sábado, 31 de julho de 2021

Ascânio Seleme - Um país no passado

O Globo

O Brasil, que está parado desde janeiro de 2019, corre o risco de ver sua democracia destruída ao recuar pelo menos 30 anos em direção ao passado se o presidente não for impedido

A imagem que a Secom escolheu para homenagear o agricultor brasileiro, a silhueta de um homem carregando uma espingarda em meio a uma plantação, remete o espectador a um passado sombrio da História do campo brasileiro. Da mesma forma, a live abusiva de Jair Bolsonaro desta quinta-feira mostra o caminho que nos joga de novo nos anos 1980. Trata-se de passos calculados para levar o Brasil de volta às trevas. A ideia absurda mas visível que está por trás de cada um desses movimentos é terminar o ciclo fechando o país, o Congresso e o Supremo, suspendendo direitos políticos, calando a imprensa, baixando o porrete.

O agricultor armado lembra os piores momentos da guerra no campo, com a criação da União Democrática Ruralista, a UDR. Formada em 1985 como grupo de lobby para defender os interesses do setor na Constituinte, a UDR acabou se transformando no principal polo de disseminação da violência. Jagunços armados nas fazendas do interior do país se transformaram na imagem agora revivida pela Secom. Ataques contra líderes do movimento dos sem-terra, padres e sindicalistas rurais deixaram um rastro de mortes no país cujo maior símbolo foi o seringalista Chico Mendes.

A defesa tão intransigente quanto obtusa do voto impresso feita por Bolsonaro também joga luz sobre o Brasil dos coronéis do interior, que carregavam os eleitores em caminhões para votar e depois contavam seus votos, um a um. E ai de quem não votasse em quem o coronel mandou. Os mais velhos vão se lembrar das apurações das eleições que antecederam o voto eletrônico. As urnas eram abertas e as cédulas espalhadas em mesas. Cada uma delas composta por mesários, os contadores oficiais de votos, e representantes de todos os partidos. Uma algazarra, um ambiente para lá de propício para a fraude. Imagine este quadro hoje, com mais de 30 partidos ao redor das mesas de apuração.

O desembarque do Centrão no governo Bolsonaro é outro elemento que manda o país de volta para o passado. Claro que agrupamentos fisiológicos ocorrem no Parlamento brasileiro desde o Império. Evidentemente eles circulam o Poder Executivo e dele muitas vezes fazem parte sempre com o objetivo de garantir brasa sob as suas sardinhas. Mas o modelo “É dando que se recebe” explícito foi concebido no governo de Fernando Collor. Já existia sob Sarney, mas cristalizou-se no processo que acabou com o primeiro impeachment de presidente no Brasil.

As pautas de costumes, que muitos enxergam como um mal menor do extremista Jair Bolsonaro, comportam outras barbaridades que podem ajudar a tornar o Brasil um país ultrapassado. Entre elas estão a ampliação do porte de armas; o homeschooling, que permite que crianças sejam educadas em casa pelos pais; a criação do estatuto da família, proibindo a união estável de casais homoafetivos; a proibição total do aborto, mesmo para gestação de fetos anencéfalos; e o endurecimento da lei de drogas. Além, claro, da redução do rigor em casos de atentados aos direitos humanos e a aprovação do infame excludente de ilicitude.

Nem os brasileiros que ainda insistem em apoiar Bolsonaro merecem um retrocesso desse tamanho. O país, que está parado desde janeiro de 2019, corre o risco de ver sua democracia destruída ao recuar pelo menos 30 anos em direção ao passado se o presidente não for impedido. Se não agora, pelas mãos dos congressistas confortavelmente aboletados no governo, que seja em outubro do ano que vem, pelo voto livre, soberano, secreto e eletrônico.

Nazista no Planalto

Estranho tanta gente se surpreender com o fato de Jair Bolsonaro receber uma nazista alemã em seu gabinete. Eles são iguais, em todos os sentidos. Surpreendente seria se o visitante fosse um parlamentar do Partido Verde alemão.

