sábado, 13 de abril de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Desarmonia entre Poderes é ameaça à democracia

Correio Braziliense

Administrar (Executivo), legislar (Congresso) e julgar (Supremo) são atribuições distintas e separadas dos Poderes da República, que precisam ser revigoradas sempre que houver a pretensão de se estabelecer um poder dominante sobre o outro

Montesquieu, no O Espírito das Leis, enunciou o princípio da separação entre os Poderes como um dos fundamentos da democracia, com seu sistema de freios e contrapesos (check and balances). Quando as funções do poder público são repartidas entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, a democracia impede que decisões autoritárias sejam adotadas, sem possibilidade de reversão. Isso possibilita um controle mais adequado da sociedade civil sobre o Estado.

Na Constituição de 1988, essa separação é muito relevante. Aparece em dispositivos como os vetos presidenciais a decisões do Congresso por estreita maioria, o impeachment do presidente da República por crime de responsabilidade e a forma como os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são escolhidos, por indicação do presidente e homologação do Senado.

Entretanto, a Constituição de 1988 atribui ao Supremo o duplo papel de última instância do sistema judiciário e de Corte Constitucional, a qual cabe analisar a compatibilidade de atos normativos, leis e sentenças emanados pelos Três Poderes em relação à Constituição Federal. São as cláusulas pétreas enumeradas no art. 60, §2ª, incisos I e III, da Carta Magna — entre as quais, a forma federativa de Estado e a separação dos Poderes. Uma emenda constitucional que pretenda abolir tais institutos é inconstitucional na sua origem.

Desde as eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito à Presidência, o STF está sob forte ataque. No governo passado, havia um projeto "iliberal" de poder, cujo êxito dependia da subordinação do Supremo ao Executivo. Seria o primeiro passo para um regime no qual o direito ao dissenso, o respeito às minorias e a alternância de poder deixariam de existir.

Administrar (Executivo), legislar (Congresso) e julgar (Supremo) são atribuições distintas e separadas dos Poderes da República, que precisam ser revigoradas sempre que houver a pretensão de se estabelecer um poder dominante sobre o outro. Não existe um poder moderador, o Supremo só tem o poder de revogar decisões dos demais Poderes quando há inconstitucionalidades e a democracia está ameaçada.

O polêmico inquérito das fake news, a cargo do ministro do STF Alexandre de Moraes, somente existe porque havia essa ameaça durante o governo Bolsonaro. Se ainda há dúvidas sobre a constitucionalidade de sua origem, sua existência foi legitimada pela tentativa de golpe de 8 de janeiro. Os episódios lamentáveis de vandalismo demonstraram, na prática, que havia uma ameaça não somente ao recém-empossado presidente Lula, mas também ao Legislativo e ao Judiciário, cujos palácios foram igualmente invadidos e depredados.

Os dois assuntos políticos em mais evidência na semana que passou têm a ver com o equilíbrio entre os Poderes. A Câmara dos Deputados aprovou a manutenção da prisão do deputado Chiquinho Brazão, acusado pela Polícia Federal de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle Franco, mas houve risco de que a decisão da Primeira Turma do Supremo fosse revogada. Seria uma lamentável instrumentalização da Câmara para confrontar o Supremo num caso criminal, que representa o que há de mais abjeto, covarde e criminoso na política: a execução de adversários políticos.

O outro episódio é a polêmica entre o bilionário sul-africano Elon Musk, dono da Tesla, da SpaceX e do X (ex-Twitter), e ministro do Supremo, em razão de decisões judiciais no âmbito do inquérito das Fake News com objetivo de barrar o incitamento ao ódio e atentados contra a democracia. A virulência dos ataques do empresário à Corte Constitucional e seu apoio a articulações antidemocráticas no Brasil reforçam a necessidade de que os Poderes da República mantenham relações de equilíbrio, harmonia e independência entre si.

Prioridade no setor elétrico é acabar com subsídios

O Globo

Alívio trazido por MP do governo à conta de luz será momentâneo, mas custo perdurará por vários anos

Preocupado com a alta nas contas de luz, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou nesta semana Medida Provisória (MP) com o objetivo de reduzir as tarifas entre 3,5% e 5% em todo o país. A queda será financiada por meio de um mecanismo mirabolante: o governo quitará empréstimos contraídos pelas distribuidoras durante a pandemia — quando as tarifas ficaram congeladas — e na escassez hídrica de 2021 — quando foi necessário contratar a geração mais cara das usinas térmicas —, usando recursos previstos na privatização da Eletrobras que serão antecipados ao Tesouro. De acordo com o governo, o alívio às distribuidoras permitirá o benefício ao consumidor. Mas não acaba aí.

Ao mesmo tempo, atendendo à pressão de governadores, a MP renova por mais 36 meses subsídios de R$ 4 bilhões anuais a usinas eólicas e solares que já deveriam ter sido encerrados, mas foram prorrogados no governo Jair Bolsonaro. Quanto mais as usinas se beneficiam dessa vantagem, maior o buraco financeiro provocado pelo uso da rede de distribuição. Os escalados para pagar a conta são os consumidores. Em resumo: o alívio das tarifas em 2024 será seguido por contas mais caras nos anos seguintes. Não faz sentido.

Os defensores argumentam que o incentivo é necessário para alavancar a produção de energia renovável. Falam em mais 30 gigawatts disponíveis no país. É uma visão problemática por vários motivos. Primeiro, usinas eólicas e solares não dependem mais de ajuda para se tornar financeiramente viáveis. Segundo, o subsídio à energia renovável — R$ 10 bilhões só neste ano — já responde por quase 14% da tarifa, segundo Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Terceiro, há sobra contratada na geração até pelo menos 2032, e o consumo tem crescido bem menos que o acréscimo das fontes renováveis.

Por fim, os desequilíbrios trazidos ao sistema pelo incentivo a eólicas e solares (em geral distantes dos centros de consumo) trarão mais custos em transmissão e forçarão o uso (mais caro) das térmicas quando elas não estiverem disponíveis. O resultado, não é difícil entender, será energia mais cara.

Volta e meia transitam pelo Congresso propostas que encarecem a conta de luz. A mais recente é o aumento na Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos, dinheiro destinado a municípios onde há hidrelétricas, usado no monitoramento dos reservatórios. Calcula-se que os encargos aumentarão 40%, custo que cedo ou tarde chegará aos domicílios. Mesmo que seja um gasto justificável, deveria haver mais transparência.

O que está em jogo nos ambientes opacos de Brasília é a garantia de lucros a empresários do setor, incluindo fabricantes de equipamentos, à custa da conta paga por todos, sobretudo os mais pobres. A MP guarda semelhança com a intervenção desastrada da então presidente Dilma Rousseff no setor elétrico em 2012. O objetivo era o mesmo: baixar a conta de luz. Num primeiro momento, houve queda de 20%. Dois anos depois, alta de 25%. Em 2018, a conta de luz era 50% mais cara que em janeiro de 2013, descontada a inflação. Se a MP for aprovada, o custo dos subsídios durará anos, enquanto o alívio será passageiro. Para promover queda duradoura nas tarifas, o governo deveria reduzir a complexidade do sistema elétrico brasileiro, pródigo em subsídios. Acabar com aqueles que não são mais necessários é a prioridade.

Sucessivos recordes de temperatura põem planeta diante do imponderável

O Globo

Março foi o décimo mês consecutivo de quebra de barreiras. Cientistas questionam se tendência é irreversível

Em maio do ano passado, ao fazer estimativas até 2027, a Organização Meteorológica Mundial previu que a temperatura global atingiria níveis recordes no período. Não demorou para a previsão ser confirmada. O observatório europeu Copernicus (C3S) constatou que, de abril de 2023 a março deste ano, transcorreram os 12 meses mais quentes da História. A temperatura de março deste ano foi a mais alta para o mês, o décimo consecutivo com quebra de recorde de calor.

Nos 12 meses anteriores, a temperatura subiu 1,58 °C acima da média verificada na era pré-industrial (1850-1900), ultrapassando o limite de 1,5 °C estabelecido pelo Acordo de Paris para este século como patamar minimamente seguro para evitar eventos catastróficos. Em um dia, pela primeira vez a temperatura global ficou 2 °C acima da base de comparação. E julho de 2023 foi, tudo indica, o mês mais quente em 120 mil anos. Ainda em 2023, a temperatura global ficou o maior número de vezes acima de 1,5 °C além dos patamares do fim do século XIX.

A quebra dessas barreiras chama mais uma vez a atenção para a necessidade de acelerar os cortes nas emissões de gases de efeito estufa — contribuição dada pela espécie humana ao aquecimento global. Como a temperatura oscila, é natural que ela volte a ficar abaixo do limite de 1,5 °C. Ao acompanhar a tendência dos termômetros, porém, a tendência de alta é nítida. “Ver registros como esse mês a mês nos mostra que realmente nosso clima está mudando rapidamente”, afirmou Samantha Burgess , vice-diretora do C3S.

