Folha de S. Paulo
Perda de credibilidade de dados poderá
afastar mais os investidores do dólar
O governo Trump vem alegando que a tarifa
de 50% aplicada a diversos produtos exportados pelo Brasil para os EUA
seria uma forma de punir nosso país por uma suposta ausência de liberdade de
expressão. É um argumento bastante frágil e incoerente com diversas outras
posturas do atual mandatário dos Estados
Unidos.
Em primeiro lugar, é importante destacar que,
segundo o V-Dem, o índice que mensura o grau de liberdade de
expressão aumentou no Brasil em 2023 e 2024, após ter recuado de 2015 a 2021.
Ademais, a despeito de algumas decisões recentes questionáveis de nosso Judiciário, o mesmo índice do V-Dem aponta que estamos em posição muito melhor do que alguns países que não têm sido criticados pelo governo Trump nesse aspecto, como Hungria, Turquia e El Salvador.
Ora, se a ideia é promover a liberdade de
expressão mundo afora, onde estão as sanções a esses países? Vale notar que o
V-Dem também calcula indicadores que buscam medir se os países estão mais
próximos de uma democracia plena ou de uma ditadura —e o Brasil é muito mais
democrático do que os outros três citados anteriormente.
No mais, essa suposta alegação de que os EUA
atuam como o paladino da liberdade de expressão também é incoerente com a
própria postura que Trump vem adotando dentro de seu próprio país.
Por exemplo, nos últimos dias o presidente norte-americano "pediu a cabeça" do
presidente de um grande banco, basicamente por discordar das análises
realizadas pela equipe da instituição (que, aliás, são bem semelhantes àquelas
de boa parte dos analistas: o tarifaço irá causar mais inflação e
menos crescimento).
Essa atitude acaba funcionando como uma
espécie de ameaça a todos aqueles que expressarem opiniões e avaliações que
desagradem a Trump, atuando efetivamente como um cerceamento à liberdade de expressão.
Mas o episódio mais grave foi a
demissão da líder da chefe de estatísticas do Bureau of Labor and Statitistics
(BLS), um dos dois "IBGEs" dos EUA (o outro é o BEA, Bureau of
Economic Analysis). Erika McEntarfer foi demitida horas após a divulgação de um
relatório que apontou dados fracos de geração de empregos em julho, além de
revisões para baixo nas estimativas dos meses anteriores.
Embora essas revisões tenham sido
expressivas, elas não foram atípicas. Ademais, BLS e BEA são o
"padrão-ouro" para os demais órgãos estatísticos no restante do
mundo, embora venham sofrendo com alguns fenômenos desafiadores (como a queda
da taxa de resposta em pesquisas domiciliares) e com o sucateamento promovido
pelo Doge.
O
substituto indicado por Trump para a posição no BLS não parece ser um
técnico adequado para o cargo. Mas parece ser alguém que poderia interferir
para que as estatísticas econômicas revelem um quadro conveniente ao governo
—não necessariamente a realidade. Manipular os dados produzidos por órgãos de
Estado, para tentar mostrar uma "realidade alternativa", é um tipo de
censura, atuando negativamente sobre a liberdade de expressão.
Para piorar, o BLS também é responsável por
calcular as principais estatísticas de inflação dos EUA, tanto os preços ao
produtor (PPI) como ao consumidor (CPI) —indicadores que já começam a revelar
os efeitos inflacionários do tarifaço nas leituras mais recentes.
Esse episódio envolvendo o BLS tem gerado
crescente preocupação quanto a uma possível manipulação das estatísticas
econômicas dos EUA daqui em diante, na linha daquilo que foi feito na Argentina
e na Grécia há alguns anos e que tem sido a prática rotineira na China. Uma
perda de credibilidade das estatísticas dos EUA poderá afastar ainda mais os
investidores do dólar e dos ativos denominados nessa moeda.
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