Neste ensaio, o jeito Dilma de atuar (que não é o de Lula): em lugar de contornar os vetos encastelados no sistema político, ela os confronta
"Aqui vem a parte in-crí-vel. Quando você comete os erros de dentro, os erros perdem seu significado. Os erros deixam de ser erros. Os erros, as cabeçadas na parede, se transformam em virtudes políticas, em contingências políticas, em presença política, em pontos midiáticos a seu favor" (Azucena Esquivel Plata, deputada pelo PRI mexicano no romance 2666, de Roberto Bolaño).
Lula anda preocupado com a maneira de Dilma fazer política. Teme que ela fique isolada, apesar da ampla base de sustentação do governo. Acha que, mais cedo ou mais tarde, Dilma vai receber o troco por medidas de saneamento como as realizadas no Ministério dos Transportes. E não apenas do PR.
O fato é que Dilma faz política de um jeito diferente de Lula: não contorna os muitos e vários vetos encastelados no sistema político, ela os confronta.
Até a queda de Palocci, os dois estilos se misturavam. Quer dizer, Dilma ia para o confronto e Palocci procurava traduzir da maneira mais jeitosa possível para o sistema político o estilo impositivo da presidente. Depois de Palocci, Dilma não tem mais esse tradutor e intérprete.
E Lula já não tem mais um representante cravado no coração do governo. Tem agora apenas uma espécie de informante privilegiado, que é seu fiel escudeiro Gilberto Carvalho.
O que Dilma está fazendo é administrar a sua maneira o principal elemento de continuidade entre seu governo e o de Lula, que se poderia chamar de "pacto do crescimento". Lula montou um amplíssimo pacto fundado em três elementos fundamentais: crescimento econômico em torno de 4% ao ano, em média; inflação sob controle, ainda que em um patamar elevado para padrões internacionais; compensações sociais, com destaque para aumentos reais do salário mínimo. Além disso, Dilma tem de entregar as obras de infraestrutura necessárias à realização da Copa de 2014, bem como as demais obras do PAC.
O pacto tem de ser preservado, mas Dilma não pode mantê-lo nos mesmos patamares generosos em que foi celebrado no governo Lula. O cenário da economia mundial é instável e ameaçador. E, do ponto de vista interno, há limitações de várias ordens que exigem que o pacto seja revisto para baixo.
A lógica específica do governo Dilma está na maneira impositiva, antinegociação, pela qual realiza esse necessário ajuste para baixo do pacto do crescimento, transformando todo embate em uma queda de braço. Em um ambiente político em que não há de fato oposição e "todo mundo" quer aderir, Dilma usa o "excesso de adesão" para fazer com que os pactuadores aceitem posições mais modestas no grande acordo firmado por Lula.
Até o momento, essa política da queda de braço tem sido interpretada simplesmente em termos de "avanços" e "recuos" do governo, em termos de "vitórias" ou "derrotas" da presidente. Mas não é esse o seu sentido político profundo.
Na verdade, a presidente está se apresentando à sociedade como alguém que, de dentro, luta permanentemente contra um sistema político descolado da sociedade, voltado para os próprios interesses. Esse é o lugar que Dilma encontrou para se apresentar à sociedade e para se comunicar com ela.
Quando entende que não tem condições de se impor, mostra que foi obrigada a ceder em nome da governabilidade. Procura transformar cada "derrota" em uma "vitória moral". Coisa que talvez explique, aliás, o apoio um tanto inesperado que Dilma tem encontrado na chamada classe média tradicional, sempre pronta a atirar a primeira pedra contra as mazelas históricas da política nacional.
Dilma mobiliza e canaliza a seu favor a legítima ojeriza da sociedade à desfaçatez do sistema político. Como se ela própria não estivesse enfiada até o pescoço nesse mesmo sistema político que "combate de dentro". Com isso projeta uma imagem de uma presidente que "não se mistura à baixaria", que se mantém "a salvo da contaminação".
À sua maneira, é o que também faz, por exemplo, Marina Silva, do lado "de fora" da política oficial. Marina tem dito que torce por Dilma. E disse que entende a presidente porque passou a vida toda lutando de dentro do sistema, mesmo sabendo que seria derrotada a maior parte do tempo. É uma maneira de tirar casquinha da tática de "não contaminação" da presidente.
Dilma não negocia; ela perde ou ganha, vence ou capitula. Para ser mais preciso: Dilma compra briga sobre todas as questões, mas, se for necessário, aceita perder em temas que não sejam vitais à manutenção do pacto de que é a fiadora e pelo qual foi eleita.
De modo que há mesmo um certo efeito diversionista em comprar todas as brigas, em não deixar passar nada. Afinal, a presidente se mostrou disposta a demitir todos os ministros do PMDB por causa da votação do novo Código Florestal na Câmara dos Deputados. Um tema certamente importante, mas nem de longe entre os que são vitais à manutenção do pacto do crescimento. O que não se percebeu nesse "exagero" e nessa "derrota" da presidente é que, na lógica da "não contaminação", sua atuação lhe deu um crédito internacional que ela poderá sacar, por exemplo, na conferência sobre desenvolvimento sustentável, a Rio+20, que acontecerá no próximo ano.