Os efeitos da mudança são sentidos em todos os continentes. Uma seca causou um número nunca visto de incêndios na Amazônia venezuelana. No sul da África, a destruição de plantações afetou de maneira drástica a oferta de alimentos. Nos Estados Unidos, a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) registrou, em 2023, 25 eventos extremos associados ao aquecimento global, com prejuízos superiores a US$ 1 bilhão. A frequência de ondas de calor aumentou. Há meio século eram duas por ano, em 2023 foram seis. No Hemisfério Sul, o Brasil experimenta o mesmo fenômeno.

Incêndios florestais no Canadá contaminaram o ar no Meio-Oeste e no Nordeste dos Estados Unidos de forma inédita. Em junho, a fumaça cobriu Nova York, obrigando o uso de máscaras e interrompendo o tráfego aéreo. Na Califórnia, houve 12 inundações causadas por fortes temporais, com deslizamentos e mortes. Um volume inesperado de neve cobriu as montanhas. No Brasil, chuvas torrenciais atingiram do Rio Grande do Sul a estados do Nordeste, passando pela Região Serrana do Rio de Janeiro.

Empresas e governos precisam estar preparados para tais ocorrências. Assim como é vital acelerar os cortes nas emissões de carbono. A dúvida entre os cientistas diante dos sucessivos recordes de temperatura é se há chance de reviravolta ou se a dinâmica de aquecimento entrou em rota de alta irreversível, com consequências dramáticas para as metas do Acordo de Paris.

Ampliar funcionalismo é perpetuar distorções

Folha de S. Paulo

Governo ensaia expansão de quadro de pessoal custoso, sem incentivo à eficiência, e rejeita reformas por corporativismo

Governos do PT ampliam o quadro de servidores, e os demais o enxugam. Essa tem sido a política de recursos humanos do Executivo federal nas últimas três décadas, no mais das vezes sem diagnósticos claros sobre as reais necessidades da máquina pública.

As administrações petistas se pautam por afinidades sindicalistas e pela crença nas virtudes da expansão do Estado. As outras, em geral, buscam conter a segunda maior despesa não financeira da União, atrás apenas da Previdência.

O gasto com o funcionalismo federal somou R$ 363,7 bilhões no ano passado, aí incluídos inativos e pensionistas, ou o equivalente a 3,4% do Produto Interno Bruto, cifra também registrada em 2022.

Trata-se do patamar mais baixo da série histórica do Tesouro, iniciada em 1997, o que se deve principalmente a um processo de ajuste forçado sob Jair Bolsonaro (PL) —cujo governo, além de restringir contratações, segurou reajustes salariais, embora abrindo custosas exceções para os militares.

Agora, no terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ensaia-se novo ciclo de alta do quadro, hoje de 443,5 mil civis no Executivo, desta vez em condições orçamentárias muito piores que as das primeiras gestões do partido. Já as múltiplas distorções do serviço público seguem quase intocadas.

De mais importante, reformas previdenciárias reduziram privilégios indefensáveis dos servidores, o que torna as contratações de agora menos dispendiosas no futuro.

No entanto permanece o alcance excessivo e disfuncional da estabilidade no emprego, que desincentiva enormemente a produtividade dos funcionários. Nem mesmo a possibilidade de demissão por mau desempenho, incluída na Constituição pela longínqua reforma administrativa de 1998, foi regulamentada até hoje.

O governo petista, previsivelmente, recusa a revisão da estabilidade, que no entender desta Folha deveria se limitar às carreiras típicas de Estado. Tampouco há disposição para aprovar reduções de jornadas de trabalho e remunerações, consideradas inconstitucionais numa decisão corporativista do Supremo Tribunal Federal.

Outras medidas importantes não dependem de mudança na Carta. Entre elas, fazer valer o teto salarial, driblado por inúmeros penduricalhos sobretudo no Judiciário; baixar os salários iniciais, hoje excessivos e próximos aos do topo; diminuir o número de carreiras em prol da gestão de pessoal.

Tais providências decerto têm efeitos mais de longo prazo que imediatos —deveriam ter sido adotadas há muito tempo para um serviço menos custoso e mais eficiente. As ameaças de greve com que Lula lida no momento são somente um sintoma da insustentabilidade do cenário atual.

