sábado, 31 de julho de 2021

Demétrio Magnoli - A senha dos golpistas

Folha de S. Paulo

Citada por bolsonaristas, liberdade é termo cujo significado depende do contexto

No Império Romano, os primeiros cristãos usavam a marca do peixe como senha para reconhecerem uns aos outros. Os golpistas brasileiros que circulam em torno de Bolsonaro utilizam a sua própria senha: a palavra liberdade.

Registro 1. A nota do ministro da Defesa, general Braga Netto, de falso desmentido de sua ameaça de golpe, “reitera que as Forças Armadas atuam e sempre atuarão dentro dos limites previstos na Constituição”. Na sequência, oferece uma curiosa interpretação de tais “limites”, garantindo o compromisso das três forças com “a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”.

Registro 2. Antes, na nota de repúdio às declarações do senador Omar Aziz, assinada pelo mesmo Braga Netto e pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, os chefes militares proclamam que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.

A Constituição atribui às Forças Armadas a “defesa da Pátria”, a “garantia dos poderes constitucionais” e, por iniciativa de um dos poderes, a garantia “da lei e da ordem”. Da segunda missão, pode-se extrair a conclusão legítima de que cabe aos homens em armas a defesa da democracia —mas não a da “liberdade do povo brasileiro”. As notas de Braga Netto devem ser classificadas como revisões constitucionais ou, mais claramente, senhas golpistas.

Liberdade é termo cujo significado depende do contexto. Aparece na divisa oficial da França, junto com a igualdade: a revolução de 1789 definiu-a como destruição de um Estado fundado no poder da monarquia e nos privilégios da nobreza. Nas manifestações de rua contra a ditadura militar no Brasil, liberdade sintetizava o repúdio a um governo não eleito pelo povo. O sentido dos atuais protestos em Cuba é basicamente o mesmo (viu, Lula?).

Mas liberdade tem, ainda, outros significados. A liberdade dos estados era o valor supremo da aristocracia sulista dos EUA —e ela se traduzia na liberdade de possuir, comprar e vender escravos.

Quando liberais fundamentalistas invocam a liberdade, pensam exclusivamente nas liberdades econômicas, ou seja, nos direitos de agentes privados no mercado. Milton Friedman, herói de Paulo Guedes, chegou a assessorar a ditadura de Pinochet e o regime totalitário chinês por considerá-las mais valiosas que as liberdades políticas.

Já os comunistas ortodoxos, uma espécie em extinção, erguem a bandeira da liberdade do proletariado para justificar o monopólio de poder do partido único que se enxerga como representação histórica da classe trabalhadora.

No universo bolsonarista, liberdade não é um valor, mas o alicerce para fraudes conceituais em série. Liberdade de religião serve, nessa moldura, para promover a colonização do Estado laico por seitas cristãs que orbitam o governo. Liberdade de expressão, para evitar a criminalização de conclamações à violência contra as instituições democráticas. Liberdade de ensino, para substituir a escola pela educação doméstica, de modo a isolar as crianças em bolhas de preconceito e ignorância. Liberdade individual, para legitimar a distribuição de armas a milicianos.

Os cristãos antigos desenhavam o símbolo do peixe no chão ao se encontrar com desconhecidos. A linguagem cifrada era uma declaração política oculta, que solicitava uma resposta igualmente codificada. As notas e postagens de militares bolsonaristas que empregam a expressão “liberdade do povo brasileiro” desempenham funções similares.

De um lado, eles testam as reações do Congresso e do STF: querem saber até onde vai a tolerância diante da ameaça de subversão da ordem democrática. De outro, enviam sinais para grupos bolsonaristas em quartéis militares e policiais: querem indicar claramente de que lado estão. Liberdade, na novilíngua deles, é senha golpista.

 

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