sábado, 31 de julho de 2021

Pablo Ortellado – Tragédia anunciada

O Globo

O incêndio de um edifício da Cinemateca Brasileira é tragédia anunciada, fruto do abandono deliberado do governo Bolsonaro. Movida por uma mistura de fanatismo ideológico e ignorância arrogante, a Secretaria Especial da Cultura suspendeu os recursos necessários para a manutenção da mais importante cinemateca da América Latina.

A Cinemateca Brasileira é uma instituição de preservação e difusão do audiovisual que foi fundada em 1956 pelo crítico Paulo Emílio Salles Gomes e incorporada pelo governo federal em 1984. Seu acervo inclui uma parte muito expressiva da produção audiovisual brasileira, em que se destacam os arquivos da extinta TV Tupi, produções dos estúdios Vera Cruz e Atlântida e o acervo do diretor Gláuber Rocha. Ela divide seu acervo em dois edifícios, um que abriga a maior parte dos filmes, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, e outro, onde ocorreu o incêndio, no bairro da Vila Leopoldina, que abriga documentos e equipamentos antigos guardados para a constituição de um museu.

Com o incêndio, pode ter sido perdida toda a documentação histórica dos últimos 50 anos das políticas de audiovisual do país, do Instituto Nacional de Cinema, de 1966, até a Secretaria do Audiovisual, passando pela Embrafilme (1969-1990). O edifício abrigava cerca de quatro toneladas de documentos.

Para ser completamente justo, o descaso com a Cinemateca não começou no governo Bolsonaro. Por motivos que misturam desprestígio com discordância do modelo de administração, a Cinemateca foi perdendo recursos nos governos Dilma e Temer, mas nada que possa ser comparado com a não renovação do contrato com a associação que a administrava em 2020 e a suspensão do repasse dos recursos, levando à demissão de quase todos os funcionários. Segundo o MPF, que moveu processo contra a União, o governo abandonou a Cinemateca de forma arbitrária, dolosa, voluntariosa e desprovida de motivo juridicamente admissível.

Os meandros da não renovação do contrato misturam fanatismo ideológico e desrespeito às regras institucionais. Em 2019, seguidores de Olavo de Carvalho acusaram a Associação Roquete Pinto de “esquerdismo”, e Abraham Weintraub, então ministro da Educação e responsável pela Secretaria da Cultura, anunciou que o contrato com a associação não seria renovado. A tensão entre a associação e o governo federal ficou ainda mais acentuada quando Bolsonaro ofereceu a direção da Cinemateca à ex-secretária de Cultura Regina Duarte, apenas para descobrir que o cargo de superintendente somente poderia ser preenchido pela Associação Roquette Pinto.

É absolutamente revoltante o descaso do governo Bolsonaro com o setor cultural em geral, e com a Cinemateca em particular. O incêndio no edifício da Vila Leopoldina pode ser apenas o prenúncio de uma catástrofe maior. Nas instalações na Vila Mariana estão guardadas centenas de milhares de rolos de filme inflamáveis, que, por falta de recursos, estão sem manutenção e supervisão adequadas. Se nada for feito, é apenas questão de tempo para termos uma tragédia lá também.

 

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