Libertário liberticida

Folha de S. Paulo

Elon Musk, amigo de tiranos, não tem como posar de paladino da livre expressão

A causa essencial da liberdade de expressão ganhou com o empresário Elon Musk um falso paladino, engajado em um bate-boca oportunista com o Judiciário brasileiro.

Não é fácil, sem dúvida, ignorar uma personalidade pública com o poder de Musk. À parte ser a segunda pessoa mais rica do mundo, maneja com despudor sua plataforma na internet.

A incoerência de seus queixumes em favor da liberdade de expressão é patente. Foi depois de se tornar proprietário da rede Twitter, rebatizada de X, que ela deixou de publicar em 2022 quantas e quais contas sofreram remoção de conteúdo. A transparência que cobra dos outros não pratica em casa.

A empáfia do empresário quando trata com bravatas a democracia brasileira se reduz a subserviência interessada ante autoridades de outros países. Como a China, que visitou em 2023 e cobriu de elogios, embora lá o X esteja banido e inexista liberdade de expressão.

Na Índia, Musk agachou-se diante de Narendra Modi e removeu links para documentário sobre a omissão do hoje premiê perante massacre de 2002, em Gujarat, quando Modi era governador. Na Turquia, restringiu alcance de postagens por ordem do autocrata Recep Erdogan, na eleição de 2023.

A fera hipócrita defensora das liberdades também se converte num dócil bichano nas relações com a sanguinária ditadura saudita. Musk fala grosso nas democracias, inclusive na norte-americana, mas coloca o rabo entre as pernas diante de tiranos.

O empresário posa agora em fotos aos gracejos com o presidente argentino, Javier Milei, outro integrante dileto do clube dos populistas da direita, como Jair Bolsonaro (PL) e Donald Trump. Flertou com os lunáticos que se opuseram à vacinação contra a Covid. Falta somente abraçar a causa terraplanista para completar o perfil do idiota contemporâneo.

Esse é o suposto arauto da liberdade incensado pela direita radical. Um visionário que fez fama e dinheiro investindo em inovação, mas que tem se alinhado aos setores do extremismo regressista.

‘Saidinha’ não é favor aos presos

O Estado de S. Paulo

Lula acerta ao vetar parcialmente o projeto que restringe a concessão do benefício. Caso o Congresso derrube o veto, como é quase certo, terá sido por razões políticas, e não técnicas

O presidente Lula da Silva manifestou respeito à Constituição com seu veto parcial ao Projeto de Lei (PL) 2.253/2022, que restringe drasticamente as saídas temporárias de presos em regime semiaberto, as chamadas “saidinhas”. Seguindo a orientação do ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, Lula vetou o ponto fulcral do projeto: a proibição imposta àqueles presos de visitar suas famílias durante as “saidinhas”. Há poucas semanas, o Congresso aprovou a quase extinção da política penal, mantendo-a apenas para os apenados que estejam cursando os ensinos supletivo, médio, superior ou técnico-profissionalizante.

Em Brasília, é dado como certo que o veto do presidente da República será derrubado pelo Congresso em questão de pouco tempo, como alguns líderes partidários já indicaram à imprensa. Mas a derrubada, caso seja confirmada, não se dará pela fragilidade técnica da decisão de Lula, e sim por questões eminentemente políticas. A revisão draconiana da política de “saidinhas” neste ano eleitoral decorre do previsível interesse de parlamentares das mais diversas afiliações ideológicas de atender a um legítimo anseio da sociedade por mais segurança pública. Em muitas cidades Brasil afora, os cidadãos vivem com medo. E o medo, como se sabe, é um dos sentimentos que mais influenciam o voto.

Nesse sentido, deve-se reconhecer que a decisão política do Congresso de rever a concessão das “saidinhas” é rigorosamente legítima. Isso não significa dizer, porém, que ela tenha sido correta, tampouco a mais indicada para enfrentar com boa técnica os muitos problemas de segurança pública que atormentam milhões de brasileiros. Crimes brutais cometidos por apenados durante as “saidinhas” podem gerar justa revolta nos cidadãos, além de grande sofrimento para as vítimas. Mas orientar a definição de políticas públicas a partir de casos isolados jamais rendeu bons resultados.

