O Estado de S. Paulo
Ele estimulará a fuga ao pagamento de
sentenças condenatórias, deixado para o Tesouro Nacional
No Brasil a Justiça rápida e barata
pertence à esfera da utopia. Já nos idos de 1655 o padre Antônio Vieira
condenava a morosidade dos juízes no Sermão da Terceira Dominga da
Quaresma e, dois séculos depois, assim também o fazia Rui Barbosa na Oração
aos Moços, dirigida aos bacharelandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito
de São Paulo.
A morosidade se agrava no processo de
execução, após o trânsito em julgado de sentença condenatória, para cobrança
dos valores devidos ao vencedor da lide. A dificuldade atinge elevada
proporção. Em 2002, quando presidia o Tribunal Superior do Trabalho (TST),
inconformado com um milhão e meio de sentenças pendentes de liquidação,
celebrei com o presidente do Banco Central, dr. Armínio Fraga, o Convênio
Bacen-Jud, destinado a disciplinar o bloqueio judicial de depósitos do devedor
em contas bancárias.
Decorridos 20 anos a situação se alterou, mas para pior. Analisemos o relatório do Tribunal Superior do Trabalho, sobre o ano de 2019. Nas Varas do Trabalho foi recebido 1,8 milhão de casos novos. Computados os processos entrados nos tribunais regionais e no TST, o total foi de 3,056 milhões. No mesmo período foram julgados 4,007 milhões. O tempo médio gasto entre ajuizamento e encerramento da ação, com o trânsito em julgado da sentença, é de 1,6 ano no TST, dez meses nos Tribunais Regionais do Trabalho, sete meses nas Varas do Trabalho.
Na fase de execução, com a quitação do
valor devido ao reclamante, revela o relatório demora, em média, de 4,3 anos. O
vencedor deve se resignar e não se deixar levar pelo desespero até conseguir
ter o crédito depositado na conta bancária. Em resumo, do ingresso da ação ao
pagamento, a demora pode alcançar sete anos.
É difícil apurar o montante em execução. A
dívida permanece em constante atualização de juros e correção monetária.
Sabemos, porém, pelo relatório, que em 2019 aos reclamantes foram pagos R$
30.726.528.090,17, sendo 47% por acordos, 40,8% mediante execuções e 12,2% de
forma espontânea.
Referência especial merecem os precatórios
das fazendas públicas federal, estaduais, distrital e municipais. A matéria é
prevista no artigo 100 da Constituição e no artigo 78 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT). Em 2019 a dívida trabalhista em
precatórios totalizava R$ 14.185 bilhões, havendo 107.036 mil pendentes de
quitação e 58.9 mil com prazo vencido.
Para enfrentar a sobrecarga de processos a
Justiça do Trabalho dispõe de 44.360 magistrados e servidores e custa, para
cada brasileiro, R$ 102,00. O orçamento de 2019 andou em torno de R$ 21,6
bilhões. Em contrapartida arrecada para a União cerca de R$ 4 bilhões em Imposto
de Renda, INSS, custas, emolumentos e multas, valor correspondente a 20% do
gasto orçamentário.
A morosidade leva reclamantes a venderem a
ação judicial, a escritórios especializados nessa modalidade obscura de
negócio. O acordo que o trabalhador não fez em juízo lhe custará depois muito
dinheiro. Note-se que o parágrafo 13 do artigo 100 da Constituição diz que “o
credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a
terceiros, independente da concordância do devedor”. É a consagração da
imoralidade: devo, não nego e não pago.
A Constituição de 1988 abriga estranha
contradição. Da mesma maneira que assegura a todos, nos âmbitos judicial e
administrativo, “a razoável duração do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação” (artigo 5.º, LXXVIII), determina a criação, por
lei, de “Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas” (FGET), integrado por
multas decorrentes de condenações trabalhistas e administrativas oriundas da
fiscalização do trabalho, além de outras receitas (Emenda Constitucional
45/2004, artigo 3.º).
Tramita no Supremo Tribunal Federal mandado
de injunção ajuizado pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (CF,
art. 5.º, LXVIII) cujo objetivo é exigir do Poder Legislativo aprovação de lei
regulamentadora do FGET. Distribuído à ministra Cármem Lúcia, S. Exa. declarou
em mora o Congresso Nacional e impôs prazo de 24 meses, contados da data da
publicação do acórdão, para aprovação de lei instituindo o citado fundo de
garantia.
Trocando em miúdos, em vez de recomendar
medidas de combate à litigiosidade e à morosidade, S. Exa. propõe o pagamento
forçado de dívidas trabalhistas pelo Tesouro Nacional, ou seja, pelo povo.
A decisão me obriga a perguntar a S. Exa.
se, antes de decidir, examinou o relatório do TST. Se conhece o volume e os
valores das condenações. Se o fundo responderá pela quitação de precatórios
atrasados e pagará, além de dívidas da fazenda federal, débitos das fazendas
estaduais e municipais. Por último, qual a razão para privilegiar a solução de
débitos trabalhistas, ignorando os demais.
O intenso e oneroso ajuizamento de processos na Justiça do Trabalho impõe medidas práticas de combate à nociva e extrema judicialização. A criação do FGET estimulará a fuga ao pagamento de sentenças condenatórias, deixado à responsabilidade do Tesouro Nacional.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
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