Toffoli persiste em desmonte metódico da Lava-Jato
O
Globo
Com
mais uma decisão monocrática, ministro do Supremo anulou todos os casos
relativos ao ex-ministro Palocci
Em mais uma decisão monocrática, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli anulou todos os processos contra Antonio Palocci no âmbito da Operação Lava-Jato. Ex-ministro da Fazenda de Luiz Inácio Lula da Silva e da Casa Civil de Dilma Rousseff, Palocci foi condenado em 2016 por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Ainda que ele tivesse confessado tudo em delação às autoridades, sua defesa entrou com pedido junto ao Supremo para que recebesse o mesmo tratamento dado ao empresário Marcelo Odebrecht. Em maio do ano passado, Toffoli tornou nulos os atos praticados pelo então juiz Sergio Moro contra Odebrecht, decisão depois referendada pela maioria da Segunda Turma da Corte.
O
desmonte metódico da Lava-Jato por Toffoli começou no fim de 2023, quando ele
anulou todas as provas do acordo de leniência da Odebrecht, entre elas os
sistemas do Departamento de Operações Estruturadas, que mantinha a
contabilidade do pagamento de propinas. Depois, também suspendeu uma multa de
R$ 10,3 bilhões aplicada ao grupo J&F (não ligada à Lava-Jato) e outra de
R$ 8,5 bilhões da Odebrecht. Segundo o relatório Retrospectiva Brasil, da
Transparência Internacional, Toffoli chegou a proibir procuradores de tomar
depoimentos de funcionários da Odebrecht para auxiliar investigações
internacionais.
O
principal argumento usado por Toffoli nos casos envolvendo a Lava-Jato é aquilo
que ele costuma chamar de ação “conjunta e coordenada” entre Moro e Ministério
Público. A mistura de papéis, no entender dele, prejudicou a defesa dos réus e
o devido processo legal. O ponto defendido por Toffoli é da mais alta
relevância. Não se resume ao combate à corrupção nem a processos envolvendo
ex-ministros, empresários ou executivos. Mas o argumento de que todos os
processos da Lava-Jato padecem de uma espécie de “pecado original” é frágil. Os
eventuais desvios de Moro não implicam que tudo deva ser anulado, obliterando a
operação que desbaratou um sem-número de esquemas bilionários e expôs a relação
promíscua entre Estado e empreiteiras no Brasil.
Além
disso, a convicção de Toffoli de que houve ação combinada entre o julgador e a
acusação está baseada em mensagens trocadas por aplicativo, obtidas de forma
ilegal. Uma operação policial para investigar a invasão digital desse
aplicativo acabou por legalizar as mensagens capturadas ilegalmente. Pela lei,
desde que sejam usadas como prova para defesa dos acusados, o “pecado original”
nesse caso pode ser perdoado.
Naturalmente
as decisões de Toffoli despertaram reações. Procuradoria-Geral da República,
Ministério Público de São Paulo e Associação Nacional dos Procuradores da
República apresentaram recursos. Mas até o momento todos têm sido rejeitados na
Segunda Turma. Ainda que isso garanta solidez jurídica às decisões, o desmonte
da maior operação contra a corrupção da História do Brasil não pode ser fato
trivial. Os beneficiados confessaram crimes, houve prova material do dinheiro
desviado e até devolução. Com a Lava-Jato, o Brasil havia se tornado um
expoente no combate aos corruptos. Agora, com as decisões tomadas por Toffoli,
voltou a ser símbolo de impunidade.
Escândalo
de criptomoeda põe em risco conquistas do governo Milei
O
Globo
Depois
do sucesso inédito no combate à inflação, argentino é acusado de manipular
ativo digital para lucrar
A Argentina de Javier Milei continua
a surpreender. Depois dos avanços do primeiro ano de governo, quando ele obteve
sucesso ao derrubar uma inflação acima de 200%, Milei se envolveu
desastradamente no lançamento de uma criptomoeda chamada
Libra. Numa imitação do que fez Donald Trump nos Estados Unidos ao lançar sua
memecoin, ele enalteceu a Libra em suas redes sociais na semana passada,
levando pelo menos 44 mil investidores a apostar nela.
“A
Argentina liberal está crescendo!!!”, postou Milei ao mencionar a Libra. Em
pouco tempo, o valor do criptoativo subiu de US$ 0,25 para R$ 5,54. Uma hora
depois, US$ 107 milhões investidos em Libra foram sacados por ordem de poucas
carteiras digitais, que representavam 82% dos recursos aplicados. Em seguida, o
valor desabou, e, à meia-noite da última sexta-feira, Milei apagou suas
mensagens sobre a moeda e deixou registrado que “não estava ciente dos detalhes
do projeto”, com o qual afirmou não ter “qualquer relação”.
O
objetivo da propaganda despropositada ainda é incerto. A oposição tem feito
circular a versão segundo a qual não era outro senão o mais comezinho: lucrar.
Um dos sócios da empresa que criou a Libra divulgou mensagens levantando a
suspeita de que a irmã e conselheira do presidente, Karina Milei, recebeu
propina na operação. As evidências não são conclusivas. Mesmo assim, como
resultado, Milei já é processado na Justiça sob a acusação de ter induzido
incautos a perder dinheiro — e enfrenta uma crise política no Parlamento de
desfecho imprevisível.
O
episódio abriu uma oportunidade para a oposição peronista tentar ganhar força.
Milei assumiu em dezembro de 2023 graças à aposta do eleitorado em seu discurso
ultraliberal para tirar a Argentina do atoleiro econômico. Executou um dos mais
drásticos ajustes fiscais da história argentina e, apesar dos inevitáveis
efeitos colaterais em políticas públicas e programas sociais, obteve forte
apoio popular.
Em
janeiro, a inflação mensal foi de 2,2%, a menor taxa desde 2020. Nos últimos 12
meses, ela chegou a 84,5%, ante 211,4% em 2023. Nem mesmo o corte de 74% no
orçamento dos refeitórios populares abalou a popularidade de Milei. Economistas
argentinos projetam crescimento entre 5% e 6% para este ano.
Milei espera que tudo isso se transforme em votos para candidatos do seu partido, A Liberdade Avança, nas eleições legislativas previstas para outubro. Ao mesmo tempo, a oposição já se aproveita do escândalo da criptomoeda para instaurar uma comissão de inquérito no Congresso e fala em adiar o pleito. Mesmo que tudo se esclareça e Milei consiga escapar, um dos raros momentos de relativa calmaria política na Argentina se transformou em mais uma convulsão. O mais criativo dos ficcionistas teria dificuldades para inventar um roteiro tão surpreendente.
Trump
e Putin querem impor um acordo de paz à Ucrânia
Valor Econômico
Guerra pode estar chegando ao fim, mas não como se esperava: com a Rússia contida e a paz na Europa assegurada
Após
três anos de combates, que se completarão na segunda-feira, a guerra na Ucrânia
pode estar chegando ao fim, mas não como se esperava: com a Rússia contida e a
paz na Europa assegurada. O presidente Donald Trump chamou a si as negociações
e resolveu decidir a questão com a Rússia, deixando de lado o governo da
Ucrânia e os países europeus. Isso lança sérias dúvidas sobre a possibilidade
de se chegar a um acordo minimamente equilibrado e contrata problemas para o
futuro. Trump quer redesenhar o mapa de poder global, reabilitando a Rússia
como parceira, depois de ela usar o petróleo para deixar os europeus sem
energia, e desdenhando de parceiros históricos dos EUA na Otan, aliança militar
cujo futuro tornou-se indefinido.
A
Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022 sob a alegação de que a
aproximação do vizinho com o Ocidente era uma ameaça à sua segurança. A
operação não tinha objetivo declarado, mas as ações militares russas denotaram
a intenção de derrubar o governo do presidente Volodymyr Zelensky e de ocupar
uma fatia significativa, senão todo o território, da Ucrânia. A inesperada e
tenaz resistência ucraniana, porém, frustrou a expectativa de Moscou de uma
rápida vitória militar.
Não
se conhecem os números precisos, mas o conflito já matou mais de 12 mil civis
ucranianos e 400 russos. No lado militar, as perdas são enormes. Diferentes
fontes estimam que entre 60 mil e 100 mil ucranianos morreram. As estimativas
para as perdas russas são ainda menos confiáveis e vão de 160 mil a 223 mil
mortos. Forças russas ocupam hoje quatro províncias ucranianas (além da
Crimeia, tomada em 2014), ou cerca de 20% do território do país. Moscou anexou
essas regiões, mas essa anexação não é reconhecida pela imensa maioria da
comunidade internacional.
Após
conversar na semana passada com os presidentes Vladimir Putin e Zelensky, Trump
marcou uma primeira reunião em Riad, na Arábia Saudita, sem a Ucrânia e sem os
aliados europeus. Não houve decisão sobre a situação ucraniana, mas as
declarações após o encontro de Marco Rubio, secretário de Estado, e do próprio
Trump deram ideia de que nada de benéfico à Ucrânia sairá dali. Trump culpou
Zelensky pela guerra, disse que o dinheiro da ajuda americana “desapareceu”,
fez uma indecorosa proposta de exigir a exploração de terras raras em pagamento
pelo suporte ao esforço ucraniano na guerra, além de chamar o presidente da
Ucrânia de ditador.
