O Globo
Na gíria das ruas cariocas já
incorporada Brasil afora,
caô significa mentira, papo furado, enrolação. Foi o que mais se viu durante a
crise que sobreveio à operação da polícia do Rio de
Janeiro nos complexos do Alemão e
da Penha.
Talvez pouca gente lembre que há dois anos,
em outubro de 2023, o Rio foi aterrorizado por criminosos que queimaram 35
ônibus e um vagão de trem durante a operação que visava a prender o miliciano
Zinho.
Na ocasião, Cláudio Castro (PL) se vangloriou de ter feito um “duro ataque” às milícias e disse que seu governo não descansaria enquanto não prendesse Zinho e dois outros bandidos perigosos, o também miliciano Tandera e o traficante Abelha. Zinho se entregou dois meses depois — à Polícia Federal (PF). Nunca mais se soube dos outros.
Naqueles dias, os governos federal e estadual
anunciaram a criação de um Comitê Integrado de Investigação Financeira e Recuperação
de Ativos (Cifra), para ajudar a descapitalizar as organizações criminosas.
Além disso, Lula decretou
uma GLO, a famigerada Garantia da Lei e da Ordem, para fiscalizar portos e
aeroportos e asfixiar o crime. A tal Cifra morreu de inanição, e a GLO terminou
melancolicamente sete meses depois sem que ninguém percebesse.
Desta vez, a operação no Alemão matou 121
pessoas, mas também não capturou o principal alvo, o traficante Doca. O
governador, porém, não se apertou. Afirmou ter desferido um duro golpe no
Comando Vermelho e prometeu novas operações.
Ato contínuo, governo federal e estadual
anunciaram outra iniciativa conjunta, agora batizada Escritório Emergencial de
Combate ao Crime Organizado, com os mesmos objetivos e as mesmas parcas chances
de funcionar — tanto que a única proposta prática, o envio de peritos ao Rio
para auxiliar o Instituto Médico Legal (IML), nem sequer ocorreu, porque os
mortos foram enterrados antes que o primeiro perito pudesse fazer as malas.
Ainda assim, na entrevista em que chamou a
operação de matança desastrosa, Lula afirmou que enviaria legistas ao Rio para
apurar de forma independente se houve abusos. Além de não conseguir evitar que
o presidente desse uma declaração com potencial de estrago eleitoral, seus
assessores o fizeram aumentar a lista de caôs, já que não avisaram a ele
que não haveria
legista nenhum.
Enquanto tudo isso acontecia, o ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF),
desembarcou no Rio. Depois de inspecionar o Centro Integrado de Comando e
Controle do estado, visitar o prefeito, o presidente do Tribunal de Justiça e
ouvir ONGs, ele mandou abrir um inquérito para investigar o crime organizado.
Acontece que esse inquérito já foi aberto em
agosto passado por ordem do próprio Supremo. Foi nele que se fizeram a operação
sobre uma quadrilha do CV que fabricava fuzis, a que prendeu um deputado
estadual acusado de lavar dinheiro da facção e apreendeu 5 toneladas de drogas.
A única novidade em meio ao rame-rame foi o
Projeto de Lei que classifica as facções criminosas e milícias como
organizações terroristas. Proposto pela direita como cópia assumida do que
fez Donald Trump nos Estados
Unidos, o texto avançou rapidamente na Câmara dos
Deputados e tende a ser aprovado com a lei antifacção do
governo.
Além de ser péssima ideia, ele tem tudo para
causar ainda mais problemas. Primeiro porque, como o terrorismo é considerado
no mundo todo um crime extraterritorial, a lei abrirá brecha a intervenções não
só dos Estados Unidos, mas também de outros países sobre território, empresas e
bancos brasileiros, caso se decida unilateralmente que teriam relação com essas
organizações.
Depois porque, pelo projeto, ao se tornarem
terroristas, facções e milícias passariam a ser atribuição da PF, e não mais
das polícias e do Ministério Público estadual. Isso interromperia investigações
em curso, desmantelaria a já insuficiente colaboração entre as forças de
segurança e tiraria poder dos estados no combate ao crime —exatamente o que fez
os governadores da direita rechaçar a PEC da Segurança Pública do governo Lula.
Dado esse efeito colateral, não é difícil
supor que alguém surgirá com uma emenda para desidratar as atribuições da PF e
manter a mudança de designação, fazendo pairar sobre o Brasil mais um foco de
tensão, com a possibilidade de Trump, num de seus delírios, reivindicar para si
o combate ao Comando Vermelho e ao PCC.

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