O Globo
Mulheres e idosos podiam ser mortos
gratuitamente. Quando o alvo era uma criança ou homem, havia cobrança adicional
O preço do silêncio é sempre alto. Os mortos
no Valle de los Caídos (hoje Valle de Cuelgamuros) na Espanha, em Auschwitz,
Sarajevo ou Gaza não puderam falar. E os que ousaram abrir nossos olhos não
foram ouvidos à sua época. Os muitos abismos de indiferença humana levam tempo
até receber uma primeira lufada de verdade. Mas, uma vez aberta a comporta, ela
— a verdade — emerge e matura, ora em jorro, ora aos pingos. E graças a uma
característica tão humana quanto a indiferença: a perseverança. A busca por justiça,
mesmo que tardia, responde a nossa incontornável obrigação de confrontar
traumas coletivos e responsabilizar seus perpetradores.
— Toda a bondade e o heroísmo ressurgirão, para depois ser destruídos e ressurgir novamente. Não é que o mal vença (nunca vencerá), mas ele apenas não morre — escreveu John Steinbeck a um amigo no auge da Segunda Guerra.
Na semana passada, a Justiça italiana
desenterrou um dos capítulos mais infames de crueldade humana, ocorrido na
Guerra da Bósnia três décadas atrás. Sarajevo, que sofria o cerco mais longo a
uma cidade na história moderna da Europa, resistiu durante quatro anos ao
estrangulamento promovido pelo exército sérvio-bósnio. Mais de 11 mil civis
foram abatidos a troco de nada, a qualquer hora. Às sextas-feiras, diz a
investigação aberta pela Procuradoria de Milão, ocorriam “safáris” especiais
que se estendiam pelo fim de semana. Os caçadores? Cidadãos em sua maioria
italianos abastados, socialmente inseridos. Reuniam-se em Trieste, cidade
fronteiriça à antiga Iugoslávia, de onde eram transportados pela empresa
iugoslavo-sérvia Aviogenex até as colinas ao redor da Sarajevo sitiada. A caça?
Cidadãos bósnios indefesos, alvejados enquanto transitavam por determinadas
ruas ou becos.
A investigação, liderada pelo procurador
Alessandro Gobbis, foi iniciada após o jornalista e romancista Ezio Gavazzeni,
em colaboração com os advogados Nicola Brigida e o ex-juiz Guido Salvini,
apresentar uma denúncia de “homicídio qualificado por crueldade e motivos
desprezíveis” contra esses grupos de “turistas-assassinos”.
— São pessoas com paixão por armas, que
preferem ir para a cama com um rifle, com dinheiro à disposição e contatos
certos de facilitadores entre a Itália e a Sérvia. É a indiferença do mal:
tornar-se Deus e permanecer impune — descreveu Gavazzeni em entrevista ao La
Repubblica.
Contou que um dos cinco participantes já
identificados na ação voltou do fim de semana de extermínio “e continuou sua
vida normalmente, respeitável aos olhos de todos”. Outro é dono de uma clínica
de cirurgia plástica de Milão.
Ainda não se sabe quem organizava as viagens.
Segundo a denúncia de 17 páginas, cada um desses “turistas-assassinos” pagava o
equivalente a até R$ 600 mil em moeda anterior à introdução do euro na União
Europeia. Mulheres e idosos podiam ser mortos gratuitamente. Quando o alvo era
uma criança ou homem, havia cobrança adicional por parte das milícias leais a
Radovan Karadzic, primeiro presidente daquela Sérvia independente. Demorou mais
de duas décadas para Karadzic ser condenado pelo Tribunal Penal Internacional
da ONU para a ex-Iugoslávia (TJPI) por genocídio e crimes contra a humanidade e
cumprir prisão perpétua.
Tampouco ainda se sabe a real extensão da
indiferença ou conivência de autoridades com o horror. Pelo menos um depoente
no inquérito —um ex-oficial militar bósnio — alegou ter alertado a agência de
inteligência militar da Itália (Sismi) sobre a prática macabra ainda em 1994 e
disse ter sido informado de que a operação fora interrompida. A Sérvia, por seu
lado, negou qualquer envolvimento nos assassinatos.
Faz um mal danado à alma e à mente investigar
como transcorriam essas caçadas covardes, em que o matador nem precisava ser
exímio — sua presa indefesa já estava à vista. O caçador também sabia que não
levaria a carcaça humana para casa, como troféu. A excitação se resumia à
aventura de matar civis cercados, por mero esporte.
Não há tribunal no mundo capaz de cassar a
humanidade dessas criaturas. Mas é imperioso levá-las a julgamento para não
apagar a História.

Nenhum comentário:
Postar um comentário