Folha de S. Paulo
Programa é favorável para o bem-estar, mas
deve sempre ser aprimorado e avaliado
Antes de falar sobre o tema que está no
título deste artigo, acho que vale lembrar o leitor de que, dentre os
economistas ortodoxos, eu sou considerado um heterodoxo, ao passo que, entre os
heterodoxos, eu sou considerado um ortodoxo. Isso significa dizer que eu não
faço parte de nenhum desses "times". Na verdade, o meu time é o das
evidências: estou sempre tentando manter meu conhecimento atualizado à luz de
novos estudos e dados.
Em várias colunas anteriores neste jornal, eu critiquei o teto de gastos criado em 2016, apontando que ele é muito superestimado pelos "ortodoxos", já que aquela regra fiscal não entregou melhoria do primário estrutural nem impediu a dívida pública/PIB (Produto Interno Bruto) de subir continuamente durante vários anos (só caiu em 2021/22 em razão do calote implícito gerado pela inflação de quase dois dígitos naquele biênio).
Aliás, o fim do teto não se deu com a
aprovação da PEC
da Transição, no final de 2022, como muitos ainda insistem em dizer. Esse
processo teve início em 2020, quando o Congresso decidiu praticamente triplicar
os gastos com o Fundeb —uma das poucas despesas que estavam fora dos limites do
teto e que deverá beirar os R$ 60 bilhões neste ano. No segundo semestre de
2021, com o "calote nos precatórios" e a alteração oportunista, para
cima, no indexador do teto (para aumentar os gastos às vésperas das eleições),
a regra fiscal criada no governo Temer morreu de vez, com o enterro acontecendo
um ano depois.
Por outro lado, em artigo publicado no Observatório de Política Fiscal do Ibre, em
meados do ano passado, eu critiquei a revisão para baixo das metas fiscais
do arcabouço fiscal e ainda defendi, dentre as várias medidas necessárias para
o reequilíbrio fiscal brasileiro, a desvinculação do piso previdenciário dos
reajustes do salário
mínimo (a correção deveria ser feita por um indicador que captasse a
inflação para a terceira idade, o IPC-3i, da FGV).
O salário mínimo serve para regular o mercado
de trabalho, não para balizar os valores de aposentadorias, pensões e
benefícios assistenciais (e deve, sim, ser reajustado em termos reais, mas
seguindo a evolução da produtividade do trabalho, não a variação do PIB cheio).
Muitos "heterodoxos" me criticaram sobre essas posições, como se eu
estivesse defendendo o congelamento nominal das aposentadorias.
Há alguns dias foi publicada a Carta do Ibre de agosto, apresentando um estudo do
economista Daniel Duque. Ele apontou que as mudanças que começaram a ser
introduzidas no Bolsa Família a
partir de meados de 2022 —com o valor médio do benefício mais do que
triplicando ante aquele praticado até 2019 e a cobertura passando de cerca de
14 milhões para pouco mais de 20 milhões de beneficiários— parecem estar
gerando alguns efeitos colaterais negativos sobre o mercado de trabalho
brasileiro, como alguma redução da oferta de mão de obra de alguns grupos e
aumento da informalidade. Vale notar que estudo do FMI publicado no relatório "Article IV" sobre
o Brasil em julho deste ano indicou algo na mesma linha.
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Alguns economistas heterodoxos criticaram
fortemente o trabalho de Duque, como se ele estivesse defendendo a extinção do
Bolsa Família —quando, na verdade, o que ele prescreveu, à luz dos seus achados
empíricos, é um aperfeiçoamento do desenho dessa política pública, de modo a
melhorar sua focalização, amenizar os efeitos colaterais distorcivos sobre o
mercado de trabalho e elevar a eficiência do gasto público.
Em termos líquidos, o impacto do Bolsa
Família continua sendo amplamente favorável em termos de bem-estar —sendo um
dos grandes responsáveis, por exemplo, por
tirar o Brasil do "mapa da fome" da ONU, a despeito do forte
aumento dos preços dos alimentos nos últimos anos. Contudo, o programa e todas
as outras várias políticas públicas —renúncias tributárias, subsídios e gastos—
devem ser continuamente avaliados e aprimorados, já que os
recursos não são infinitos, e o Brasil ainda se encontra em um quadro de elevada
fragilidade fiscal.
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