Penas contra réus do 8 de Janeiro despertam dúvida
O Globo
Nos recursos, STF deverá esclarecer se pode
haver condenação simultânea por golpe e abolição do Estado de Direito
É um acinte à democracia a proposta de anistiar os 898 réus acusados pela violência contra as sedes dos três Poderes no fatídico 8 de janeiro de 2023. Passados dois anos, 371 foram condenados à prisão e 527 a penas alternativas. Outros tantos esperam o fim do julgamento. A todos foi garantido amplo direito de defesa, como prevê a Constituição. Quem defende a anistia sustenta um raciocínio absurdo, segundo o qual tudo não passou de vandalismo espontâneo. É como se, sem objetivo nem organização, os criminosos tivessem trocado um passeio no zoológico na Asa Sul pela invasão do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Palácio do Planalto. Como se não estivessem acampados em quartéis do Exército clamando por golpe de Estado, com base em teorias estapafúrdias sobre fraude eleitoral. A intenção golpista ficou evidente desde o primeiro vidro estilhaçado.
Mas, se não há dúvida quanto à justiça das
condenações proferidas pelo Supremo, o mesmo não pode ser dito das penas
aplicadas. Das 225 sentenças por crimes graves, 43,4% são superiores a 14 anos
de prisão. É verdade que, com bom comportamento, boa parte dos condenados será
libertada ao cumprir um sexto da pena, menos de três anos. Mas, entre tantas
comparações plausíveis, fica evidente o contraste com a punição aos dois
golpistas que tentaram explodir um caminhão de combustível perto do aeroporto
de Brasília em
2022 — um foi condenado a cinco anos; o outro a 9 anos e oito meses.
Entre juristas, circula uma interpretação
segundo a qual a necessidade de dar exemplo resultou em penas demasiado duras.
Desde a primeira condenação, em setembro de 2023, houve divergência no próprio
STF. O voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, condenou o réu a 17 anos
de prisão. Foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Luiz Fux, Dias
Toffoli, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Rosa Weber. Porém o ministro Luís
Roberto Barroso, hoje presidente do Supremo, defendeu penas menores. De
acordo com ele, não se pode condenar um réu, ao mesmo tempo, pelos crimes de
abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de
Estado, pois um crime absorve o outro. Uma única conduta, no entender de
Barroso, não deveria ser punida duas vezes.
A questão suscita debate no Direito Penal. Um
traficante de drogas que usa arma ilegal deve ser punido pelos dois crimes? O
Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu em dezembro que não. Mas há dezenas
de condenações por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, embora um crime
decorra do outro. Ou por homicídio e ocultação de cadáver. Como disse ao GLOBO
o criminalista Pierpaolo Bottini, “não há fórmula matemática” para definir
quando um crime é absorvido pelo outro.
A tese de Barroso foi, até o momento,
derrotada em todas as votações no plenário. Mas isso não invalida o
questionamento, pois seus argumentos podem fazer sentido. É certo que os
advogados dos condenados entrarão com recursos para esclarecer dúvidas ou contradições,
conhecidos como “embargos de declaração”. Foi assim no julgamento do Mensalão,
quando alguns embargos resultaram em redução de pena. Nos casos do 8 de
Janeiro, esses embargos trarão ao STF a oportunidade de se debruçar mais uma
vez sobre a questão, para que não restem dúvidas a respeito das penas e para
que se encerre com justiça esse capítulo trágico da História brasileira.
Penduricalho do MP paulista cria mais uma
conta para o contribuinte pagar
O Globo
Promotores e procuradores receberão mais um
auxílio fora do teto salarial, sob a justificativa de trabalhar demais
Numa demonstração da criatividade da alta
burocracia para conceder benefícios a si mesma, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP)
autorizou o pagamento retroativo de um auxílio a procuradores e promotores que
pode, em casos individuais, chegar a R$ 1 milhão. O penduricalho do MP-SP
beneficia 1.900 dos 2.900 ativos e inativos da categoria. Serão pagos dez dias
de salário adicional para cada mês trabalhado, nos 103 meses entre janeiro de
2015 e agosto de 2023 — ou um terço do salário total recebido nesse período.
A história de mais esse penduricalho salarial
ensina como proliferam as despesas adicionais que levam o Brasil a ter o
Judiciário mais caro do mundo, onde mais de 90% dos juízes e procuradores
ganham acima do teto constitucional, de acordo com análise do economista Bruno
Carazza. A corrida atrás das vantagens começa com a interpretação de termos
obscuros em alguma lei, norma ou resolução. Nesse caso específico, decidiu-se
criar uma “compensação” a procuradores por receberem mais processos para
analisar que o normal ou, no jargão jurídico, “por assunção do acervo”.
Aumento de carga de trabalho não acarreta
nenhum aumento instantâneo de salário nas empresas privadas. Na burocracia
estatal tudo é diferente. Transcorrido um período, entra-se na Justiça, ou na
esfera administrativa, reivindicando a benesse, os juízes — muitas vezes, eles
mesmos beneficiários — decidem a favor, o penduricalho se materializa e, em
seguida, são pagos os atrasados. A falta de definições claras do trabalho
executado permite que tudo seja decidido pela própria corporação. O MP
determina que a carga normal de trabalho, para efeito de cálculo do benefício,
seja estabelecida por “critérios qualitativos e quantitativos, considerando,
sempre que possível, os relatórios oficiais da instituição”. Na prática, há aí
enorme subjetividade.
O primeiro passo para que os procuradores e
promotores paulistas recebessem a bolada foi dado pelo Conselho Nacional de
Justiça (CNJ). Em setembro de 2020, o CNJ determinou o pagamento do adicional
por “assunção de acervo” a juízes. Para não ficar atrás, o Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP), quase dois anos depois, orientou as chefias do MP em
todo o país a também pagá-lo. Agora, chegou a vez dos procuradores paulistas. A
obtenção da vantagem por uma categoria mobiliza as demais. É praxe no serviço
público a luta pela equiparação.
Por ser considerada “indenização”, e não salário, a benesse não entra no cálculo da remuneração total, submetida ao teto do funcionalismo (o salário de ministro do Supremo, hoje em R$ 46,6 mil). Os penduricalhos se tornaram a maior parcela da remuneração em diversas categorias. Como quase sempre há atrasados a pagar, retiradas mensais acima de R$ 100 mil se tornaram frequentes. O Executivo, que enfrenta grave crise fiscal, deveria atuar na defesa de quem paga a conta, o contribuinte. O Legislativo deveria impor limites que acabem com os supersalários. Mas, até o momento, ninguém se mostra interessado em intervir.
Decisão sobre Margem Equatorial tem de ser técnica
Valor Econômico
Se desenlace sobre a exploração da Foz do
Amazonas não for bem conduzido, pode arruinar a imagem que Lula quer construir
de condutor da agenda ambiental planetária
A COP30 desembarcará no Brasil envolta em
problemas. A herança das conferências anteriores não é boa, e a mais recente,
no Azerbaijão, não trouxe qualquer alento. Centrada no financiamento ao combate
às mudanças climáticas, foi de impasse em impasse até a undécima hora, quando
se decidiu elevar os recursos para países pobres e emergentes a US$ 300
bilhões, longe do US$ 1,3 trilhão que a maioria das 197 nações participantes
desejava. As circunstâncias se tornaram piores para a reunião de Belém: Donald
Trump assumiu o governo dos EUA, retirou seu país do Acordo de Paris e está
dizimando a legislação de proteção ambiental doméstica.
Adversidades externas, como a ascensão de
Trump, e domésticas, como a indefinição sobre o que fazer com a exploração de
petróleo na Margem Equatorial, envolvem a cúpula de Belém. O aquecimento global
é o denominador comum da urgência por soluções. O mundo caminha para o segundo
ano de extremos de temperatura, em que o limiar de 1,5 C, estabelecido pelo
Acordo de Paris, está sendo ultrapassado.
As últimas estatísticas colocam mais pressão
sobre os países para que acelerem suas ações e impeçam que o pior aconteça. Há
mais frustrações nesse ponto. A COP 30 reunirá as novas metas decorrentes da
revisão quinquenal acordada. Até esta semana, apenas 12 países o fizeram.
Com exceção dos EUA e do Brasil, todos com
demais têm peso pequeno nas emissões. O governo americano apresentou em 2024,
sob o governo de Joe Biden, suas novas metas, de corte de 61% a 66% das
emissões até 2035, em relação às medições de 2005. O país é o segundo maior
poluidor mundial, mas as promessas feitas antes nada valem agora, diante da
agenda de Trump.
A COP 28 fixou o objetivo de que os países
deveriam contemplar ações para se afastar da dependência dos combustíveis
fósseis. Embora seja incrível que fossem necessários 28 anos de reuniões para
se chegar a essa decisão, ainda assim não é certo que ela prevaleça. Na COP29,
as menções ao petróleo desapareceram. O aumento das emissões, na contramão da
redução que já deveria estar ocorrendo, e a defesa de que a exploração de
combustíveis fósseis é que garantirá a transição energética mostraram que os
rumos das COPs seguem indefinidos.
A mesma controvérsia existe, com nuances, no
Brasil, anfitrião da próxima COP. O governo Lula deixou de lado, por
conveniência ou desleixo, o debate vital de explorar ou não o petróleo em uma
região muito rica em biodiversidade e altamente sensível à exploração: a foz do
Amazonas. O Ibama concedeu as primeiras licenças para blocos exploratórios na
ponta leste da Margem Equatorial, no Rio Grande do Norte, em 2023, mas até hoje
negou-as para o Amapá e adjacências. A descoberta de um mar de petróleo na vizinha
Guiana atraiu a atenção da Petrobras e outras petroleiras.
O presidente Lula, diante da recusa técnica
de concessão de licença para perfurações de pesquisa, elevou na quarta-feira o
tom contra o Ibama, acusando-o de “lenga-lenga” e de parecer ser um órgão
“contra o governo”. O parecer técnico do Ibama foi contrário às pretensões da
Petrobras, e novas exigências foram feitas para a estatal, que diz tê-las
cumprido. Novo veredito deve sair em março.
Lula já disse que tem vontade de explorar o
petróleo na região, mas afirma corretamente que é preciso fazer os estudos
antes. Também defendem a exploração políticos como o novo presidente do Senado,
Davi Alcolumbre (UB-AP), e o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), líder do
governo na Casa, que acreditam que os royalties promoverão o desenvolvimento
dos Estados do Norte, embora não o tenham feito, cabalmente, nas demais regiões
ricas em petróleo do país.
Apesar da controvérsia, a decisão final
deveria se dar em bases técnicas, com bastante debate com a sociedade e sem
pressão sobre o órgão técnico. É o que a ministra Marina Silva, do Meio
Ambiente, defende, ainda que a Petrobras, o ministro Alexandre Silveira e agora
Lula acreditem que a decisão deva ser essencialmente política.
A definição, porém, vem tarde demais e pode
se tornar um enorme problema, com repercussões globais. O Brasil deveria ter
resolvido a questão bem antes, pois agora o assunto se arrasta perto da COP, e
seu desenlace, se não for bem conduzido, pode arruinar a imagem que Lula quer
construir de condutor da agenda ambiental planetária. Nessa agenda, o governo é
caudatário de Marina Silva e não o contrário, e uma repetição do desfecho
ocorrido no passado seria um desastre (Marina era ministra nos dois primeiros
governos de Lula e se opôs à construção das hidrelétricas no Amazonas; ela
deixou o cargo antes do fim do segundo mandato).
Queda nas pesquisas, reeleição em risco, bilhões de reais potenciais a serem distribuídos a zonas sob influência de políticos poderosos formam uma confluência de interesses que vão contra um desfecho virtuoso e que deveria ser essencialmente técnico, visando ao desenvolvimento do país. Lula deveria decidir (mesmo sobre a fase de pesquisa) com base no que o Ibama apresentar e com o resultado de amplo debate público. Ao governo cabe indicar o rumo e arcar com as consequências.
Com alta do uso de carro e moto, SP está na
contramão
Folha de S. Paulo
Enquanto o transporte de massa prevalece em
metrópoles, na maior cidade do país o modelo individual supera o coletivo
Em um centro urbano que conecta 39 municípios
e reúne mais de 20 milhões de habitantes, soa como um disparate o fato de que
os meios de transportes individuais se sobreponham aos coletivos.
Pois foi essa a constatação da mais recente
pesquisa Origem e Destino do Metrô, o maior
estudo de mobilidade urbana do país. Realizado na região metropolitana de São Paulo uma
vez por década, sempre em anos com final 7, o levantamento desta vez foi
antecipado em razão das mudanças de hábito provocadas pela pandemia de
Covid-19.
A pesquisa revelou que, em 2023, 51,2%
das viagens diárias foram feitas individualmente, o que inclui automóveis,
motocicletas, táxis e veículos de aplicativos. Em 2017, a situação era inversa:
54,1% ocorreram em transporte coletivo, como ônibus, metrô e
trem.
É fato que já havia uma tendência de redução
no transporte
público, mas em ritmo muito mais lento que o observado agora.
Os mais de três anos pandêmicos alteraram
substancialmente o ir e vir na Grande São Paulo. De modo geral, seus
moradores estão se deslocando menos. Novas dinâmicas de trabalho e
tecnológicas disseminaram o home office, o ensino a distância e as compras
online, sem contar o envelhecimento da
população.
Os números são eloquentes: entre 2017 e 2023, foram 6,3 milhões de viagens a menos (-15%).
À revelia da recente e tímida expansão da rede metroferroviária e da escalada
bilionária de gastos da Prefeitura de São Paulo para subsidiar o sistema de
ônibus, são justamente os coletivos que registraram a maior queda entre os
modais, com a redução de 3 milhões de embarques (-20%).
Superlotação, impontualidade renitente,
frotas municipais envelhecidas e insegurança nos pontos de ônibus, sobretudo
para mulheres, catapultaram a preferência por serviços de aplicativos e táxis.
Nesses anos, o aumento chegou a 137% —índice que tende a crescer com a
proliferação dos mototáxis, ainda
que por ora proibidos na capital paulista.
A opção pelos aplicativos ganhou tração em
todas as faixas de renda. Se o modelo vai na contramão da lógica do transporte
de massa, é compreensível que tenha seduzido ainda mais passageiros que recebem
até quatro salários mínimos: uma viagem de 10 a 15 minutos pode custar o mesmo
que dois bilhetes de ônibus.
O deslocamento por apps já é um meio
consagrado nas grandes cidades e alternativa legítima para a população, mas o
avanço do transporte individual —inclusos também automóveis e motocicletas
particulares— impacta o tráfego e a qualidade do ar.
Ainda que fatores econômicos possam
influenciar na soma, é um alento que saudáveis viagens de bicicletas e mesmo a
pé tenham crescido. Modais individuais, contudo, devem servir como linhas
auxiliares no caminho para a prevalência de um transporte coletivo sustentável
e capilarizado e um aproveitamento inteligente do espaço urbano.
Alfabetização paulista avança, mas há muito a
fazer
Folha de S. Paulo
Aprendizado em português no 2º ano alcança
nível alto; maus resultados em outras séries exigem tutoria e modelo integral
A pandemia abalou indicadores educacionais.
Estado mais populoso e mais rico do Brasil, São Paulo conseguiu
se recuperar no 2º ano do ensino fundamental, mas o governador Tarcísio
de Freitas (Republicanos)
ainda terá de buscar melhoras em outras séries.
O Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar
do Estado de São Paulo (Saresp) utiliza uma escala de aprendizagem com os
conceitos abaixo de básico, básico, adequado e avançado. Segundo o resultado
mais recente, de 2023 para 2024, as notas em matemática do
estudantes do 2º ano passaram
de 167,2 pontos (básico) para 196,7 (adequado).
Em 2021, no auge da crise sanitária e quando
essa série começou a ser avaliada, foram obtidos 163,8 pontos (básico).
Em língua portuguesa também houve evolução,
com 195,8 pontos (avançado), ante 174,7 em 2023 e 160,8 em 2021 (adequados). As
crianças nessa série em geral têm 7 anos, idade na qual devem saber ler e
escrever.
O Ministério da Educação estipulou,
no ano passado, que 57% dos alunos paulistas deveriam estar alfabetizados na
faixa etária correta. Em 2023, 53,8% estavam, mas em 2024 a meta do MEC foi
superada, com a taxa de 65,8%.
No 9º ano, porém, os patamares pré-pandemia
em português (249,6 pontos em 2019) e matemática (259,9) nem sequer foram
atingidos. Na primeira disciplina, a nota foi 240,3 em 2024, ante 234,4 em
2023; na segunda, o avanço foi ainda menor, de 246,3 para 248,2. Desde 2019, o
nível está estacionado no básico.
Também há estagnação entre 2023 e 2024 no 3º
ano do ensino médio —como nessa etapa a avaliação pelo Saresp foi susbtituída
pelo Provão Paulista, que usa métricas diferentes, não é possível fazer
comparações com os anos anteriores. Em português, a nota passou de 3 a 3,1, e
em matemática, de 2,5 para 2,7. A escala de pontuação vai de 0 a 10.
As medidas que contribuíram para o avanço no
2º ano do ensino fundamental devem ser diagnosticadas e replicadas.
Ao longo dessa etapa, contudo, ainda é
necessário expandir o programa de tutoria, usado para superar defasagens.
Neste ano, apenas 600 das mais de 5.000 escolas oferecem o serviço.
Tanto no ensino fundamental como no médio, o
acesso ao desejável modelo de tempo integral precisa ser ampliado. Em 2023, 45%
das escolas da rede pública paulista haviam implantado o modelo, mas
só 17% dos alunos estavam matriculados nelas —na bem mais pobre
Paraíba, por exemplo, as taxas eram de 65,7% e 55,9%, respectivamente.
Lenga-lenga que derrota o Brasil
O Estado de S. Paulo
Ao cobrar o Ibama pela demora na concessão da
licença para pesquisa na Margem Equatorial, Lula mostra que, nesse tema, todos
erram: o presidente, os ambientalistas do governo e o PT
Pela segunda vez em menos de uma semana, o
presidente Lula da Silva reafirmou sua defesa pública em favor da perfuração de
um poço exploratório na Bacia da Foz do Amazonas, na Margem Equatorial, pela
Petrobras – mas agora deflagrou uma crise aberta contra o Ibama, o órgão do
governo responsável pela concessão do licenciamento ambiental das pesquisas de
exploração.
Se Lula já havia revelado a pressão do
presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), informando que o processo
será destravado em breve, desta vez ele fez um duro ataque ao Ibama e a seus
servidores. “Precisamos autorizar a Petrobras a fazer pesquisa. É isso que
queremos. Se depois vamos explorar, é outra discussão. O que não dá é ficar
nesse lenga-lenga. O Ibama é um órgão do governo, parecendo que é um órgão
contra o governo”, afirmou, em entrevista a uma rádio do Amapá.
Ontem, Lula voltou a defender a pesquisa na
Margem Equatorial e garantiu que isso não significa fazer “loucura ambiental”.
Mas a cotovelada pública do presidente do dia anterior – correta no conteúdo,
imprudente e grosseira na forma – espalhou brasas onde já havia fogo. E não só
escancarou o grau de impaciência dentro e fora do governo com a novela
arrastada em que se transformou o tema, como também demonstrou que, nessa
matéria, sobram desacertos por todos os lados.
Todos vêm errando – Lula, o Ibama (incluindo
o presidente do órgão, Rodrigo Agostinho, e seus técnicos), a ministra do Meio
Ambiente, Marina Silva, e o PT. São eles os protagonistas de um enredo que há
muito deixou de ser um embate técnico-ambiental para se tornar uma questão
essencialmente política.
Comecemos pelo demiurgo petista. Que o
falante Lula tem pouco apreço pelos rituais da gestão pública já se sabe, mas
não passou despercebido seu desaforo contra um órgão do governo e servidores de
Estado que, no limite, são independentes para emitir livremente seu parecer. O
tom desrespeitoso da declaração acabou por abrir uma crise desnecessária numa
querela que já poderia ter sido resolvida, além de desabonar o próprio esforço
em favor da liberação da licença.
Se é verdade que a decisão de explorar
petróleo no mar do Amapá é política, mas que o licenciamento para fazê-lo deve
ser essencialmente técnico, também é verdade que a Petrobras já cumpriu todas
as exigências apontadas pelo Ibama. Logo, a impaciência de Lula, e não apenas
dele, é compreensível.
O que não é compreensível é o fato de a
Petrobras esperar 12 espantosos anos para saber se tem o direito de constatar a
existência de petróleo na região. Trata-se de tempo longo demais para ser
definido como lentidão, e ilógico, a ponto de ser visto como má vontade do
Ibama. Enquanto isso, países vizinhos, como a Guiana, fizeram descobertas
gigantes, oferecendo uma pista do tamanho dos recursos que podem ajudar a
financiar a transição energética de que o Brasil precisa.
Na semana passada, a ministra Marina Silva
sublinhou a responsabilidade do Ibama e sua natureza técnica e disse que nem o
órgão nem a sua pasta “dificultam ou facilitam processos de licenciamento”. De
fato, não cabe aos técnicos dizer se o governo ou a Petrobras devem ou não
explorar petróleo, e sim se o projeto está adequado às exigências ambientais.
Afinal, a abertura de uma nova fronteira de
exploração é, antes de tudo, uma decisão soberana do Estado brasileiro. Ocorre
que as respostas do Ibama até aqui combinaram marotamente exigências técnicas
com arrazoados ideológicos em favor da “energia limpa” e contra o petróleo, num
evidente desvio de atribuição, além de um ciclo interminável de novas
exigências.
Em paralelo, o posto de Rodrigo Agostinho é
objeto de desejo da caciquia petista, que vê o Ibama como possível destino para
abrigar o atual ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Márcio Macêdo –
mudança providencial para abrir espaço para a presidente do PT, Gleisi
Hoffmann, ocupar a pasta. Isso explicaria em parte a artilharia palaciana
contra o Ibama.
Eis aí a tempestade perfeita: um órgão que,
com boa dose de contaminação ideológica, protela em demasia uma decisão; uma
ministra e um presidente que deixaram a novela se estender para além do
razoável; e um partido de olho num cargo que passa a ser o bode expiatório de
Lula para justificar a própria inércia. E enquanto todos erram, o Brasil perde
tempo e oportunidade.
Trump fará a Rússia grande de novo
O Estado de S. Paulo
Não pela força das armas contra a Ucrânia,
mas pela generosa mão do presidente dos EUA, Putin conseguiu sua maior vitória
e está mais próximo do que nunca de suas metas imperialistas
Na quarta-feira, a Ucrânia, seus aliados
europeus e o mundo souberam, por meio de uma postagem nas redes sociais, que
Donald Trump teve uma “conversa longa e altamente produtiva” com o presidente
russo Vladimir Putin sobre energia, Oriente Médio, inteligência artificial, a
“Grande História de nossas Nações”, suas virtudes e seu combate contra o
nazismo. Ambos prometeram visitar um ao outro. Mas, primeiro, iniciarão
negociações para pôr fim à guerra “imediatamente”.
Em três anos de guerra, o agressor, Putin,
sofreu sanções e recriminações como um pária. Quanto ao campo da batalha, os
aliados da Ucrânia repetiam em coro o mantra “até onde for necessário”. Isso
significava não necessariamente uma “vitória total”, mas que Kiev receberia
recursos para se defender, avançar onde possível e entrar com mão forte numa
eventual negociação, o que levava ao outro mantra, no campo diplomático, “nada
sobre a Ucrânia sem a Ucrânia”. Num telefonema, tudo isso foi pelos ares.
Trump escanteou Kiev e os europeus como
coadjuvantes, e agora EUA e Rússia conduzirão negociações bilaterais. Mas,
antes mesmo delas, suas relações já começaram a se normalizar e Washington
anunciou concessões. Na Europa, o secretário de Defesa norte-americano, Pete
Hegseth, disse que a restauração da integridade territorial da Ucrânia é
“irrealista”, que ela não integrará a Otan e que qualquer acordo de paz não
será assegurado por forças americanas ou da Otan, mas por tropas europeias.
Trump não só não disse nada sobre indenizações da Rússia pela agressão, como
sugeriu que a Ucrânia deve compensar com minerais os gastos dos EUA.
Putin também tem seus mantras. O principal é
que o fim da União Soviética foi “a maior catástrofe geopolítica do século 20”.
Seu objetivo de vida é reconstruir o Império Russo. A Ucrânia é só uma batalha
nesta guerra. O plano inicial de captura falhou miseravelmente, mas três anos
depois Putin está mais próximo do que nunca de seus objetivos imediatos: alijar
a Ucrânia da Otan, emasculá-la militarmente, reduzir a presença militar do
Ocidente na Europa oriental e projetar uma esfera de influência na Europa ocidental
– como a da URSS após a conferência de Yalta no fim da Segunda Guerra. A médio
prazo, o expansionismo avançará instalando mais regimes fantoches ou capturando
territórios. Serviços de inteligência de todo o Ocidente alertam que a Rússia
está reestruturando suas capacidades militares e terá condições de mover uma
guerra em larga escala contra a Otan em cinco anos.
