A crise da Ucrânia é grave e complexa. Bem mais do que se poderia supor pela reação inicial dos Estados Unidos ao propor sanções econômicas. “Ninguém pode isolar a Rússia”, diz o embaixador Ronaldo Sardenberg, que já representou o Brasil em Moscou na época da União Soviética. Os dados de comércio e energia mostram como é forte o entrelaçamento com a Europa.
A Alemanha e a Rússia têm um comércio bilateral que no ano passado chegou a US$ 106 bilhões, isso é praticamente um quarto de todo o comércio do Brasil com o mundo, para se ter uma ideia. Desde o acidente de Fukushima, a Alemanha desativou sete de suas usinas nucleares e aumentou a importação de gás dos russos. Hoje, 40% de todo o gás que o país consome são fornecidos pela Rússia, origem também de 25% do gás consumido na Europa. Metade dele passa pela Ucrânia. Mas até isso é dizer pouco da complexidade aterradora desse evento.
— Rússia e Ucrânia têm uma longa e tumultuada história. A Rússia nasceu em Kiev (foram um país só nos séculos IX e XII). Foi a primeira capital e só depois foi São Petersburgo, e, por fim, Moscou. A Crimeia foi doada por Nikita Krushev à Ucrânia. Na época, não tinha grande valor. Hoje, é uma península com turismo dinâmico, além de ser estratégica para a Rússia. A Ucrânia foi a sede da resistência aos soviéticos, e o Exército Vermelho só a derrotou em 1930. A população ucraniana em grande parte é russa. No século XIX, houve a guerra da Crimeia, que opôs a Rússia às potências do Ocidente. Enfim, nada é simples nesse caso e tudo tem profundas raízes históricas — diz o embaixador.
Do ponto de vista diplomático, a decisão do Parlamento da Região Autônoma da Crimeia de propor referendo deixou o Ocidente sem argumento. Como os defensores da solução democrática, de que se ouça o povo, pode ser contra ouvir o povo? A tese de que o referendo é contra leis internacionais é muito fraca.
— A Rússia não é mais poderosa como foi quando União Soviética, mas seus intensos laços econômicos com a Europa, a dependência energética, tornam impossível a proposta do isolamento que a diplomacia americana propôs. A Alemanha, por sua vez, além dos interesses econômicos e energéticos não vê com bons olhos a interferência americana na Europa, na qual ela hoje tem comando — lembra.
O governo impopular da Ucrânia foi derrubado pelas manifestações de rua. Não conseguiria se manter. Mas Vladimir Putin diz que foi um golpe de Estado contra a ordem constitucional. A biografia de Putin não o faz mestre nesse assunto. Quem foi chefe da KGB nunca será verdadeiramente um democrata. Lá não se ensinava essa disciplina. Por outro lado, a diplomacia russa comandada por Serguei Lavrov tem demonstrado enorme competência em vários casos recentes; enquanto a diplomacia americana exibe nesse caso uma visão superficial da complexidade dos eventos.
A Rússia, por sua vez, já é parte do sistema financeiro internacional e é, portanto, punida ou premiada pelos fluxos de capitais, dependendo da conjuntura. Na semana passada, ela teve mais uma demonstração disso com seu esforço de vender US$ 11 bilhões num único dia para segurar a desvalorização do rublo e ainda viu a bolsa despencar. Ela tem enormes reservas cambiais — calculadas em US$ 493 bilhões — mas sofreu uma fuga de capitais de US$ 60 bilhões no ano passado. A alta de juros de 1,5 ponto percentual anunciada pelo BC russo na segunda-feira vem na hora em que se projeta o crescimento de apenas 1% do PIB para este ano.
A Ucrânia está exposta a uma crise econômica de grandes proporções. Segundo a consultoria inglesa Capital Economics, a Ucrânia tem uma necessidade de financiamento externo de US$ 80 bilhões este ano e tem apenas US$ 15 bi de reservas. Precisa de um aporte urgente de US$ 25 bilhões e uma missão do FMI já foi para o país. Ocidente e Rússia oferecem ajuda do mesmo tamanho: € 12 bilhões. Não por acaso: disputam influência no país que dá à Rússia entrada no Mar Negro e passagem para o gás.
— Não se está discutindo a Ucrânia, mas sim até que ponto vai a área de influência da Rússia — disse o embaixador Ronaldo Sardenberg.
Nesse tabuleiro complexo, o melhor é não subestimar o conflito e torcer por uma saída diplomática. Sem isso, haverá um centro de instabilidade político-militar do lado da Europa, quando ela começa a se recuperar da crise econômica.
Fonte: O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário