Folha de S. Paulo
Citada por bolsonaristas, liberdade é termo
cujo significado depende do contexto
No Império Romano, os primeiros cristãos
usavam a marca do peixe como senha para reconhecerem uns aos outros. Os
golpistas brasileiros que circulam em torno de Bolsonaro utilizam a sua própria
senha: a palavra liberdade.
Registro 1. A nota do ministro da Defesa,
general Braga Netto, de falso desmentido de sua ameaça de
golpe, “reitera que as Forças Armadas atuam e sempre atuarão dentro
dos limites previstos na Constituição”. Na sequência, oferece uma curiosa
interpretação de tais “limites”, garantindo o compromisso das três forças com
“a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”.
Registro 2. Antes, na nota de
repúdio às declarações do senador Omar Aziz, assinada pelo mesmo Braga Netto e
pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, os
chefes militares proclamam que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque
leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo
brasileiro”.
A Constituição atribui às Forças Armadas a “defesa da Pátria”, a “garantia dos poderes constitucionais” e, por iniciativa de um dos poderes, a garantia “da lei e da ordem”. Da segunda missão, pode-se extrair a conclusão legítima de que cabe aos homens em armas a defesa da democracia —mas não a da “liberdade do povo brasileiro”. As notas de Braga Netto devem ser classificadas como revisões constitucionais ou, mais claramente, senhas golpistas.
Liberdade é termo cujo significado depende
do contexto. Aparece na divisa oficial da França, junto com a igualdade: a
revolução de 1789 definiu-a como destruição de um Estado fundado no poder da
monarquia e nos privilégios da nobreza. Nas manifestações de rua contra a
ditadura militar no Brasil, liberdade sintetizava o repúdio a um governo não
eleito pelo povo. O sentido dos
atuais protestos em Cuba é basicamente o mesmo (viu, Lula?).
Mas liberdade tem, ainda, outros
significados. A liberdade dos estados era o valor supremo da aristocracia
sulista dos EUA —e ela se traduzia na liberdade de possuir, comprar e vender
escravos.
Quando liberais fundamentalistas invocam a
liberdade, pensam exclusivamente nas liberdades econômicas, ou seja, nos
direitos de agentes privados no mercado. Milton
Friedman, herói de Paulo Guedes, chegou a assessorar a ditadura de
Pinochet e o regime totalitário chinês por considerá-las mais valiosas que as
liberdades políticas.
Já os comunistas ortodoxos, uma espécie em
extinção, erguem a bandeira da liberdade do proletariado para justificar o
monopólio de poder do partido único que se enxerga como representação histórica
da classe trabalhadora.
No universo bolsonarista, liberdade não é
um valor, mas o alicerce para fraudes conceituais em série. Liberdade de
religião serve, nessa moldura, para promover a colonização do Estado laico por
seitas cristãs que orbitam o governo. Liberdade de expressão, para evitar a
criminalização de conclamações à violência contra as instituições democráticas.
Liberdade de ensino, para substituir a escola pela educação doméstica, de modo
a isolar as crianças em bolhas de preconceito e ignorância. Liberdade
individual, para legitimar a distribuição de armas a milicianos.
Os cristãos antigos desenhavam o símbolo do
peixe no chão ao se encontrar com desconhecidos. A linguagem cifrada era uma
declaração política oculta, que solicitava uma resposta igualmente codificada.
As notas e postagens de militares bolsonaristas que empregam a expressão
“liberdade do povo brasileiro” desempenham funções similares.
De um lado, eles testam as reações do
Congresso e do STF: querem saber até onde vai a tolerância diante da ameaça de
subversão da ordem democrática. De outro, enviam sinais para grupos
bolsonaristas em quartéis militares e policiais: querem indicar claramente de
que lado estão. Liberdade, na novilíngua deles, é senha golpista.
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