Os falcões russos estão eufóricos com o
telefonema. “Deve ser muito difícil para a Europa e a Ucrânia ouvirem isso. Mas
sua opinião já não importa”, disse Konstantin Malofeyev, um magnata que
coordena batalhões na Ucrânia. “A Ucrânia é só o pretexto para um grande
diálogo entre dois grandes países sobre o começo de uma nova era na história
humana.”
Esta “nova era” ameaça todos os países cuja
segurança e prosperidade dependem há 70 anos de uma ordem global baseada em
regras. Se os EUA lideraram a construção dessa ordem cuja desconstrução
promovem agora, não foi por mero altruísmo, mas por entenderem que facilitar a
cooperação e o crescimento compartilhado seria um jogo de soma positiva. Quando
as lideranças dessa ordem decidiram defender a Ucrânia, foi por entenderem que
a Ucrânia estava defendendo essa ordem. Mas, agora, Putin (e com ele aliados como
China, Irã ou Coreia do Norte) está levando a melhor.
A hipótese benigna para a pressa de Trump em
um armistício a qualquer custo é que ele genuinamente quer um fim à matança
dessas “pessoas jovens e lindas”. Mais realista é que ele queira se livrar de
um estorvo na Europa e se concentrar na disputa com a China. Mas,
plausivelmente, a razão mais profunda é mesmo seu ego: Trump quer associar o
fim da guerra à sua imagem pessoal. Seja como for, nos moldes em que está sendo
plasmada, esta “paz para o nosso tempo” (ecoando as palavras do premiê
britânico Neville Chamberlain para justificar a tentativa de apaziguar Hitler
em 1938, com resultados conhecidos) virá ao custo de novas guerras, dos
interesses dos EUA, e da segurança e prosperidade do mundo democrático.
Desastre à vista
O Estado de S. Paulo
Faltam equipe, equipamentos e dinheiro no
órgão federal que alerta sobre eventos extremos
O órgão federal responsável por monitorar e
alertar a população e autoridades dos desastres em formação no horizonte está
enfrentando condições incompatíveis com o tamanho de sua missão. Segundo o
Ministério Público Federal, o Centro Nacional de Monitoramento de Desastres
(Cemaden) exibe déficit de servidores, insuficiência de equipamentos e
dificuldades orçamentárias – uma tragédia em si, considerando a recorrência
cada vez maior de eventos climáticos extremos, como as enchentes que devastaram
o Rio Grande do Sul, a seca recorde que atingiu a Amazônia ou as tempestades
que castigaram recentemente a cidade de São Paulo.
Em 2024, o órgão bateu o recorde de alertas
emitidos, com 3.622 avisos, entre riscos geológicos, como deslizamentos de
terra, e riscos hidrológicos, como inundações, alagamentos e enxurradas. Mas o
Cemaden tem menos de uma centena de servidores e seu orçamento é o mesmo desde
2019, isto é, R$ 20 milhões anuais. Maus presságios diante do contexto de
escalada do aquecimento global, herança do volume de gases de efeito estufa já
lançados e o consequente agravamento de fenômenos climáticos extremos – o que impõe
o fortalecimento do órgão, não sua estagnação.
E antes que as cassandras gritem, convém
dizer: criado em 2011 como resposta ao desastre na Região Serrana do Rio de
Janeiro, que deixou 917 mortos, o Cemaden é hoje uma referência na tarefa de
alertar com antecedência sobre eventos extremos e reduzir o número de vítimas e
prejuízos. É um feito num país que conta com cientistas respeitados
internacionalmente, mas que ainda deve preparo na prevenção e nas respostas a
catástrofes naturais extremas – algo grave não só pela frequência e intensidade
decorrentes do “novo normal” climático, como também pela grande atenção que se
precisa destinar a populações em áreas de risco, baixo investimento de drenagem
em áreas serranas e urbanas e ainda uma longa tarefa a cumprir na regularização
de encostas e áreas mais propensas a alagamentos. Ainda falta ao País também
uma maior integração entre os sistemas de alerta e defesas civis dos municípios
e melhor revisão de protocolos.
