“Onde o poder
público descuidou da integridade física dos mais pobres, o regime democrático
não passa de uma fachada de papelão esburacada por tiros, chamuscada por
pólvora queimada e borrifada de sangue.”
— Eugênio Bucci, O Estado de SP, 30/10/2025
Nascemos como mera feitoria, ponto de apoio
para naus sedentas de água, remanso de piratas e aventureiros. Na Colônia, sem
povo, nosso destino foi traçado como economia primário-exportadora fundada na
escravidão de negros e indígenas, a serviço das demandas do consumo europeu,
via Lisboa — a metrópole decadente, salvando-se como entreposto de nosso
comércio: pau-brasil, açúcar, minérios, algodão, carne, café... — que
exportávamos, e de entrada do que necessitávamos, que era quase tudo.
Essa economia e esse comércio estabeleciam as bases da aliança do latifúndio e
da incipiente burguesia comercial (que incluía os comerciantes, os traficantes
de gente e os contrabandistas, de um modo geral) com a Coroa portuguesa e seus
primeiros agentes — exatores do fisco, militares e o clero. Eram as raízes de
uma estranha nação sem povo e, assim, sem projeto.
No Império, exportávamos mão de obra escrava (sob a forma de açúcar, minérios
etc.) e tudo importávamos, como reclamava Joaquim Nabuco ainda no Segundo
Reinado:
“[...] o Brasil é uma nação que importa tudo: a carne-seca e o milho do Rio da
Prata, o arroz da Índia, o bacalhau da Noruega, o azeite de Portugal, o trigo
de Baltimore, a manteiga da França, as velas da Alemanha, os tecidos de
Manchester, e tudo o mais, exceto exclusivamente os gêneros de imediata
deterioração. A importação representa assim as necessidades materiais da
população toda, ao passo que a exportação representa, como já vimos, o trabalho
apenas de uma classe.” (Discurso no Senado, 1884)
Esqueceu-se de dizer que importávamos também ideologia.
Sobre a mão de obra escrava se estabeleciam a economia e a política do Império,
quando — é ainda a voz de Nabuco — “o espírito comercial e industrial do país
parecia resumir-se na importação e na venda de africanos”, prenunciando o
atraso relativo que se acentuaria nos dois séculos imediatos.