Passados 20 anos, deitou raízes entre nós a percepção de que é obrigação de qualquer governo preservar a estabilidade do poder de compra da moeda do País. E vale lembrar, mais uma vez, que para os envolvidos com o Plano Real e sua consolidação o controle da inflação nunca foi um objetivo único, um fim em si mesmo, uma estação a que se chegasse, e pronto.
Para nós, a agenda brasileira pós-1994 seria a própria agenda do desenvolvimento econômico e social do País. O que o Real fez foi permitir que o Brasil, antes drogado pela inflação desmedida, pudesse descortinar de forma menos obscura a natureza e a dimensão dos outros (inúmeros) desafios por enfrentar. Procurando tornar-se um país capaz de crescer de forma sustentável, com inflação sob controle, mais justiça social, finanças públicas em ordem e maior eficiência nos setores público e privado.
Como sabemos, 20 anos são pouco para a magnitude dessa empreitada. E também que a capacidade que têm governos (e sociedades) de identificar desafios, riscos e oportunidades depende da qualidade do seu entendimento sobre o seu passado. É difícil que alguém saiba para onde vai (ou pode ir, ou gostaria de ir) se não sabe de onde veio, como veio e como se encontra agora.
E o que temos agora? Temos hoje cerca de 20 anos de inflação relativamente civilizada desde o lançamento do Real. Não é coisa pouca para um país que foi recordista mundial de inflação acumulada nos 30 anos do início dos anos 1960 ao início dos 1990. Temos hoje mais de 20 anos desde que restabelecemos o nosso relacionamento com a comunidade financeira internacional, renegociando nossa dívida externa pública com credores privados e oficiais.
Temos hoje mais de 20 anos desde que demos um salto qualitativo e quantitativo no processo de abertura de nossa economia ao comércio internacional. Temos hoje bem mais de 20 anos desde que iniciamos o processo de privatização/concessão no Brasil, infelizmente interrompido durante longo tempo e só recentemente retomado. Temos mais de 20 anos de autonomia operacional do Banco Central na condução da política monetária - e existe hoje uma percepção mais ampla de quão fundamental para o País é preservar a credibilidade dessa instituição.
Passaram-se 17 anos desde que resolvemos problemas de liquidez e de solvência bancária, tanto no setor público quanto no setor privado - e desde então nunca mais tivemos problemas sérios em grandes bancos. Temos mais 15 anos, feitos em janeiro de 2014, de um regime de taxa de câmbio flutuante. Teremos, em junho agora, 15 anos do regime monetário de metas de inflação. Temos quase 14 anos desde que, em maio de 2000, foi aprovada a crucial Lei de Responsabilidade Fiscal.
Temos 13 anos decorridos desde o início dos processos de transferência direta de renda para as populações mais pobres do País por meio dos vários programas que foram criados a partir do ano de 2001- consolidados e ampliados pelo governo Lula a partir de outubro de 2003. Como é sabido, qualquer governo em qualquer parte do mundo constrói, sim, sobre avanços alcançados pelo país na vigência de administrações anteriores. O Brasil não é exceção a essa regra. Olhando os últimos 20 anos, há elementos de continuidade e de mudança, assim como há acertos e erros em todos os governos.
Mirando à frente, deveria ser possível, com um mínimo de boa-fé, honestidade intelectual e de recusa ao uso de rotulagens vazias, buscar construir as convergências possíveis (ou clarificar diferenças de forma honesta) pensando na próxima geração. A seguir, apenas dois exemplos de questões sobre as quais um debate sério me parece inadiável, para um país que pretende, e pode, mostrar que é capaz de escapar da chamada "armadilha da renda média", que aqui ainda é cerca de um quarto da renda média atual dos principais países desenvolvidos.
O Brasil tem hoje a quarta maior população urbana do mundo. E esta aumentou em mais de 150 milhões de pessoas nos últimos 60 anos. Nossas carências sociais e de infraestrutura urbana são enormes e se expressam sob a forma de demandas por mais e melhor saúde, educação, emprego e renda e por mais e melhor infraestrutura de transporte, energia e saneamento. Que são tidas, todas, como altamente "intensivas em Estado". Que para tal precisaria tributar, endividar-se e gastar ou transferir os recursos assim obtidos - sempre escassos em relação às demandas e expectativas. Nosso futuro depende de mais clareza nessa discussão - e sobre prioridades no uso de recursos escassos. Há prioridades que estimulam maior crescimento, outras que o inibem. A questão não é sobre a necessidade de Estado, mas sobre a forma como governos específicos atuam.
O outro desafio vem da extraordinária velocidade de transcrição demográfica no Brasil. A população brasileira, que crescia a 3,1% ao ano na década de 1950 e a 2,4% no início dos anos 80, está crescendo a 0,7% ao ano nesta década. Na qual a faixa etária até 29 anos está diminuindo. A faixa até 39 anos diminuirá na próxima década, quando a população estará crescendo a 0,44% ao ano. Como escreveu Fabio Giambiagi, esse é "um desafio cujas dimensões ainda não foram percebidas pela opinião publica - e, o que é mais grave, nem pelo governo".
Os efeitos dessa transição já se fazem sentir hoje na oferta de mão de obra e na população ocupada. A partir de agora, o crescimento da população ativa "garante" pouco mais que um ponto porcentual de crescimento do produto interno bruto (PIB). Como mostram vários estudos, crescer muito além disso (1.2% a 1.4%), só com aumentos de produtividade. Que dependem de acumulação de capital físico e humano por trabalhador, de inovações técnicas e de mudanças nas áreas previdenciária, trabalhista e tributária.
Agenda para os próximos 20 anos. Com o Real.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Estado de S. Paulo
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