domingo, 4 de novembro de 2018

Fernando Henrique Cardoso: Paciência histórica

- O Estado de S.Paulo

Que movimentos e partidos poderão materializar um radicalismo de centro?

Com a eleição de Bolsonaro e a hecatombe que se abateu sobre o sistema partidário, o melhor é manter a “paciência histórica”. Com a idade, algo se aprende. A principal lição talvez possa ser resumida em antigo ditado popular: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe”.

Como em todo slogan, nesse há muita coisa indefinida: o que alguns qualificam como “bem” para outros pode ser o “mal”. A despeito de opiniões distintas, penso que a onda conservadora que se prenuncia não será boa, como não seria a da arrogância petista, que está na raiz do atual estado de coisas, com a polarização do “nós” contra “eles”.

Democrata, curvo-me à decisão da maioria. Mas não me amoldo, como não me amoldaria se fosse vencedor o polo oposto. Pertenço à família espiritual dos que pretendem ser razoáveis, aceitam o diálogo, podem mudar de opinião e quando o fazem dizem o porquê. E não querem ficar espremidos num “centro amorfo”. Essa família sabe que a emoção existe, deixa-se envolver por ela de vez em quando, mas tenta apegar-se a algum grau de razoabilidade.

Nas circunstâncias, há que esperar. Como será o governo Bolsonaro? Como enfrentará os desafios de reduzir a desigualdade social, como retomará o crescimento econômico para criar empregos; porá ordem nas finanças públicas, assegurará a tranquilidade às pessoas assustadas com tanta violência nas ruas e no campo, será capaz de combater o crime organizado? Sem falar na hercúlea tarefa, que é de todas as forças políticas, sobretudo das que tenham maior convicção democrática, de recolocar nos trilhos o sistema eleitoral e partidário, que afundou na corrupção, na fragmentação e na perda de conteúdo programático.

Luiz Werneck Vianna: A hora dos intelectuais

- O Estado de S.Paulo

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos

O martelo está batido. Começamos uma nova história sem uma ideia na cabeça, condenados em meio às trevas a tatear em busca de um caminho para uma sociedade que se perdeu de si mesma, do seu passado e de suas melhores tradições, tanto nas elites como nos setores subalternos. É hora de recolher os cacos, identificar as raízes dos nossos erros, da autocrítica impiedosa quanto aos rumos equívocos em que nos deixamos enredar e ameaçam pôr sob risco nossas conquistas democráticas. Trata-se de uma derrota política levada a efeito no campo do processo eleitoral, terreno que sempre identificamos como propício ao avanço dos temas sociais e das lutas pela igualdade, e cuja expressão quantitativa ainda mais denuncia a sua gravidade e o alcance de suas repercussões.

Mas com o erro também se aprende e não são poucas as lições que essa miserável sucessão presidencial deixa como legado para os que recusam que o veneno do que há de mais anacrônico no passado volte a assumir as rédeas do nosso futuro, como nesse retorno patético ao anticomunismo do presidente eleito, que, na verdade, visa a atingir a nossa Constituição. Com efeito, fora os artifícios de mão usados na campanha vitoriosa de Bolsonaro, como o desse cediço anticomunismo, analisados os resultados eleitorais, principalmente em alguns dos Estados da Federação, o que há de comum neles é o argumento utilitarista, fundamento filosófico do neoliberalismo. No cerne do texto constitucional, entretanto, vige o princípio da solidariedade, antípoda desde E. Durkheim, das concepções utilitaristas, alvo oculto das campanhas bolsonaristas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, acompanhando a orientação da candidatura presidencial e do seu principal consultor econômico de explícita adesão ao ideário do neoliberalismo.

