sábado, 13 de abril de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo* -Assim caminha a humanidade

CartaCapital

Em campo, as artimanhas do capitalismo para ocultar as iniquidades do racismo

No tropel de mensagens que invadem meu WhatsApp sofri a trombada do antirracismo racista da Nega Agridoce. Ela fica muito triste quando vê um negrão ou negrona torcendo pro Palmeiras.

Essa manifestação desvela a apropriação da consciência da Nega Agridoce pelo racismo que ela supostamente se empenha em amaldiçoar. Imagino que a senhora Agridoce buscasse fazer uma increpação de racismo ao clube dos “italianinhos”.

Atribuir ao clube dos “italianinhos” o propósito de discriminar os negrões e as negronas carrega em seu embornal de significados a duplicação do preconceito racista. Os malditos italianinhos não merecem o afeto dos negrões e negronas.

Na conquista do tricampeonato paulista, enquanto os jogadores e dirigentes celebravam, fiquei atento à entrevista dos pais do ­Endrick, Cíntia e Douglas. Eles se emocionaram ao relatar a trajetória do filho, acolhido pelo Palmeiras desde os 11 anos de idade. Agradeceram ao clube que abrigou o menino, agora encaminhado para jogar no Real Madrid.

Ao entrevistar os pais do jovem atleta, o jornalista apresentou “dona” Cintia e “seu” Douglas, duas figuras tão humanas quanto quaisquer outras.

Reafirmo a palavra humanas porque ela dissolve em sua força os significados desatinados das expressões “negrões e negronas”. Vou arriscar algumas despretensiosas linhas para tratar da emergência do eugenismo racial no século XIX, período dos movimentos de derrubada da escravidão nas Américas.

Faz-se necessário afirmar as íntimas relações entre o avanço do capitalismo e o importante papel desempenhado pelas colônias que abrigavam o trabalho escravo.

Eric Williams, no livro Capitalismo e Escravidão, esclarece o papel do tráfico negreiro na formação e prosperidade do arranjo mercantil-manufatureiro que se intensifica nos séculos XVII e XVIII no pródromos da Revolução Industrial.

Diz Eric Willians que o tráfico de escravos era mais que um meio para um fim, era também um fim em si mesmo. “Os traficantes de escravos britânicos forneciam os trabalhadores necessários não apenas para suas próprias plantações, mas para as de seus rivais… A Espanha sempre foi, até o século XIX, dependente de estrangeiros para seus escravos… por falta de capital e dos bens necessários para o tráfico de escravos.”

É pouco divulgada a troca de cartas entre Karl Marx e Abraham Lincoln durante a Guerra de Secessão americana. Em resposta a uma carta escrita por Marx em nome da Associação Internacional de Trabalhadores, Lincoln agradeceu as considerações libertárias e respondeu:

“As nações não existem apenas para si mesmas, mas para promover o bem-estar e a felicidade da humanidade por meio de relações benevolentes e exemplos. É nessa relação que os Estados Unidos consideram sua causa no atual conflito com os insurgentes escravistas como a causa da natureza humana, e eles derivam novo encorajamento para perseverar a partir do testemunho dos trabalhadores da Europa de que a atitude nacional é favorecida com sua aprovação esclarecida e sinceras simpatias”.

Na posteridade das empreitadas e políticas de extinção dos regimes escravocratas, intensifica-se o debate em torno da igualdade racial e surgem as teorias eugenistas que afirmam a inferioridade genética das raças de origem não europeia.

Arthur de Gobineau escreveu palavras contundentes no Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas. Ele dispara contra os chamados Unitários, os que defendem a igualdade racial. “Os Unitários afirmam que a separação das raças é aparente, e apenas resultado de circunstâncias locais como as que vivemos atualmente, ou a desvios acidentais de conformação no membro original de um ramo. Toda a humanidade é, para eles, acessível à mesma perfeição; em todos os lugares o tipo original comum, mais ou menos velado, persiste com igual força, e o Negro, o selvagem americano, o Tungúsico do norte da Sibéria pode e deve, sob a influência de uma educação semelhante, conseguir rivalizar com o europeu na beleza da forma. Esta teo­ria é inadmissível… A fisionomia marcada dos habitantes da Auvérnia, especialmente das mulheres, está muito mais distante do caráter comum das nações europeias do que a de várias tribos indígenas da América do Norte. Assim, desde que, sob climas distantes e diferentes, e sob condições de vida tão díspares, a natureza possa produzir tipos que se assemelham uns aos outros, é bastante evidente que não são os agentes externos que agora agem que impõem seus caracteres aos tipos humanos.”

O haitiano Mackendy Souverain escreveu no livro Arthur de Gobineau nos Trópicos: a Recepção e a Interpretação dos Pensamentos Raciais no Brasil e no ­Haiti (1880-1930) páginas esclarecedoras a respeito da consolidação do racismo nos dois países tropicais.

Gobineau estava firmemente convencido da existência de uma linhagem sociobiológica superior da qual ele mesmo acreditava ter vindo, isto é, a aristocracia. Dessa forma, opôs-se à democracia por medo de ver abalada a ordem a que queria pertencer… Gobineau associa sua tese do declínio das civilizações às condições e dinâmicas étnicas das populações em questão. Acima de tudo, condenava a miscigenação porque, segundo ele, o cruzamento entre duas raças diferentes, supostamente puras, levaria a uma espécie de degeneração da qual as “qualidades puras” acabariam por desaparecer com a intensificação da miscigenação em nível mundial. Segundo Gobineau, esses povos pereceriam para ser degenerados. De acordo com sua previsão, toda a humanidade desapareceria, portanto, pela única causa da miscigenação… Com Gobineau, o racialismo pseudocientífico tornou-se a base para uma nova tendência na história das ideias no século XIX. A filosofia da história de Gobineau ­tornou-o ao mesmo tempo adulado e aclamado.

As citações apresentadas no texto me incitam a considerar as raízes históricas e sociais do conceito de raça. Ao longo da evolução da Modernidade Capitalista, esse conceito busca sua confirmação nos recônditos do determinismo biológico. O racismo nasce, portanto, nas dobradiças das formas constitutivas do capitalismo em seu mister de esconder a desigualdade sob o manto “cientificista” tecido pela Razão Iluminista. 

*Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo.