- O Globo
Terça-feira, dia 8, já noite. Na papelaria
Kalunga abrigada num shopping na Enseada do Suá, em Vitória, ocorre um diálogo
carregado. Tipo pano rápido, porém eloquente.
1) Funcionário solicita a um cliente o uso
de máscara facial de proteção para poder atendê-lo.
2) Cliente diz “não”.
3) Funcionário explica ser lei.
4) Cliente responde: “Eu faço a minha lei,
não cumpro leis”. Saca uma arma e a aponta para o rosto do funcionário.
5) Cliente conclui a compra com outra
vendedora, sai da loja rindo. Sem máscara.
Segundo o repórter Caíque Verli, da TV
Gazeta, o funcionário ameaçado registrou a ocorrência em delegacia, e a pessoa
que testemunhou o ocorrido preferiu não se identificar. Compreende-se. Estamos
num país onde o recurso a armas para “cidadãos de bem” é incentivado e
facilitado a canetadas pelo chefe da nação.
O cliente do shopping de Vitória é apenas mais um espécime do Brasil gestado por Jair Bolsonaro — antecipou-se sem saber à clara intenção presidencial de erradicar a obrigatoriedade do uso de máscara. O anúncio feito por Bolsonaro de forma oblíqua, porém oficial, sugeriu o caminho: caso queira permanecer no cargo, “um tal de Queiroga” — designação usada pelo presidente para seu quarto ministro da Saúde, Marcelo Queiroga — deveria fazer um “estudo” sobre a inutilidade da proteção facial para quem já foi vacinado ou infectado. “Vamos ficar reféns de máscaras até quando?”, pergunta o mandante, sem esconder o asco do exemplar entre os dedos. Pelo fato de o vírus ser invisível e estar naufragando seu governo, Bolsonaro parece ter transferido à singela máscara o papel de inimigo mais detestável — ela é física e insultuosa, pois explicita a morte que ronda o país. É preciso varrê-la de cena, portanto. Sumir com este que é, além da vacina, nosso melhor escudo para não chegarmos tão depressa às 500 mil vidas varridas pela Covid-19.
Como previsto, e foi intencional, o
proclama oficial injetou fervor nos mais crédulos, confundiu e atordoou os
menos informados e exasperou a repulsa de quem se esforça para não perder a
sanidade. Vale conferir o semblante de alarme represado do doutor Drauzio
Varella ao ser entrevistado no programa “Em pauta”, da GloboNews. Havia
inabitual angústia na fala e no olhar de quem, há décadas, nos explica com
serenidade e saber as mazelas da saúde pública nacional. Por honrado, ele não
fugiu a uma pergunta sobre o que o doutor Queiroga deveria fazer para honrar a
profissão, se instado a produzir um relatório nos moldes pedidos. “Pedir
demissão”, respondeu.
Existem inúmeros vocábulos para definir um
chefe de nação que necessita ser idolatrado como “mito” por um rebanho. Difícil
é encontrar linguagem publicável, em qualquer idioma, para retratar um
presidente que se autodefine como “imorrível”, “imbrochável”, “incomível”.
Voltemos, portanto, a nosso personagem do shopping.
“Eu faço a minha lei, não cumpro leis”,
arrostou o valentão de arma em punho de Vitória. Palavras ainda não
pronunciadas ipsis litteris pelo
presidente do Brasil, embora pareçam estar na raiz de seus movimentos — em três
anos no poder, Bolsonaro já domesticou a Procuradoria-Geral da República, a
Advocacia-Geral da União, as Forças Armadas, o Coaf e quase consegue fazer
estrago no Tribunal de Contas da União. No seu governo impera a teia do
“paralelo” no lugar do oficial, desdenha-se o valor de instituições, da
ciência, da cultura, das gentes múltiplas que compõem o Brasil. Tudo a céu
aberto e cada vez mais desenvergonhado, com foco único no embate eleitoral de
2022. Ou antes, se preciso.
A edição mais recente da revista “Cult”
abriga um sólido artigo do desembargador Marcelo Semer. Convém lê-lo na
íntegra, embora o título já aponte para a tese central: “Os negacionistas somos
nós”. O autor nos faz percorrer quanto instituições que vão da grande imprensa
ao STF, dos partidos de oposição à opinião pública, uma a uma, acabaram
aceitando o que professavam ser inadmissível. “O que as instituições
funcionando não perceberam”, escreve o autor, “é que o governo é sua própria
sombra, ele funciona no paralelo porque ele é o negativo das instituições. Ele
não tem um ‘gabinete do ódio’; ele é um gabinete de ódio, porque o ódio é
essencial para a política de destruição que nunca escondeu. Dizem que eles [o mandatário e seus operadores] são
negacionistas, mas não é verdade. Negacionistas são os que se recusam a ver. Ou
veem e se recusam a aceitar o que veem...”.
Em outras palavras, nós. Sabemos ser no
escuro que os olhos começam a enxergar. Estamos no escuro, começando a enxergar
— de máscara e com a ajuda da CPI.
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