O princípio da solidariedade e o centro político guardam relações antigas no processo de modernização conservadora do País, pois se iniciam com Vargas na legislação social sob a inspiração do corporativista Oliveira Vianna, embora sob o registro restritivo do autoritarismo e da tutela dos trabalhadores. Depurada dessa chave a Constituição, que é obra do centro político, a solidariedade foi elevada a princípio fundador da República, com o mesmo estatuto dos princípios da liberdade e da igualdade, conferindo caráter público à previdência social, que ora muitos dos atuais eleitos querem deslocar para a dimensão do mercado.

Vera Magalhães: O mundo de Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

Eleito pauta declarações sobre política externa e comércio exterior pela ideologia

Para vencer uma eleição contra o PT diante do desgaste do partido, provocado por muitos anos de recessão e um escândalo de corrupção vasto, a divisão de tudo segundo conceitos rudimentares de esquerda e direita se mostrou eficiente.

Ao pintar o Brasil indistintamente de verde oliva e vermelho, Jair Bolsonaro e seus apoiadores conseguiram arregimentar um exército fanático e acrítico nas ruas e nas redes sociais.

Todos os principais temas, da política à economia, passando por educação, cultura, saúde e segurança pública foram submetidos a esta clivagem, que deverá pautar nos próximos quatro anos as discussões no Congresso, as intervenções do Supremo Tribunal Federal no debate público – vide o aperitivo dado nesta semana com o debate sobre liberdade de expressão nas universidades – e, principalmente, a gritaria no ambiente público já ensurdecedor.

Mas será que essa simplificação grosseira serve para amparar a política externa brasileira, sua inserção diplomática no mundo e, sobretudo, sua atuação comercial? Dificilmente. Porque o Brasil não é os EUA e Bolsonaro terá de descobrir que não é Donald Trump.

Eliane Cantanhêde: “Pouco contato”?!

- O Estado de S.Paulo

Inteligente, preparado e falante, o vice Mourão ainda vai dar muita dor de cabeça

Passou suavemente, quase despercebida, a frase do presidente eleito, capitão reformado Jair Bolsonaro, sobre seu vice, general de quatro estrelas da reserva Hamilton Mourão, mas ela diz e projeta muito de um governo que nem começou. “Tenho pouco contato com ele”, disse Bolsonaro, com um ar de pouco caso, deixando uma pulga atrás da orelha de atentos e curiosos.

Mourão tem respeitável carreira no Exército, ocupou postos de destaque dentro e fora do País, inclusive o Comando Militar do Sul, foi bem em entrevistas às tevês (dizem que até melhor do que o próprio Bolsonaro) e acaba de passar muito bem no teste de inglês ao falar à BBC. Mas é dado a declarações polêmicas, às vezes chocantes.

Sua primeira vitória foi ultrapassar Janaína Paschoal, Marcos Pontes, Magno Malta, Luiz Philippe Orleans e Bragança na corrida pela vice. Entre professores, políticos, astronautas e príncipes, Bolsonaro ficou com um general gaúcho que surgiu no cenário político ainda na ativa, ao ser afastado da Secretaria de Economia e Finanças do Exército em 2017, não por coincidência, após defender intervenção militar.

Merval Pereira: Separação de Poderes

- O Globo

A separação dos poderes não é intrínseca à democracia, mas ao presidencialismo, criada na Constituição americana em 1789

O debate sobre a nomeação do juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça com superpoderes no governo Bolsonaro levantou pontos relevantes sobre a relação entre os Poderes da República e o exercício da política para além do jogo partidário.

Moro sempre declarou que nunca faria carreira política, obviamente se referindo à política partidária. Mesmo porque já era um “agente político” na sua atuação como magistrado, de acordo com a definição da Controladoria-Geral da União (CGU): “agente político é aquele investido em seu cargo por meio de eleição, nomeação ou designação, cuja competência advém da própria Constituição, como os Chefes de Poder Executivo e membros do Poder Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, além de cargos de Diplomatas, Ministros de Estado e de Secretários nas Unidades da Federação, os quais não se sujeitam ao processo administrativo disciplinar”.

