Folha de S. Paulo
E ainda cometeu um crime contra a
epistemologia
Não foram só mentiras, ataques gratuitos e
crimes de responsabilidade que o presidente Jair Bolsonaro perpetrou no
aguardado pronunciamento em
que provaria a ocorrência de fraudes eleitorais. Ele também cometeu um crime
contra a epistemologia, quando afirmou que é impossível "comprovar que as
eleições não foram ou foram fraudadas". Como agravante, ele, numa inversão
do ônus da prova, ainda exigiu dos que dizem que o sistema eleitoral é hígido
que demonstrem sua infraudabilidade.
Se fosse isso mesmo, estaríamos condenados
a viver num mundo ainda mais incerto do que o atual. Em termos puramente lógicos,
é, sim, possível confirmar tanto a existência como a inexistência fraudes
eleitorais, embora as duas tarefas sejam muito desiguais.
A missão mais fácil é a da parte que precisa demonstrar a existência de burla. Afinal, bastaria apresentar evidência de uma única instância de manipulação para encerrar o caso. Mas, como a ausência de evidência não é evidência de ausência, provar que algo não existe ou não ocorreu, mesmo quando é possível, costuma ser bem mais trabalhoso.
No caso da eleição, eu poderia, por
exemplo, filmar secretamente o voto de todos os eleitores. Depois, eu
compararia as imagens com o resultado proclamado. Se não houver divergência,
está provado que não houve manipulação. Registre-se, porém, que essa
alternativa é muito pouco prática —além de ilegal, por violar o sigilo do voto.
É devido a essa assimetria fundamental que, em filosofia e às vezes também no direito, atribui-se o ônus da prova à parte que tem mais condições de produzi-la. No caso da propalada fraude eleitoral, ela recai sobre quem afirma que as eleições foram roubadas. E Jair Bolsonaro não apenas não apresentou evidências críveis de sua tese como, mais uma vez, recuou do que havia prometido fazer. Se o presidente provou alguma coisa, é que não tem palavra nem compromisso com os fatos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário