no podcast Collor vs Collor, inaugura uma sequência de escândalos que expuseram as íntimas relações entre dinheiro, eleições e poder no Brasil.
A entrevista de Pedro Collor ao jornalista
Luís Costa Pinto à revista “Veja” detonou um processo de investigações na
imprensa e numa CPI no Congresso que elucidou como Fernando Collor e seu
tesoureiro, Paulo César (PC) Farias, arrecadaram dinheiro de grandes empresas
para financiar de maneira ilegal sua campanha milionária ao Palácio do
Planalto. Como se comprovou à época, o esquema teve continuidade após a
eleição, mediante tráfico de influência, em que favores governamentais eram
trocados por propinas pagas por executivos e empresários.
A principal consequência do escândalo foi o
impeachment de Fernando Collor em dezembro de 1992. Mesmo que o ex-presidente e
seu tesoureiro não tenham sido condenados e presos, o drama dos Collor gerou
uma mudança institucional. Ao revelar como empresas abasteciam o caixa dois de
campanhas presidenciais no Brasil, o Congresso achou por bem deixar às claras
as relações entre empresas e políticos nas eleições. No ano seguinte, foi
autorizado o financiamento empresarial de candidaturas.
A justificativa para permitir as doações de campanhas de empresas era dar transparência a um relacionamento que, como ficou demonstrado no caso Collor-PC Farias, acontecia por debaixo dos panos. Assim, pensava-se à época, seria melhor permitir que a sociedade tivesse como fiscalizar os vínculos entre empresas e políticos do que depender de um conflito entre irmãos para descobrir os pagamentos por caixa dois.
O financiamento de campanhas por empresas
perdurou de 1994 a 2014. Nesse período de vinte anos, o volume de dinheiro
abastecendo as campanhas saiu de R$ 1,3 bilhão para R$ 6,7 bilhões ao ano, já
descontada a inflação. Na média, 70% desse volume veio de pessoas jurídicas,
principalmente aquelas interessadas em decisões governamentais: empreiteiras
(Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS, Camargo Corrêa e Queiroz Galvão), bancos
(Itaú, Bradesco, BMG e BTG Pactual) e grandes indústrias (JBS, Braskem, Gerdau,
CSN, Cutrale, Recofarma) dominaram o ranking dos maiores doadores.
Esperava-se que a permissão para o
financiamento privado de campanhas tivesse estancado o relacionamento espúrio
entre o setor privado e políticos, mas um novo escândalo de corrupção revelado
em 2014 demonstrou que os propinodutos continuavam a pleno vapor no período. As
evidências coletadas nas dezenas de fases da Operação Lava Jato indicaram
centenas de políticos que continuaram recebendo malas de dinheiro e
transferências para contas em paraísos fiscais de grandes empresas em troca de
isenções tributárias, licitações direcionadas e créditos subsidiados nos bancos
oficiais.
A Lava-Jato levou à prisão executivos e
políticos. Mesmo que muitas dessas condenações estejam sendo anuladas
judicialmente, a operação gerou uma mudança institucional. O Supremo Tribunal
Federal julgou que as doações de empresas eram inconstitucionais, e o Congresso
tratou de repor esses recursos. Desde 2015, já foram R$ 17,6 bilhões destinados
ao financiamento de campanhas de políticos por meio do fundão eleitoral e do
fundo partidário.
Esperava-se que esse montante bilionário,
drenado do orçamento público, fosse suficiente para blindar a classe política
da influência perniciosa das grandes empresas. Afinal, sem depender de dinheiro
privado para se eleger, governantes e parlamentares teriam maior independência
para tomar suas decisões.
Aparentemente, isso não aconteceu. Como se
sabe, encontra-se em análise no Senado a proposta de reforma tributária
aprovada na Câmara. Até a última sexta-feira, os senadores haviam apresentado
573 sugestões de mudanças ao texto. A maioria dessas emendas procurava atender
pleitos de setores empresariais, todos eles buscando ficar fora do alcance da
reforma, por meio de isenções, alíquotas menores ou regimes tributários
especiais.
Uma análise dos textos das emendas indica que
parte dos senadores estão, na verdade, agindo como verdadeiros lobistas,
defendendo os interesses das empresas. Há várias emendas com o mesmo teor
apresentadas por muitos senadores diferentes, bem como senadores que se
especializaram em apresentar muitas sugestões contemplando o mesmo setor com
vários benefícios diferentes.
Mesmo com suas campanhas tendo sido bancadas
por dinheiro público, a votação da reforma tributária no Senado virou um grande
leilão de benefícios para setores empresariais.
*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
2 comentários:
O ser humano não se emenda.
Muito bom!
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