As evidências de que uma ínfima minoria de presos comete crimes durante as “saidinhas” indicam que o corte drástico do benefício terá escasso impacto na percepção de segurança da sociedade – se é que terá algum resultado prático. Já para a grande maioria dos presos que hoje podem visitar seus familiares durante o cumprimento da pena, os benefícios são comprovadamente eficazes no sentido da ressocialização.

É preciso ter claro que as “saidinhas”, ao contrário do discurso político dos que defendem sua extinção, estão longe de ser favores prestados aos presos. Como uma das políticas públicas voltadas à ressocialização, as “saidinhas” se prestam, antes de tudo, a resguardar a própria sociedade. Afinal, a Constituição veda como cláusula pétrea a aplicação de penas de morte e de caráter perpétuo, de modo que, cedo ou tarde, os presos voltarão ao convívio social. Como já dissemos, “que preso será esse e com que espírito voltará a circular pelas ruas, depende de quanto o Estado está disposto a lhe estender a mão para reconduzi-lo para uma vida digna” (ver Limitação das ‘saidinhas’ não é panaceia , de 25/2/2024).

Lula deu sinais de que pretende seguir nesse bom caminho, inclusive manifestando coragem política ao assumir o risco de fazer o que acredita ser o certo – tanto do ponto de vista humanitário como constitucional – e contrariar uma decisão do Congresso, sabendo de antemão que não é baixa a probabilidade de sair derrotado.

Em entrevista coletiva para anunciar o veto parcial, Lewandowski afirmou que proibir os presos em regime semiaberto de visitar suas famílias “atenta contra valores fundamentais da Constituição, contra os princípios da dignidade da pessoa humana e da individualização da pena”. É disso que se trata. A decisão do Poder Executivo de vetar parcialmente o PL das “saidinhas” aponta para a observância de valores civilizatórios fundamentais, valores estes que há mais de 35 anos foram consagrados pela “Constituição Cidadã”. Nada além disso.

Idealmente, as “saidinhas” deveriam ter sido mantidas, mas não sem uma rigorosa revisão dos critérios para concessão do benefício.

‘Jeitinho’ é incompatível com a segurança jurídica

O Estado de S. Paulo

Em vez de rejeitar a investida de Lula para retomar o poder estatal na Eletrobras, STF dá mais prazo para uma ‘conciliação’ que desmoraliza contratos firmados conforme o que manda a lei

No dia 4 passado, o ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu dar mais 90 dias para a conclusão de uma negociação entre governo federal e Eletrobras, na qual a União reivindica maior poder de decisão na empresa, proporcional aos 42% que detém do capital. Se alguém quiser escrever um tratado sobre as razões pelas quais nosso risco país é altíssimo, o caso mencionado acima deve estar em destaque, no capítulo sobre insegurança jurídica e o descrédito de contratos firmados conforme o que manda a lei.

Para começo de conversa, a petição do governo, com a assinatura do presidente Lula da Silva, encaminhada ao Supremo pela Advocacia-Geral da União (AGU) em maio do ano passado, deveria ter sido rejeitada logo de saída. Não se trata de negar o mérito do pleito, e sim de reconhecer que a questão já está amplamente pacificada.

Recordemos: a desestatização da Eletrobras foi aprovada em 2021 pelo Congresso, por meio da Lei 14.182/2021, que permitia a entrada de investidores privados na companhia. Segundo essa lei, nenhum dos acionistas poderia ter mais que 10% das ações com direito a voto, no modelo conhecido como corporation.

Limitar o poder de voto numa companhia com capital pulverizado e sem controlador é uma situação comum. Na Embraer, por exemplo, o limite é de 5%, seja qual for a participação acionária individual. Essa limitação foi uma das medidas que garantiram o interesse na compra de ações da Eletrobras em seu processo de capitalização. Hoje, a companhia tem em torno de 200 mil acionistas, de todos os portes.

Mas Lula da Silva – aquele segundo quem “as empresas brasileiras, bancos brasileiros, têm que pensar primeiro neste país para depois pensar nos seus lucros, nos seus acionistas” – nunca se conformou com a perda de poder de decisão sobre a Eletrobras, cuja privatização foi por ele classificada de “crime de lesa-pátria”.

O esperneio judicial da esquerda contra a privatização da Eletrobras vem desde pelo menos 2018, mas as sucessivas derrotas em tribunais, inclusive no Supremo, já deveriam ter deixado claro que se tratava de um processo regular e legítimo. Se isso não bastasse, a privatização foi avalizada pelo Congresso, o que deveria ter dado o assunto por encerrado. Mas o lulopetismo é incansável: de volta ao poder, Lula mandou a AGU questionar no Supremo a redução da influência do governo na Eletrobras.

