sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Brasil fracassa no combate às fake News, por Pablo Ortellado

O Globo

Ataques não justificam que medidas excepcionais tenham se transformado em rotina

Diante da percepção de que havia uma ameaça à democracia, a Justiça brasileira rompeu a prática da maioria dos países democráticos e passou a determinar a remoção de informação falsa nas mídias sociais. Alguns anos depois, podemos dizer que o experimento brasileiro fracassou.

Desde 2016, quando a eleição de Trump e a aprovação do Brexit foram atribuídas à circulação de fake news, diferentes iniciativas legislativas tentaram regular a disseminação de desinformação. Na União Europeia, um grande debate opôs quem se preocupava mais com os efeitos da disseminação da desinformação e quem se preocupava mais com a proteção da liberdade de expressão.

Fruto desses debates, a Lei de Serviços Digitais, apresentada em 2020, estipulou a distinção entre conteúdos “ilegais” e conteúdos “nocivos”. Conteúdos ilegais eram tipificados por outras leis que definiam terrorismo, abuso sexual infantil, violações de direitos autorais, entre outros ilícitos — e as plataformas tinham a obrigação de se esforçar para removê-los. A desinformação foi considerada um conteúdo “nocivo”, e a lei definiu que as grandes plataformas deveriam fazer esforços para mitigar sua difusão, sem estabelecer que deviam ser removidos — as empresas poderiam ajustar algoritmos, reduzir incentivos de anúncio, dar visibilidade a fontes autorizadas etc.

No texto que apresentava a proposta legislativa, explicava-se que “há consenso generalizado de que conteúdos ‘nocivos’ (mas não necessariamente ilegais) não devem ser definidos e não devem ser objeto de obrigação de remoção, uma vez que este é um tema delicado, com graves implicações para a proteção da liberdade de expressão”. A abordagem europeia, portanto, ciente de que era difícil definir e de que era delicado aplicar a definição de desinformação a postagens, preferiu atribuir às plataformas obrigações para mitigar o problema, sem recorrer à remoção.

Enquanto a Europa estruturou, entre 2016 e 2020, um arcabouço regulatório robusto, no Brasil não conseguimos pactuar um modelo regulatório aceitável para todas as forças políticas. O PL 2.630/2020, nossa tentativa mais avançada de legislar sobre o tema, terminou engavetado em 2024. Diante do que considerava ameaça à democracia e considerando o vácuo legislativo, a Justiça brasileira estabeleceu o entendimento de que poderia determinar a remoção de conteúdo falso quando estivesse a serviço de discursos de ódio ou de ataques ao Estado Democrático de Direito.

O acórdão que respondeu ao questionamento do partido Rede sobre a constitucionalidade do inquérito das fake news estabeleceu que “a Constituição não permite que criminosos se escondam, sob o manto da liberdade de expressão, utilizando esse direito como verdadeiro escudo protetivo para a prática de discursos de ódio e antidemocráticos, de ameaças e agressões e para a prática de infrações penais e de toda sorte de atividades ilícitas”.

Esse entendimento autorizou não apenas a remoção de conteúdo que veiculasse fake news, como a inteira suspensão de contas, canais e perfis. As remoções de contas parecem plenamente justificadas pela gravidade dos ataques coordenados contra a democracia entre o fim de 2022 e o começo de 2023, mas terminaram se estendendo muito além daquele contexto. Como a suspensão de contas busca prevenir comportamento reincidente, fora de um contexto emergencial e excepcional ela configura censura prévia, pois quer impedir algo que ainda não aconteceu.

Com o tempo, a linha entre a defesa da democracia e a restrição do debate público tornou-se tênue. A ausência de parâmetros claros sobre o que é discurso de ódio e o que ameaça a democracia e a falta de mecanismos eficazes de contestação das decisões consolidaram a percepção, em parte da população que vota com a direita, de que a liberdade de expressão passou a ser condicionada pela orientação política do discurso. Essa dinâmica, em vez de fortalecer as instituições, acabou corroendo sua legitimidade, alimentando alegações de perseguição e censura que têm levado à radicalização política cada vez maior.

Retrospectivamente, a cautela europeia parece mais acertada. A experiência dos países do bloco mostrou que é possível enfrentar a desinformação sem sacrificar a pluralidade política. Nenhum país europeu, é verdade, enfrentou ataques como os que vivemos em 2022 e 2023. Mas esses ataques não justificam que medidas excepcionais tenham se transformado em rotina permanente. Teria sido mais prudente, passada a emergência, suspender a remoção de contas e restringi-la a uma lista fechada de ilegalidades mais amplamente pactuada. Esse ainda pode ser nosso caminho.

 

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