O outro objetivo da política da queda de braço é tentar ampliar o raio do "cordão sanitário" dentro do governo. Desde o período FHC, passando pelo governo Lula, há um conjunto de ministérios que são preservados do peemedebismo. Os exemplos clássicos são Educação, Saúde e a área econômica. O que Dilma fez foi usar a tática da queda de braço para tentar esticar o cordão sanitário até o Ministério dos Transportes. Porque, ao contrário do governo anterior, esse ministério é agora parte vital do pacto pela qual a presidente foi eleita. Estão em sua órbita as obras de infraestrutura para a Copa e, de maneira mais ampla, as obras do próprio PAC.
Ocorre que, com a intervenção no Ministério dos Transportes, a tática da queda de braço esgotou o eventual efeito surpresa que possa ter tido. O sistema político, tendo compreendido a regra do jogo, passará a chantagear nas questões de vida ou morte. Testes importantes virão, por exemplo, na simples eventualidade de irem a votação itens como a Emenda Constitucional 29 (que aumenta os recursos para a saúde), ou a PEC 300 (que estabelece um piso para salários de policiais militares e bombeiros em todo o País). Também terá grande repercussão orçamentária a decisão em torno da distribuição dos royalties do petróleo.
Além disso, é mesmo de se perguntar por quanto tempo é possível sustentar esse clima de permanente tensão produzido pelo modus operandi da presidente. Situação agravada adicionalmente pelo já mencionado panorama instável da economia mundial e de uma taxa de inflação que tem se mostrado vigorosamente resistente às variadas medidas de contenção adotadas até agora.
Na lógica da queda de braço, os políticos e a política em geral saem em bloco como vilões, posição que não será aceita passivamente durante quatro anos. Principalmente em anos eleitorais, como será o caso de 2012. E, do outro lado, a presidente dá mostras de estar decidida a levar esse enfrentamento até o limite do insuportável para se assegurar de que os elementos fundamentais do pacto do crescimento estejam sob controle.
De modo que todo o problema para o governo passa a ser então o de garantir que, até o horizonte político do primeiro semestre de 2012, a inflação dê mostras de estar sob controle sem que haja prejuízo demasiado ao crescimento econômico. Essa é a tarefa do que poderia ser chamada de a primeira etapa do governo Dilma. Que não por acaso coincide com a diretriz de que nem todo o ministério anunciado no início do governo será mantido a partir do segundo ano de mandato.
Ao longo dessa primeira etapa, a presidente não dá mostras de que abrirá mão da política da queda de braço. Mas é razoável supor que, se essa primeira etapa for bem-sucedida, haverá uma reacomodação das forças políticas e uma reconfiguração do governo. Só que é cedo para dizer mais do que isso.
Ainda assim, esse quadro geral já é suficiente para explicar, por exemplo, por que o governo Dilma não tem uma "agenda positiva" própria. Mais ainda, ajuda a entender como seu governo se insere em um projeto mais amplo de manter o PT na liderança da coalizão por pelo menos os próximos 12 anos, de maneira a completar os 20 anos de poder preconizados por Lula poucos meses após deixar a Presidência.
Desse ponto de vista, o mandato da presidente em seu conjunto representa um governo de transição. Tem de conseguir administrar o pacto de crescimento de maneira satisfatória até a próxima eleição presidencial. Se conseguir isso, disputa a reeleição com grandes chances. Só em um hipotético segundo mandato é que poderia surgir uma real "agenda positiva", propriamente dilmista.
Do ponto de vista desse projeto de poder da coalizão, o governo Dilma é a passagem pelo "deserto" que levará ao "paraíso" representado pela expectativa de riqueza a ser gerada pelo crescimento econômico contínuo e pela exploração da camada pré-sal. O específico da primeira etapa do governo Dilma é a tática escolhida para realizar essa tarefa, uma tática de confrontação permanente e interessada com o peemedebismo que o sustenta.
A tática da queda de braço é nova. Mas, tal como a tática de Lula de contornar vetos, a de Dilma não muda a estrutura fundamental da política brasileira. Pelo contrário, mantém o peemedebismo do sistema político atuante e unido para fazer face à confrontação permanente proposta pela presidente.
De modo que, do ponto de vista da democracia que se está construindo, o fundamental não é conjeturar sobre as chances de uma tática como a da queda de braço ser ou não bem-sucedida. Isso pode ajudar a explicar o funcionamento da política hoje, mas não altera fundamentalmente sua lógica.
Nos últimos 16 anos, o País realizou duas pequenas revoluções, uma econômica, outra social. Conseguiu fazer isso deixando intocado o peemedebismo de seu sistema político. Hoje, entretanto, qualquer novo avanço democrático depende de uma pequena revolução política. Como em toda democracia realmente viva, o que importa de fato é conseguir sair do pântano político em que estamos metidos puxando pelos próprios cabelos.
Marcos Nobre é professor de filosofia política da UNICAMP e pesquisador do CEBRAP, onde coordena o núcleo direito e democracia. Autor de Curso livre de teoria crítica (Papirus editora)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS
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