O ministro Nunes Marques, relator da ação, deveria tê-la rejeitado liminarmente porque questionava o que se entende por “ato jurídico perfeito”, isto é, que foi consumado segundo a lei vigente e produziu efeitos. Em vez disso, Nunes Marques optou pelo “jeitinho”: anunciando que adotaria um procedimento abreviado para remeter o pleito à apreciação do plenário do STF – ao menos, eximiu-se de decisão monocrática e arbitrária, tão em voga na Corte nos últimos tempos – acabou remoendo o caso por meses até encaminhá-lo, em dezembro do ano passado, à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, com prazo de 90 dias para uma solução consensual. Esse prazo agora foi prorrogado – como se o tempo tivesse o condão de tornar legítima a teimosia do governo. Ora, contratos considerados perfeitos existem para serem cumpridos, e não modificados conforme os desejos do presidente da República ou de um partido político, mas o ministro do STF não levou isso em conta.

O resultado prático é a desmoralização dos contratos firmados com o poder público. Não é à toa que investidores cobram do Brasil mais garantias e retornos mais robustos quando são chamados a participar de projetos que envolvem o governo. Ou seja: gasta-se mais dinheiro do contribuinte para compensar a insegurança jurídica. É claro que para Lula isso não tem nem nunca teve importância, mas o Supremo deveria ser mais assertivo na defesa dos contratos.

Às cegas diante da epidemia

O Estado de S. Paulo

Saúde corta verba de propaganda contra a dengue quando a população teria de se preparar

Na contramão dos alertas sobre a escalada da dengue no País, o Ministério da Saúde enxugou para R$ 13,1 milhões a verba para campanhas publicitárias de conscientização e prevenção da doença ao longo de 2023. Não se sabe exatamente quanto dessa cifra sobrou para o fim daquele ano, quando a sensibilização massiva dos cidadãos para impedir a proliferação do mosquito Aedes aegypti seria indispensável para a contenção da epidemia em 2024. Sabe-se, isto sim, que o total foi bem menor do que o destinado nos últimos anos da gestão de Jair Bolsonaro, notória pelo negacionismo em questões de saúde pública, e isso num momento em que a epidemia já havia sido amplamente anunciada.

Com base em dados do Sistema de Comunicação de Governo do Poder Executivo Federal (Sicom), reportagem do Estadão apontou a redução de 58,5% nos recursos para a campanha contra a dengue em 2023, em comparação com o ano anterior. Houve correta prioridade da ministra da Saúde, Nísia Trindade, em investir em propagandas de estímulo à vacinação, mas, do ponto de vista sanitário, causa estranheza o critério da pasta de conceder mais recursos à comunicação sobre o programa Farmácia Popular do que ao combate a uma epidemia aguardada a cada verão.

No segundo semestre de 2023, o Ministério da Saúde dispunha de argumentos sólidos e tempo hábil para solicitar verba extraordinária para uma vigorosa campanha de prevenção da epidemia. Orientar insistentemente a população a destruir potenciais focos de proliferação do mosquito da dengue, entre outras medidas, não seria trivial diante do contexto de escassez de imunizantes. Se pediu a verba ou se foi negada pela equipe econômica do governo, a pasta não informou até o momento. Certo é que não houve disseminação exaustiva de peças publicitárias para mobilizar os brasileiros antes de a epidemia consolidar-se no País.

Causa impressão a omissão do Ministério da Saúde mesmo depois de ter reconhecido, em nota de novembro de 2023, a “possibilidade de uma epidemia (de dengue) maiores proporções que as documentadas na série histórica do País”. O texto reproduziu alertas emitidos pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A pasta estava ciente, na ocasião, sobre a estimativa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de um recorde de 2,2 milhões de infectados neste ano – já defasado pelos atuais 3 milhões de prováveis casos da doença.

Não se pode atribuir o quadro preocupante da epidemia no Brasil exclusivamente à falha de comunicação que levou a população a ser pega de calças curtas pela dengue. Tampouco ao inexplicável fato de a secretária responsável pelo enfrentamento à dengue, Ethel Maciel, ter saído de férias em janeiro, em plena crise sanitária. Mas é preciso considerar o indiscutível impacto de tais negligências e cobrar a devida responsabilidade do Ministério da Saúde.

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