CartaCapital
Em campo, as artimanhas do capitalismo para
ocultar as iniquidades do racismo
No tropel de mensagens que invadem meu
WhatsApp sofri a trombada do antirracismo racista da Nega Agridoce. Ela fica
muito triste quando vê um negrão ou negrona torcendo pro Palmeiras.
Essa manifestação desvela a apropriação da
consciência da Nega Agridoce pelo racismo que ela
supostamente se empenha em amaldiçoar. Imagino que a senhora Agridoce buscasse
fazer uma increpação de racismo ao clube dos “italianinhos”.
Atribuir ao clube dos “italianinhos” o
propósito de discriminar os negrões e as negronas carrega em seu embornal de
significados a duplicação do preconceito racista. Os malditos italianinhos não
merecem o afeto dos negrões e negronas.
Na conquista do tricampeonato paulista, enquanto os jogadores e dirigentes celebravam, fiquei atento à entrevista dos pais do Endrick, Cíntia e Douglas. Eles se emocionaram ao relatar a trajetória do filho, acolhido pelo Palmeiras desde os 11 anos de idade. Agradeceram ao clube que abrigou o menino, agora encaminhado para jogar no Real Madrid.
Ao entrevistar os pais do jovem atleta, o
jornalista apresentou “dona” Cintia e “seu” Douglas, duas figuras tão humanas
quanto quaisquer outras.
Reafirmo a palavra humanas porque ela
dissolve em sua força os significados desatinados das expressões “negrões e
negronas”. Vou arriscar algumas despretensiosas linhas para tratar da
emergência do eugenismo racial no século XIX, período dos movimentos de
derrubada da escravidão nas Américas.
Faz-se necessário afirmar as íntimas relações
entre o avanço do capitalismo e o importante papel desempenhado pelas colônias
que abrigavam o trabalho escravo.
Eric Williams, no livro Capitalismo e
Escravidão, esclarece o papel do tráfico negreiro na formação e prosperidade do
arranjo mercantil-manufatureiro que se intensifica nos séculos XVII e XVIII no
pródromos da Revolução Industrial.
Diz Eric Willians que o tráfico de escravos
era mais que um meio para um fim, era também um fim em si mesmo. “Os
traficantes de escravos britânicos forneciam os trabalhadores necessários não
apenas para suas próprias plantações, mas para as de seus rivais… A Espanha
sempre foi, até o século XIX, dependente de estrangeiros para seus escravos…
por falta de capital e dos bens necessários para o tráfico de escravos.”
É pouco divulgada a troca de cartas entre
Karl Marx e Abraham Lincoln durante a Guerra de Secessão americana. Em resposta
a uma carta escrita por Marx em nome da Associação Internacional de
Trabalhadores, Lincoln agradeceu as considerações libertárias e respondeu:
“As nações não existem apenas para si mesmas,
mas para promover o bem-estar e a felicidade da humanidade por meio de relações
benevolentes e exemplos. É nessa relação que os Estados Unidos consideram sua
causa no atual conflito com os insurgentes escravistas como a causa da natureza
humana, e eles derivam novo encorajamento para perseverar a partir do
testemunho dos trabalhadores da Europa de que a atitude nacional é favorecida
com sua aprovação esclarecida e sinceras simpatias”.
Na posteridade das empreitadas e políticas de
extinção dos regimes escravocratas, intensifica-se o debate em torno da
igualdade racial e surgem as teorias eugenistas que afirmam a inferioridade
genética das raças de origem não europeia.
Arthur de Gobineau escreveu palavras
contundentes no Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas. Ele dispara
contra os chamados Unitários, os que defendem a igualdade racial. “Os Unitários
afirmam que a separação das raças é aparente, e apenas resultado de
circunstâncias locais como as que vivemos atualmente, ou a desvios acidentais
de conformação no membro original de um ramo. Toda a humanidade é, para eles,
acessível à mesma perfeição; em todos os lugares o tipo original comum, mais ou
menos velado, persiste com igual força, e o Negro, o selvagem americano, o
Tungúsico do norte da Sibéria pode e deve, sob a influência de uma educação
semelhante, conseguir rivalizar com o europeu na beleza da forma. Esta teoria
é inadmissível… A fisionomia marcada dos habitantes da Auvérnia, especialmente
das mulheres, está muito mais distante do caráter comum das nações europeias do
que a de várias tribos indígenas da América do Norte. Assim, desde que, sob
climas distantes e diferentes, e sob condições de vida tão díspares, a natureza
possa produzir tipos que se assemelham uns aos outros, é bastante evidente que
não são os agentes externos que agora agem que impõem seus caracteres aos tipos
humanos.”
O haitiano Mackendy Souverain escreveu no
livro Arthur de Gobineau nos Trópicos: a Recepção e a Interpretação dos
Pensamentos Raciais no Brasil e no Haiti (1880-1930) páginas esclarecedoras a
respeito da consolidação do racismo nos dois países tropicais.
Gobineau estava firmemente convencido da
existência de uma linhagem sociobiológica superior da qual ele mesmo acreditava
ter vindo, isto é, a aristocracia. Dessa forma, opôs-se à democracia por medo
de ver abalada a ordem a que queria pertencer… Gobineau associa sua tese do
declínio das civilizações às condições e dinâmicas étnicas das populações em
questão. Acima de tudo, condenava a miscigenação porque, segundo ele, o
cruzamento entre duas raças diferentes, supostamente puras, levaria a uma
espécie de degeneração da qual as “qualidades puras” acabariam por desaparecer
com a intensificação da miscigenação em nível mundial. Segundo Gobineau, esses
povos pereceriam para ser degenerados. De acordo com sua previsão, toda a
humanidade desapareceria, portanto, pela única causa da miscigenação… Com
Gobineau, o racialismo pseudocientífico tornou-se a base para uma nova
tendência na história das ideias no século XIX. A filosofia da história de
Gobineau tornou-o ao mesmo tempo adulado e aclamado.
As citações apresentadas no texto me incitam
a considerar as raízes históricas e sociais do conceito de raça. Ao longo da
evolução da Modernidade Capitalista, esse conceito busca sua confirmação nos
recônditos do determinismo biológico. O racismo nasce, portanto, nas dobradiças
das formas constitutivas do capitalismo em seu mister de esconder a
desigualdade sob o manto “cientificista” tecido pela Razão Iluminista.
*Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.
Um comentário:
Muito bom o artigo.
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