O Globo
Ataques não justificam que medidas
excepcionais tenham se transformado em rotina
Diante da percepção de que havia uma ameaça à
democracia, a Justiça brasileira rompeu a prática da maioria dos países
democráticos e passou a determinar a remoção de informação falsa nas mídias
sociais. Alguns anos depois, podemos dizer que o experimento brasileiro
fracassou.
Desde 2016, quando a eleição de Trump e a aprovação do Brexit foram atribuídas à circulação de fake news, diferentes iniciativas legislativas tentaram regular a disseminação de desinformação. Na União Europeia, um grande debate opôs quem se preocupava mais com os efeitos da disseminação da desinformação e quem se preocupava mais com a proteção da liberdade de expressão.
Fruto desses debates, a Lei de Serviços
Digitais, apresentada em 2020, estipulou a distinção entre conteúdos “ilegais”
e conteúdos “nocivos”. Conteúdos ilegais eram tipificados por outras leis que
definiam terrorismo, abuso sexual infantil, violações de direitos autorais,
entre outros ilícitos — e as plataformas tinham a obrigação de se esforçar para
removê-los. A desinformação foi considerada um conteúdo “nocivo”, e a lei
definiu que as grandes plataformas deveriam fazer esforços para mitigar sua
difusão, sem estabelecer que deviam ser removidos — as empresas poderiam
ajustar algoritmos, reduzir incentivos de anúncio, dar visibilidade a fontes
autorizadas etc.
No texto que apresentava a proposta
legislativa, explicava-se que “há consenso generalizado de que conteúdos
‘nocivos’ (mas não necessariamente ilegais) não devem ser definidos e não devem
ser objeto de obrigação de remoção, uma vez que este é um tema delicado, com
graves implicações para a proteção da liberdade de expressão”. A abordagem
europeia, portanto, ciente de que era difícil definir e de que era delicado
aplicar a definição de desinformação a postagens, preferiu atribuir às
plataformas obrigações para mitigar o problema, sem recorrer à remoção.
Enquanto a Europa estruturou, entre 2016 e
2020, um arcabouço regulatório robusto, no Brasil não conseguimos pactuar um
modelo regulatório aceitável para todas as forças políticas. O PL 2.630/2020,
nossa tentativa mais avançada de legislar sobre o tema, terminou engavetado em
2024. Diante do que considerava ameaça à democracia e considerando o vácuo
legislativo, a Justiça brasileira estabeleceu o entendimento de que poderia
determinar a remoção de conteúdo falso quando estivesse a serviço de discursos
de ódio ou de ataques ao Estado Democrático de Direito.
O acórdão que respondeu ao questionamento do
partido Rede sobre a constitucionalidade do inquérito das fake news estabeleceu
que “a Constituição não permite que criminosos se escondam, sob o manto da
liberdade de expressão, utilizando esse direito como verdadeiro escudo
protetivo para a prática de discursos de ódio e antidemocráticos, de ameaças e
agressões e para a prática de infrações penais e de toda sorte de atividades
ilícitas”.
Esse entendimento autorizou não apenas a
remoção de conteúdo que veiculasse fake news, como a inteira suspensão de
contas, canais e perfis. As remoções de contas parecem plenamente justificadas
pela gravidade dos ataques coordenados contra a democracia entre o fim de 2022
e o começo de 2023, mas terminaram se estendendo muito além daquele contexto.
Como a suspensão de contas busca prevenir comportamento reincidente, fora de um
contexto emergencial e excepcional ela configura censura prévia, pois quer
impedir algo que ainda não aconteceu.
Com o tempo, a linha entre a defesa da
democracia e a restrição do debate público tornou-se tênue. A ausência de
parâmetros claros sobre o que é discurso de ódio e o que ameaça a democracia e
a falta de mecanismos eficazes de contestação das decisões consolidaram a
percepção, em parte da população que vota com a direita, de que a liberdade de
expressão passou a ser condicionada pela orientação política do discurso. Essa
dinâmica, em vez de fortalecer as instituições, acabou corroendo sua
legitimidade, alimentando alegações de perseguição e censura que têm levado à
radicalização política cada vez maior.
Retrospectivamente, a cautela europeia parece
mais acertada. A experiência dos países do bloco mostrou que é possível
enfrentar a desinformação sem sacrificar a pluralidade política. Nenhum país
europeu, é verdade, enfrentou ataques como os que vivemos em 2022 e 2023. Mas
esses ataques não justificam que medidas excepcionais tenham se transformado em
rotina permanente. Teria sido mais prudente, passada a emergência, suspender a
remoção de contas e restringi-la a uma lista fechada de ilegalidades mais
amplamente pactuada. Esse ainda pode ser nosso caminho.
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