Uns acham exagero chamar o presidente do Brasil de genocida. Outros consideram abusivo compará-lo a Hitler. Para estes, algumas questões.

O que você responderia se lhe perguntassem até onde chegaria o capitão se ele tivesse poderes ilimitados, como Hitler, Stalin, Mao ou Pol Pot? Você acha que ele não cumpriria a promessa de “matar uns 30 mil” para fazer seus acertos de conta? O homem que elogiou publicamente um dos mais notórios torturadores do Brasil trucidaria seus adversários se não tivesse que prestar contas à Justiça? Haveria risco dele usar as “suas Forças Armadas” para invadir a Venezuela e derrubar Nicolás Maduro? Pois é.

Manso

O termo usado por Merval Pereira na sua coluna de quinta-feira é o melhor para definir os muitos generais que circulam Jair Bolsonaro. Eles estão “domesticados”, disse o colunista. Obedecem cegamente o capitão, não questionam seus métodos, compram e multiplicam seus equívocos, aceitam todas as suas barbaridades, mesmo as mais antidemocráticas. Se acham espertos por receber contracheques de até R$ 100 mil (91 salários mínimos), como o de Braga Netto deste mês. Talvez por isso sejam tão mansos.

Alternativa

É conhecida a má vontade do gaúcho com o princípio da reeleição. Nunca um governador do Rio Grande do Sul foi reeleito desde a instituição do princípio na Constituição brasileira. Tentaram e fracassaram Antônio Britto, Olívio Dutra, Germano Rigotto, Yeda Crusius, Tarso Genro e José Ivo Sartori. Faz todo sentido, portanto, Eduardo Leite querer ser candidato a presidente.

Cuba em crise

Desde o início do ano, a guarda costeira dos Estados Unidos recolheu 512 cubanos no mar da Flórida. Durante todo o ano passado, apenas 49 foram abordados.

Veto Total

Nem o bolsonarista mais casca dura poderia imaginar que um dia o seu mito vetaria um projeto de lei que dá acesso aos detentores de planos de saúde a um tratamento contra o câncer administrado oralmente, em casa, para dar mais conforto ao paciente. Bolsonaro atendeu pedido das empresas de planos de saúde, que teriam de bancar os custos ambulatoriais e domiciliares do tratamento. Alegou que o projeto “comprometeria a sustentabilidade do mercado”. Fala sério. Calcula-se que não mais de 50 mil pacientes seriam alcançados pelo projeto. Uma migalha do total de 47,5 milhões de brasileiros que têm e pagam planos de saúde. Só no ano passado, 550 mil pessoas contrataram novos planos.

Veto parcial

Já a dinheirama para os partidos políticos vai escorrer amplamente. O presidente anunciou à turma do curral do Alvorada que não conseguirá vetar mais do que dois dos seis bilhões de reais aprovados para o fundo partidário. Mentiu aos seus apoiadores dizendo que não podia vetar mais do que isso por ser ilegal. E o curral aplaudiu.

A cadeira

Não se conhece pessoa que goste mais de uma cadeira do que Paulo Guedes. Grudado na sua como uma ostra no rochedo, o ministro da Economia não vai pedir o boné, mesmo que seja obrigado a engolir mais uma dúzia de sapos. O próximo já está sendo preparado para ser enfiado em sua goela, a recriação do Ministério do Planejamento para abrigar mais um guloso do Centrão.

A CPI vem aí

Na semana que vem, na medida em que Rebeca, Rayssa e Ítalo forem saindo de cena, Aziz, Randolfe e Renan voltam a ganhar os holofotes. A CPI está de volta para a alegria de muita gente e para o pânico do capitão. Na TV, é só subir um canal, do 539 para o 540.

Um ano de solidão

Uma pesquisa sobre o uso do tempo revelou que, em média, o norte-americano passou 57 minutos a mais sozinho a cada dia do ano passado em razão da pandemia de coronavírus. No caso dos adolescentes entre 15 e 19 anos, a solidão subiu de 4,5 horas para 6 horas diárias.

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