A separação dos poderes não é intrínseca à democracia, mas ao presidencialismo, criada na Constituição americana em 1789. Já existia na teoria, pela famosa obra de Montesquieu “O espírito das leis” e outras, e incipientemente na Inglaterra, à época uma monarquia constitucional que ainda não separava claramente o Poder Judiciário do Executivo.

Os EUA formaram a primeira república constitucional do mundo moderno. O verdadeiro fundo filosófico é que nos EUA quem governa dá os rumos; é o Congresso. Um congressista faz parte de um poder verdadeiro. O Legislativo é um poder que não tem chefe. Um deputado, um senador, não é subordinado a nenhum chefe. Não pode ser demitido por chefe nenhum. Muito menos pode ser subordinado ao simples chefe de outro poder, o Executivo.

Míriam Leitão: Governo terá briga de agendas

- O Globo

Novo governo vai ter que enfrentar o dilema de escolher em qual das suas agendas pretende investir a lua de mel do começo de mandato

O mercado financeiro acredita que a agenda prioritária do presidente eleito Jair Bolsonaro será a de reformas econômicas e já comemora por antecipação. O juiz Sergio Moro foi para o governo convencido de que será possível tocar a agenda anticorrupção. Bolsonaro deu sinais de que continua focado nas suas ideias sobre segurança, como liberação de armas, redução da maioridade penal e o “excludente de ilicitude" para proteger policiais. Enquanto isso, tem feito anúncios na política externa.

Apenas 11 países, dos 193 da ONU, têm relações com todos os membros e o Brasil é um deles. É um dos orgulhos da nossa diplomacia. Bolsonaro quer sair desse simbólico clube rompendo relações com Cuba. Um ato sem maiores motivos e ganhos. Avisou que será o terceiro país do mundo a transferir a embaixada brasileira para Jerusalém. Deveria ser lembrado do relevante comércio com os países árabes. A Liga Árabe tem 22 membros e a Conferência Islâmica, 57. Recados diplomáticos estão desembarcando em alguns ouvidos de que pode haver retaliação comercial por parte de países com os quais temos superávit comercial. A falta de prioridade do Mercosul foi dita com ênfase bem audível pelo futuro ministro da Economia. A Argentina é o maior comprador de manufaturados do Brasil.

Enquanto o governo Bolsonaro exercita sua diplomacia, já vai ficando claro que haverá no Congresso, no ano que vem, pelo menos três agendas em conflito. Em qual delas, o presidente eleito Jair Bolsonaro pretende investir a sua lua de mel? A econômica, a do seu pacote de segurança, ou o combate à corrupção.

O cientista político Carlos Pereira, da FGV, lembra o grande capital político que ele terá ao assumir.

— Minha impressão é que ele aprovará tudo o que quiser no Congresso no curto prazo, porque é um governo inaugural e que terá uma maioria homogênea com partidos de centro-direita.

Elio Gaspari: Moro no governo dos ‘humanos direitos’

- O Globo

Sergio Moro lustrou a biografia de Jair Bolsonaro e de seu futuro governo ao aceitar o superministério da Justiça. Foi um tiro na mosca, pois seu trabalho à frente da Lava-Jato tornou-se um marco na História da política nacional, faxinando a corrupção do andar de cima.

Ao se sentar na cadeira, será apresentado a outro tipo de corrupção sistêmica, aquela que ofende os direitos dos cidadãos. Ele entrará num governo em que o futuro ministro da Defesa, general da reserva Augusto Heleno, disse que “direitos humanos são basicamente para humanos direitos”. Desfolhando as mazelas da criminalidade nacional, acrescentou: “É um absurdo tratar isso como uma situação normal. É situação de exceção que merece tratamento de exceção”.

Quais tratamentos de exceção Moro sancionará, ninguém sabe.

O futuro governador do Rio de Janeiro, oficial da reserva da Marinha, singra um discurso apocalíptico e anuncia que “não vai faltar lugar para colocar bandido, cova a gente cava e presídio, se precisar, a gente bota em navio em alto-mar.” Pura demagogia, e Witzel conhece a história dessas cadeias flutuantes. Elas se chamavam “presigangas” e eram usadas na Colônia e no Império. A última “presiganga” de que se tem notícia funcionou no navio Raul Soares, onde puseram presos políticos em 1964.

Os discursos repressivos de hoje têm amplo apoio popular, o que os torna mais perigosos, pois quando ficar demonstrada a vacuidade do palavrório, os demagogos mudarão de assunto.

Sergio Moro diz que a sua prioridade será o combate à corrupção e ao crime organizado. Por falta de experiência na área criminal do andar de baixo, descobrirá isso quando cair sobre sua mesa o caso de alguma roubalheira que usava um posto de gasolina da Baixada Fluminense para lavar dinheiro da corrupção e do tráfico. Puxando os fios, como ele fez em Curitiba, será fácil descobrir poderes que se instalaram no século passado, sobreviveram à ditadura, aninhados nos desvãos dos DOI e ressurgiram com a redemocratização, sambando na avenida e negociando nos palácios.

Hoje, como sempre, os ferrabrás ganham desenvoltura quando sentem-se amparados pela opinião pública. Alguns ministros da Justiça, como Seabra Fagundes e Milton Campos, sentiram o cheiro de queimado e foram-se embora. Outros, como o professor Luís Antônio da Gama e Silva, redator do AI-5, inebriaram-se. Cada um escolhe seu caminho, e Moro escolherá o seu.

Pode-lhe ser útil a lembrança do que ocorreu com Carlos Medeiros Silva quando se sentou naquela cadeira, em 1966. Um coronel que servia no gabinete apresentou-se:

— Ministro, vim conhecê-lo. Sou o representante da linha dura aqui no ministério.

Medeiros era um mineiro miúdo e discreto. Cioso da autoridade, sobretudo da sua, respondeu:

— Coronel, agradeço muito seus relevantes serviços, mas o senhor está dispensado. Agora, o representante da linha dura aqui sou eu.

Ascânio Seleme: Montando o governo

- O Globo

A redução do número de ministérios no governo de Jair Bolsonaro não vai resultar necessariamente em queda importante das despesas orçamentárias. Se a Esplanada ficar com 17 pastas, o novo governo terá extinto 12 dos 29 ministérios hoje existentes. Será um bom símbolo de austeridade e de empenho no enxugamento da máquina e na diminuição do Estado, mas é preciso muito mais do que isso para que as contas públicas sofram impacto.

Com 12 ministros a menos, o Estado poderá cortar em cargos de assessoramento e secretariado no máximo uns 300 postos, nada mais do que uma vírgula no oceano de 630 mil servidores civis ou mais de 320 mil militares na ativa no Brasil.

O que Bolsonaro vai fazer, a grosso modo, é reagrupar setores do governo que foram divididos ao longo dos anos para abrigar aliados dos que detinham o poder. Por isso, as funções distribuídas nos ministérios criados sem necessidade não deixam de existir em razão da sua reunião sob comando único, apenas perdem status. No governo Lula, o Estado chegou a ter 37 ministérios, com Dilma foram 39, todos entregues a partidos da base.

Hélio Schwartsman: A revolta dos oprimidos

- Folha de S. Paulo

Cientistas políticos ligam onda de populismo a uma insatisfação popular com as elites

Cientistas políticos vêm associando a onda de populismo que varre algumas democracias estabelecidas a uma espécie de revolta da população contra a arrogância de elites políticas, econômicas e culturais, que sempre exerceram posições de mando na democracia.

Fenômenos como o Brexit, Trump e até Bolsonaro seriam a reação a um establishment que cessou de dar aos eleitores o que eles exigem. É um populismo que tende à direita, tem fortes traços de anti-intelectualismo e pendor por uma retórica mais efusiva, para não dizer violenta.

Razões para as pessoas se sentirem insatisfeitas é o que não falta. Elas vão da má distribuição de renda à corrupção, passando pela imigração e o desemprego. Cada país terá o seu próprio blend de tendências globais e elementos locais. Cobrar mais dos administradores, mandando-os para casa quando a gestão deixa a desejar, é algo que está inscrito no DNA da democracia.

Bruno Boghossian: Os Lorenzonis

- Folha de S. Paulo

Pauta ruralista e evangélica será chave de Bolsonaro no Congresso

O próximo ministro da Fazenda não gostou de ver um deputado dando palpite em sua área. “É um político falando de economia”, reclamou Paulo Guedes ao desautorizar Onyx Lorenzoni, articulador do futuro governo.

Guedes terá que se acostumar. As medidas que propõe para colocar as contas do país em ordem dependerão de 513 Lorenzonis na Câmara e outros 81 no Senado.

A capacidade de formar maioria no Congresso para aprovar propostas impopulares como a reforma da Previdência será uma das principais provas para Jair Bolsonaro. Sob a promessa de romper a tradição de distribuir cargos aos partidos aliados, o presidente eleito usará sua popularidade como chave para uma lua de mel com o Legislativo.

A plataforma conservadora que teve êxito nas urnas deve ser uma das peças centrais desse jogo. Ainda em campanha, Bolsonaro sugeriu que aproveitaria a pauta de costumes para adoçar a boca dos parlamentares e convencê-los a engolir a pílula amarga do aperto fiscal.

“Se nós tipificarmos ações do MST como terrorismo, será que a bancada ruralista não vai estar conosco?”, perguntou o então candidato em uma palestra a empresários, em julho. “Se nós buscarmos resgatar os valores familiares, não vamos ter simpatia dos evangélicos?”

Vinicius Torres Freire: Quais são os superpoderes de Moro

- Folha de S. Paulo

Ministro terá poder de investigação do governo e informação sobre crimes financeiros

O ministério que Sergio Moro deve assumir não seria mais do que a velha pasta da Justiça não fosse a incorporação de duas instituições importantes: a CGU (Controladoria-Geral da União) e o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Com a CGU, Moro passaria a comandar uma espécie de polícia administrativa e a inspetoria do governo.

Com o Coaf, terá algum controle sobre uma agência de inteligência que recebe, analisa e encaminha ao Ministério Público e à polícia denúncias de lavagem de dinheiro e uso de recursos para fins criminosos, terrorismo inclusive.

Desde que foi criada, em 2003, a CGU teve ligação direta com o presidente da República —ora é um ministério. O Coaf é filho da lei de lavagem de dinheiro, de 1998, desde sempre abrigado no Ministério da Fazenda.

No mais, a Justiça de Moro vai reabsorver as polícias federais, deslocadas neste ano para o breve Ministério da Segurança.

Samuel Pessôa: Narrativas

- Folha de S. Paulo

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história

A democracia requer a distinção de fatos das narrativas. E requer reconhecer erros e corrigi-los.

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história. Construir uma nova narrativa. Certamente esse desejo não é compartilhado por todos os eleitores do capitão no segundo turno. Mas existe.

A narrativa que se deseja construir é que não houve ditadura militar, que não houve tortura e que a corrupção resulta da redemocratização. Essa narrativa fere fatos conhecidos de nossa história. E fatos são fatos, narrativas são narrativas.

A corrupção é perene na nossa história. Não há forma de combater a corrupção que não seja com independência do Judiciário e imprensa livre e vigilante. Ou seja, com democracia.

Mas, para diferenciar narrativas de fatos, será necessário reconhecer também que a narrativa de que a guerrilha defendia a democracia está factualmente errada.

Ou seja, se é fato que a ditadura torturou Dilma Rousseff, também é fato que toda a guerrilha lutou para instituir a ditadura que considerava correta.

Gente muito jovem, movida por paixões igualitárias e por uma ideologia não democrática, cometeu o erro de pegar em armas. Pagaram caro.

Luiz Carlos Azedo: Os mascates

- Correio Braziliense

Há um mês, cerca de mil pessoas — homens, mulheres crianças e até idosos —, fugindo da fome e da violência, deixaram a cidade de São Pedro Sula, em Honduras, em busca do sonho americano. A notícia se espalhou pelas redes sociais, e milhares de pessoas de outros países da América Central se juntaram a elas na Guatemala, em direção ao México. Às vésperas das eleições legislativas de 6 de novembro, a marcha virou uma dor de cabeça para o presidente dos Estados Unidos, porque já reúne quase 10 mil pessoas e chegou ao México, sendo acompanhada pela mídia do mundo inteiro.

Trump já anunciou a intenção de impedir a entrada dos imigrantes e mandou mais 5 mil homens da Guarda Nacional para a fronteira. Acusa o Partido Democrata de estimular a marcha. O risco é os mexicanos aderirem em massa ao movimento, autodenominado “Pueblo Sin Fronteiras” (Povo Sem Fronteiras). Cerca de 10% da população da Guatemala, El Salvador e Honduras já deixaram seus países para fugir da criminalidade e do recrutamento forçado por gangues, em busca de poucas oportunidades de trabalho. Trump ameaça cortar a ajuda norte-americana aos países de América Central. Segundo a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional, a Guatemala recebe mais de US$ 248 milhões por ano; Honduras, US$ 175 milhões; e El Salvador, US$ 115 milhões.

Esse fenômeno parecia distante do Brasil, mas também já é vivido por nós em razão da crise venezuelana. A diferença é que o governo brasileiro, depois dos incidentes entre brasileiros e venezuelanos em Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela, com apoio das Forças Armadas, montou uma infraestrutura adequada para receber milhares de refugiados, que são redistribuídos para os diversos estados do país. O êxodo de 2,4 milhões de venezuelanos, em apenas dois anos, já é o maior da história da América do Sul e atinge praticamente todos os países do subcontinente. A diferença é que o presidente Michel Temer, ele próprio descendente de imigrantes libaneses, seguindo a tradição de nossa política externa, tem uma posição oposta à xenofobia de Trump.

Senado semeia incerteza com veto à privatização: Editorial | O Globo

Proibição da venda de empresas da Eletrobras gera insegurança jurídica e perdas para o Erário

Em fim de legislatura, o Senado conseguiu aquilo que parecia extremamente difícil: ampliar a margem de insegurança jurídica em contratos do governo. Na semana retrasada, num plenário com um terço ainda afetado pelo amargor da derrota nas urnas, rejeitou-se o projeto de lei autorizando a privatização de distribuidoras de energia do grupo Eletrobras.

De seis subsidiárias estatais, quatro haviam sido leiloadas no mês anterior, a R$ 50 mil cada. Restaram a de Alagoas, que, em esdrúxula decisão, a Justiça impediu de privatizar; e a empresa do Amazonas.

A rejeição do projeto no Senado não anula as vendas já realizadas, mas torna possível uma miríade de questionamentos sobre os contratos assinados na recente privatização. Além disso, semeia ceticismo sobre a capacidade financeira da Eletrobras no curto prazo, pela extensão da carga imprevista nas operações no Amazonas e em Alagoas. Note-se que as dívidas dessas duas companhias superam R$ 20 bilhões, o que não é pouco para um grupo estatal à beira do colapso, como tem advertido o governo.

Na ressaca eleitoral, os senadores decidiram, em última análise, contra os interesses do Estado. Vetaram a privatização, sem se preocupar em construir uma solução para a Eletrobras. No máximo, propuseram uma investigação sobre prejuízos.

É grave equívoco depreciar as relações com China e Mercosul: Editorial | O Globo

Novo governo deve ter prudência ao reavaliar interesses do país na diplomacia e no comércio

O presidente eleito Jair Bolsonaro deveria adotar a cautela como postura nas mudanças de rumo nas relações exteriores e nas revisões que pretende realizar na política comercial.

Palavras de um presidente eleito têm peso específico, assim como a de seus principais assessores na transição de governo. É prejudicial ao país, por exemplo, o flerte com a dialética da banalização nas abordagens sobre o futuro das relações com a China e com o Mercosul, e, neste caso, especialmente com a Argentina. Elas são um legado diplomático de governos militares (de Ernesto Geisel a João Figueiredo) aos civis na redemocratização (de José Sarney a Itamar Franco).

Faz sentido, sim, o próximo governo balizar a política externa de acordo com as premissas programáticas legitimadas pela maioria de 57,7 milhões de eleitores.

É lógico, também, que altere e ajuste o foco no comércio exterior, em busca de maior liberalização da economia, com redução programada de tarifas e barreiras, e de medidas de defesa comercial —sempre de forma planejada, porque a situação é complexa: o déficit comercial de US$ 20,3 bilhões do setor industrial nos primeiros nove meses deste ano foi dez vezes maior que o do mesmo período do ano passado.

Teste na Previdência: Editorial | Folha de S. Paulo

Primeiro desafio de Bolsonaro é definir estratégia para conter déficit do sistema de aposentadorias; há opções mais e menos ambiciosas de reforma

Depois de idas e vindas, o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), e sua equipe parecem adotar uma visão mais realista e pragmática da reforma da Previdência, decisiva para o sucesso do próximo governo.

Bolsonaro indicou que pretende aproveitar ao menos partes do projeto do governo Michel Temer (MDB), cuja medida mais importante é a introdução de uma idade mínima para o acesso aos benefícios, de 65 anos para homens e 62 para mulheres. O texto, que tramita na Câmara dos Deputados, poderia avançar ainda neste ano.

O presidente eleito desautorizou, assim, a insensatez do futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que havia chamado o texto de “porcaria” —e até colocado em dúvida a existência do déficit gigantesco do sistema previdenciário.

Os desesperados: Editorial | O Estado de S. Paulo

Uma oposição “propositiva” ao governo de Jair Bolsonaro é o que prometem alguns partidos de esquerda que já começam a se organizar com vista à próxima legislatura. Não por acaso, esse bloco excluirá o PT. Segundo explicou o deputado André Figueiredo (CE), líder do PDT na Câmara, o partido do ex-presidente e hoje presidiário Lula da Silva “tem um modus operandi próprio dele”, enquanto o bloco formado por PDT, PSB e PCdoB “tem um outro modelo de oposição”, isto é, “um modelo construtivo para o País”.

Ainda será preciso esperar que esses partidos passem das belas palavras aos atos concretos, mas é significativo que agremiações que tão fortemente antagonizaram com Bolsonaro durante a campanha agora se digam dispostas a fazer oposição responsável ao próximo governo.

Também é significativo que o grupo tenha dispensado o PT e sua linha auxiliar, o PSOL, das conversas para a formação de um bloco de oposição. O pedetista André Figueiredo explicou que não é mais possível aceitar “o hegemonismo que o PT quer impor aos demais partidos” e que nenhuma dessas legendas de esquerda aceita ser “um puxadinho do PT”.

O isolamento do PT no campo da oposição é a consequência natural do comportamento autoritário do partido, incapaz de uma convivência democrática mesmo com aqueles com os quais nutre alguma afinidade ideológica. Para os petistas, nada que não tenha sido ditado pelo PT tem legitimidade.

Martinho da Vila: Onde o Brasil aprendeu a Liberdade

Carlos Drummond de Andrade: José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, proptesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você consasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?