Apesar disso, se há boas iniciativas a
sublinhar são o trabalho do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e
os alertas de qualidade já oferecidos pelo Cemaden. Para cumprir sua missão, o
centro usa tecnologias para monitoramento do solo e das chuvas, entre outras
ferramentas. Mas sua estrutura se mostra hoje claramente defasada.
Em contrapartida, segundo dados revelados
pelo jornal O Globo e confirmados pelo Estadão, em 2012 o
Cemaden operava com 72 funcionários e monitorava apenas 286 municípios. Doze
anos depois passou a ter 96 funcionários para 1.133 municípios, onde se
concentra 60% da população do País. O Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC) prevê repasses da ordem de R$ 82 milhões. Por ora, contudo, não passa de
uma previsão.
No terreno movediço dos desastres naturais, não há milagres: nenhuma competência de profissionais dedicados é capaz de suprir o que só investimentos, tecnologia e mais recursos humanos podem resolver.
A era do autodiagnóstico
Correio Braziliense
Não há mais espaço para explicações mais
detalhadas. A ordem é leitura "dinâmica", vídeos com respostas
imediatas, listas de sintomas nas quais as pessoas simplesmente se encaixam a
partir de um questionário simplista
Na mesma linha de pensamento da
automedicação, um fenômeno tem se tornado cada vez mais frequente entre os
brasileiros, chamando a atenção de médicos e de outros profissionais de saúde:
o autodiagnóstico. E pior ainda: não são sintomas considerados simples como uma
dor de cabeça ou um incômodo nas costas. Muitos desses registros estão
relacionados a doenças mentais — a exemplo de ansiedade, transtorno de deficit
de atenção e hiperatividade (TDAH) e depressão, entre outros.
É difícil falar em autodiagnóstico sem citar
as redes sociais. Por isso, a preocupação dos especialistas é justificável,
haja vista a divulgação de uma enorme quantidade de testes psicológicos sem a
devida verificação, além de conteúdos altamente questionáveis nas principais
plataformas.
Uma pesquisa, divulgada em 2024 pela
Medscape, com quase 1.300 médicos brasileiros, mostra a preocupação dos
especialistas quanto ao autodiagnóstico por inteligência artificial. No
levantamento, realizado entre 12 de janeiro e 3 de março de 2024, 83% dos
entrevistados apontaram que os pacientes correm riscos com diagnósticos feitos
por inteligência artificial. Outro estudo, do Instituto de Pesquisa e
Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (ICTQ), reforça a questão, mostrando
que 40% dos brasileiros fazem autodiagnóstico pela internet.
Outro aspecto que chama a atenção é que a
prática atinge quase todas as faixas etárias, a maioria na mesma proporção. Com
exceção dos idosos (60 ), que somaram 19,72% dos respondentes, a porcentagem
foi a seguinte: 16 a 24 anos (52,77%), 25 a 34 anos (54,97%), 35 a 44 anos
(43,41%), 45 a 59 (33,23%).
Não há dúvidas sobre os benefícios da
evolução tecnológica, inclusive na medicina, seja facilitando a análise de
exames, seja na redução de erros de diagnóstico. Mas no caso dos pacientes, é
muito fácil chegar a um parecer equivocado, uma vez que estamos falando de
pessoas sem conhecimento especializado.
Ainda que as redes sociais sejam uma alavanca
para aumentar a conscientização quanto a essas doenças, elas exercem um papel
de indutoras a erros. Um paciente que acredita que tenha depressão pode ser
levado a fazer um determinado tipo de tratamento equivocado e até mesmo a usar
indevidamente medicamentos que podem, inclusive, contribuir para outros
transtornos.
Enfim, nunca, na história da humanidade,
tivemos tanta liberdade quanto à disseminação de informações. O problema é como
consumimos essas informações. Não há mais espaço para textos longos,
explicações mais detalhadas. O que vale é a leitura "dinâmica",
vídeos com respostas imediatas, listas de sintomas nas quais as pessoas
simplesmente se encaixam a partir de um questionário simplista.
No mínimo, falta bom senso de quem busca esses diagnósticos e, consequentemente, de quem se automedica após um autodiagnóstico inadequado. E, claro, falta fiscalização dos órgãos competentes.
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