O Globo
É preciso separar a militância política da
independência e do discernimento exigidos pela escrita
Nestes tempos difíceis, é preciso separar a militância política da independência e do discernimento exigidos pela escrita. É necessário separar essas duas dimensões da vida — a reflexão crítica e a política —, fazendo do trabalho do escritor algo à parte. Essa é a lição que George Orwell nos ensina em “Os escritores e o Leviatã”, um ensaio que precisa ser recuperado à luz dos desafios do tempo presente. Hoje, o exercício do pensamento exige enfrentar três desafios essenciais: uma Justiça fratricida, temas tabus e identidades hipertrofiadas.
Justiça fratricida: Precisamos
abandonar a crença anacrônica, consolidada antes das reviravoltas dos anos
2010, de que o ativismo progressista produz necessariamente progresso social.
Entre os anos 1980 e 2000, a ausência de uma direita mobilizada nos levou a
conceber a dinâmica do mundo social e político como um conflito entre apatia e
militância política. Segundo esse entendimento, a tarefa política consistia em
retirar a cidadania do conformismo dos interesses particulares. Quando a
sociedade se movia, a justiça social avançava. A militância (progressista) era
vista como um desprendimento altruísta que só trazia benefícios sociais.
A emergência de uma direita mobilizada pôs
isso em xeque. Ficou claro que os parâmetros de progresso social eram
contestados por parte da população, e essa divergência abriu espaço para
discutir os efeitos colaterais da política progressista que nem sempre produzia
a justiça social esperada. O que era antes concebido como oposição às
iniquidades do Estado e do mercado se metamorfoseou num conflito contra os
“fascistas”, num antagonismo interno à sociedade civil, numa conflagração
fratricida.
Temas tabus: Precisamos
enfrentar, com paciência, os temas tabus. À medida que a esquerda tomou as
instituições — as universidades, as escolas, as instituições culturais e o
jornalismo —, incutiu nelas valores normativos progressistas. Essas
instituições começaram a operar segundo certos parâmetros de direitos humanos,
fora dos quais o debate era considerado ilegítimo. Quando a direita mobilizada
emergiu, tudo o que contestava estava fora do que se consideravam valores
civilizados: discutir cotas era racismo; discutir mulheres trans nos esportes,
transfobia. A transformação desses debates em tabus empurrou a direita para os
braços de lideranças conservadoras radicais e anti-institucionais, gestadas nas
mídias sociais. O domínio progressista das instituições passou, por isso, a ser
visto como opressão elitista e os temas tabus como cerceamento da liberdade de
expressão e limitação da soberania popular.
Identidades hipertrofiadas: Precisamos nos
afastar de identidades políticas hipertrofiadas. As identidades políticas
parecem ser resumos de posicionamentos políticos, mas são mais que isso. Ser de
esquerda parece apenas querer dizer que alguém é a favor da igualdade social e
contra formas de opressão. Mas é sobretudo identidade, pertencimento à
comunidade progressista. Esse pertencimento impõe fidelidade a certos
pressupostos, aceitação dos limites impostos pelos temas tabus e adesão aos
antagonismos de grupo. Divergir de qualquer um deles instaura tensão com o
grupo e dá margem à expulsão do dissidente, que perde imediatamente as
proteções políticas e afetivas da comunidade.
Orwell dizia que, diante deste tipo de
impasse, o escritor íntegro não deveria abandonar nem a política, nem o
pensamento.
— Quando um escritor se envolve em política,
deve fazê-lo como cidadão, como ser humano, nunca como escritor. Não creio que
tenha o direito, apenas por causa de sua sensibilidade, de se esquivar do
trabalho sujo ordinário da política. Assim como qualquer outra pessoa, deve
estar preparado para dar palestras em salas com correntes de ar, escrever com
giz nas calçadas, angariar votos, distribuir panfletos e até lutar em guerras
civis, se necessário. Mas, independentemente do que faça a serviço do partido,
nunca deve escrever para ele. Deve deixar claro que a sua escrita é algo à
parte. E deve ser capaz de agir de maneira cooperativa, mesmo quando rejeita
completamente a ideologia oficial. Nunca deve se afastar de uma linha de
pensamento porque ela conduz à heresia e não deve importar-se muito se a sua
heterodoxia for farejada, como provavelmente acontecerá.
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