domingo, 13 de junho de 2021

Dorrit Harazim - Com máscara

- O Globo

Terça-feira, dia 8, já noite. Na papelaria Kalunga abrigada num shopping na Enseada do Suá, em Vitória, ocorre um diálogo carregado. Tipo pano rápido, porém eloquente.

1) Funcionário solicita a um cliente o uso de máscara facial de proteção para poder atendê-lo.

2) Cliente diz “não”.

3) Funcionário explica ser lei.

4) Cliente responde: “Eu faço a minha lei, não cumpro leis”. Saca uma arma e a aponta para o rosto do funcionário.

5) Cliente conclui a compra com outra vendedora, sai da loja rindo. Sem máscara.

Segundo o repórter Caíque Verli, da TV Gazeta, o funcionário ameaçado registrou a ocorrência em delegacia, e a pessoa que testemunhou o ocorrido preferiu não se identificar. Compreende-se. Estamos num país onde o recurso a armas para “cidadãos de bem” é incentivado e facilitado a canetadas pelo chefe da nação.

O cliente do shopping de Vitória é apenas mais um espécime do Brasil gestado por Jair Bolsonaro — antecipou-se sem saber à clara intenção presidencial de erradicar a obrigatoriedade do uso de máscara. O anúncio feito por Bolsonaro de forma oblíqua, porém oficial, sugeriu o caminho: caso queira permanecer no cargo, “um tal de Queiroga” — designação usada pelo presidente para seu quarto ministro da Saúde, Marcelo Queiroga — deveria fazer um “estudo” sobre a inutilidade da proteção facial para quem já foi vacinado ou infectado. “Vamos ficar reféns de máscaras até quando?”, pergunta o mandante, sem esconder o asco do exemplar entre os dedos. Pelo fato de o vírus ser invisível e estar naufragando seu governo, Bolsonaro parece ter transferido à singela máscara o papel de inimigo mais detestável — ela é física e insultuosa, pois explicita a morte que ronda o país. É preciso varrê-la de cena, portanto. Sumir com este que é, além da vacina, nosso melhor escudo para não chegarmos tão depressa às 500 mil vidas varridas pela Covid-19.

Como previsto, e foi intencional, o proclama oficial injetou fervor nos mais crédulos, confundiu e atordoou os menos informados e exasperou a repulsa de quem se esforça para não perder a sanidade. Vale conferir o semblante de alarme represado do doutor Drauzio Varella ao ser entrevistado no programa “Em pauta”, da GloboNews. Havia inabitual angústia na fala e no olhar de quem, há décadas, nos explica com serenidade e saber as mazelas da saúde pública nacional. Por honrado, ele não fugiu a uma pergunta sobre o que o doutor Queiroga deveria fazer para honrar a profissão, se instado a produzir um relatório nos moldes pedidos. “Pedir demissão”, respondeu.

Existem inúmeros vocábulos para definir um chefe de nação que necessita ser idolatrado como “mito” por um rebanho. Difícil é encontrar linguagem publicável, em qualquer idioma, para retratar um presidente que se autodefine como “imorrível”, “imbrochável”, “incomível”. Voltemos, portanto, a nosso personagem do shopping.

“Eu faço a minha lei, não cumpro leis”, arrostou o valentão de arma em punho de Vitória. Palavras ainda não pronunciadas ipsis litteris pelo presidente do Brasil, embora pareçam estar na raiz de seus movimentos — em três anos no poder, Bolsonaro já domesticou a Procuradoria-Geral da República, a Advocacia-Geral da União, as Forças Armadas, o Coaf e quase consegue fazer estrago no Tribunal de Contas da União. No seu governo impera a teia do “paralelo” no lugar do oficial, desdenha-se o valor de instituições, da ciência, da cultura, das gentes múltiplas que compõem o Brasil. Tudo a céu aberto e cada vez mais desenvergonhado, com foco único no embate eleitoral de 2022. Ou antes, se preciso.

A edição mais recente da revista “Cult” abriga um sólido artigo do desembargador Marcelo Semer. Convém lê-lo na íntegra, embora o título já aponte para a tese central: “Os negacionistas somos nós”. O autor nos faz percorrer quanto instituições que vão da grande imprensa ao STF, dos partidos de oposição à opinião pública, uma a uma, acabaram aceitando o que professavam ser inadmissível. “O que as instituições funcionando não perceberam”, escreve o autor, “é que o governo é sua própria sombra, ele funciona no paralelo porque ele é o negativo das instituições. Ele não tem um ‘gabinete do ódio’; ele é um gabinete de ódio, porque o ódio é essencial para a política de destruição que nunca escondeu. Dizem que eles [o mandatário e seus operadores] são negacionistas, mas não é verdade. Negacionistas são os que se recusam a ver. Ou veem e se recusam a aceitar o que veem...”.

Em outras palavras, nós. Sabemos ser no escuro que os olhos começam a enxergar. Estamos no escuro, começando a enxergar — de máscara e com a ajuda da CPI.

 

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