Chama
a atenção a facilidade com que Moscou conseguiu seus principais objetivos até
agora. Putin desde o início exigiu negociar apenas com os EUA, e foi atendido.
Antes mesmo de a negociação começar, autoridades americanas já faziam
concessões. O secretário de Defesa, Pete Hegseth, deixou claro que a Ucrânia
terá de ceder território à Rússia. É evidente que a Ucrânia não vai recuperar
todo o território ocupado, mas admitir isso na largada é, como qualificou um
senador republicano, um “erro de principiante”.
Ao
menos outras duas exigências russas também foram precocemente aceitas por
Washington. A primeira é que a Ucrânia não seja admitida na Otan. A segunda é
que tropas da Otan não participem de uma eventual força de paz estrangeira na
Ucrânia. De quebra, o secretário Marco Rubio antecipou que, caso haja um
acordo, as sanções americanas à Rússia serão retiradas.
Apesar
das declarações americanas de que o governo ucraniano participará das
negociações, teme-se na Europa que os EUA negociem os termos de um acordo com a
Rússia e apresentem um fato consumado. Líderes europeus se reuniram nesta
semana para debater a humilhação de terem sido excluídos das conversas
iniciais, mas não está claro como podem reagir. O próprio Zelensky já afirmou
que a Ucrânia depende da ajuda militar e financeira americana, que pode secar
se Kiev rejeitar um acordo proposto pelos EUA.
Uma
trégua desbalanceada, que beneficie demais a Rússia, o agressor, poderia ser um
estímulo para novas aventuras militares de Putin. Putin é aliado de Pequim, que
tem contencioso semelhante com Taiwan, a quem sempre ameaça com a
“reintegração”. Trump arrisca ligar-se a um parceiro não confiável, e alienar
tradicionais aliados europeus.
A
guerra foi uma tragédia para Rússia e Ucrânia. Independentemente do acerto
territorial, ambos sairão do conflito diminuídos em quase todos os aspectos.
Economicamente, estarão mais pobres e precisarão gastar fortunas com a
reconstrução dos territórios devastados. Politicamente, a Rússia caiu na órbita
da China, e a Ucrânia no limbo de incertezas entre Moscou e o Ocidente.
Militarmente, as temidas forças russas fracassaram diante de um país mediano.
Em termos de segurança, a Rússia trouxe a Otan para mais perto de si, e não
mais longe, com a adesão à aliança de Suécia e da Finlândia.
Para
o resto do mundo, o fim do conflito pode trazer a redução dos preços de
petróleo e alimentos, que parecem já estar sendo precificados pelos mercados.
Mas é importante não encerrar essa tragédia com um acordo ruim, que poderia
ensejar novo desastre mais adiante.
Trump encurrala Ucrânia e atordoa aliados na
Europa
Folha de S. Paulo
Presidente causa tumulto capaz de impactar
ordem global em vigor desde 1945; perfil instável pode trazer reviravoltas
Donald Trump chegou
meramente ao primeiro mês de seu segundo mandato, mas o embaralhar de cartas
até aqui é inaudito na história dos Estados
Unidos. Talvez o começo do primeiro dos quatro termos de Franklin D.
Roosevelt, em 1933, seja comparável, mas ali tratava-se de construir um
arcabouço após a Grande Depressão de 1929. Trump só quer destruir, a começar
pela política externa.
Em uma semana, a
contar o intempestivo telefonema para Vladimir
Putin na quarta retrasada (12), deu um giro de 180 graus na abordagem
da Guerra da Ucrânia,
atordoou aliados europeus e praticamente rompeu com o ucraniano Volodimir
Zelenski.
Ele
chamou de "ditador sem eleições" o homem a quem os EUA deram
ao menos R$ 676 bilhões em ajuda, quando a lei veta pleitos com o país sob lei
marcial, um imperativo em invasões. Exigiu que Zelenski aceite a paz que russos
e americanos começaram a negociar sozinhos, sob pena de perder seu país.
Se a chance de cessar-fogo precisa ser
celebrada, Trump concede ao Kremlin condições para deixar o isolamento
decorrente de sua invasão em 2022 com
20% do país vizinho no bolso.
Não será a vitória acachapante que Putin
desejava, mas um triunfo. Astuto, o autocrata oferece em troca possibilidades
econômicas da Rússia a
Trump.
As razões do conflito são multifatoriais, e a
visão russa acerca da expansão da aliança militar Otan não é
ilógica. Desde 2007, Putin vem desenhando sua reação e não foi ouvido, o que
não anula o fato de seus tanques terem cruzado a fronteira. Zelenski não é
santo, mas foi atacado.
Recompensar a política de força, algo
admirado por Trump, significa abrir uma caixa de Pandora. Homens fortes,
ditadores e autocratas, todos irão sentir o bafo da impunidade emanando do
cinismo da nova Casa Branca.
Isso desafia a ordem mundial estabelecida
após o fim da Segunda Guerra, em 1945. As estruturas econômicas de Bretton
Woods, o Conselho de Segurança da ONU, tudo avança
para a caducidade.
Os EUA, como eixo central do sistema, o
sustentaram, e não por altruísmo. Ao longo dos anos, atores como a própria
Rússia, Brasil e China pediram
a sua reforma, quase sempre de forma quixotesca. Agora, um americano assumiu a
tarefa. Trump, contudo, não tem um plano coerente para esse novo mundo.
Desde 1945, o poder dos EUA se fazia pelo
manejo de alianças, agora alienadas na Europa. Se a
crítica de que o continente acomodou-se sob o guarda-chuva americano é correta,
o republicano não parece fazer do planeta um lugar mais seguro.
Dado a notória instabilidade do presidente,
reviravoltas sempre são possíveis, para depois serem vendidas como grande senso
negociador, mas o esgarçamento da tessitura geopolítica nesta semana pode vir a
gerar um caminho sem volta. E o grande embate, no mundo tarifário com a rival
China, ainda nem começou.
As novas frentes do crime organizado
Folha de S. Paulo
Estima-se que 42% da receita de facções venha
da venda de ítens como bebidas e ouro; é preciso destrinchar financiamento
O poder público brasileiro precisa ficar mais
atento à reconfiguração dos negócios do crime organizado. Apesar de o tráfico
de drogas ilícitas
ainda ser uma atividade rentável, e geradora de violência,
facções têm atuado cada vez mais na comercialização de outros produtos, seja
por meio do contrabando ou
para lavagem de dinheiro.
Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública estima que, em 2022, esses grupos criminosos faturaram R$
146,8 bilhões no mercado de combustíveis, ouro, cigarros e bebidas —o
que representa 42% de sua receita total, de R$ 348,1 bilhões. Tal montante
excedeu em quase dez vezes a cifra obtida com cocaína, projetada em R$ 15,2
bilhões (4% do total).
A maior fonte de receitas são os crimes
cibernéticos e roubos de celulares, que renderam R$ 186,1 bilhões —53% do
acumulado.
A diversificação dos negócios das facções não
é novidade, mas trata-se do primeiro estudo dedicado a mensurar a inserção do
crime na economia formal.
Além da alta demanda por esses produtos,
facções têm invadido outros setores devido a penas mais leves previstas para
infrações como contrabando, fraude e sonegação. Ademais, são formas de esconder
o dinheiro que ganham ilegalmente.
Por óbvio, as perdas para os cofres públicos
são significativas. De acordo com o estudo, cerca de R$ 72 bilhões deixaram de
ser arrecadados em 2022 devido ao volume estimado de bebidas contrabandeadas e
falsificadas; no caso da venda ilegal de combustíveis, em torno de R$ 23
bilhões.
Com faturamento nababesco, as organizações
expandem seu poder e raio de ação, elevando indicadores de violência, não
apenas nos grandes centros urbanos.
O relatório aponta ganhos de R$ 18,2 bilhões no comércio de
ouro. A associação entre o tráfico e o garimpo fez
com que, em 2022, a taxa de homicídios na Amazônia Legal
(33,8 por 100 mil habitantes) fosse
45% maior do que a média nacional (23,3).
Membros do Comando Vermelho (CV) e do
Primeiro Comando da Capital (PCC) já estão
atuando em 178 dos 772 municípios da região, impactando a vida de 59% da
população local.
O cenário revela que, para combater facções,
não bastam ações teatrais de policiamento ostensivo, com frequência violentas e
sem resultado efetivo.
Governos nas três esferas precisam
implementar investigação com inteligência e tecnologia para destrinchar teias
econômicas. É imprescindível que o caminho do dinheiro seja traçado, e as
fontes que jorram recursos ao crime sejam cortadas pela raiz.
Os EUA contra o mundo livre
O Estado de S. Paulo
Trump força a capitulação da Ucrânia,
presenteia Putin e sacrifica a aliança com os europeus, deixando claro que não
se pode mais contar com os EUA para defender os valores ocidentais
Nenhum presidente americano nos 80 anos que
nos separam do fim da 2.ª Guerra Mundial fez o que Donald Trump acaba de fazer,
isto é, hostilizar seus aliados na Europa, entregar dedos e anéis ao grande
inimigo dos europeus hoje, a Rússia de Vladimir Putin, e de quebra culpar a
Ucrânia por ter sido agredida pelos russos, animados por ambições obviamente
imperialistas – que até um mês atrás, antes da posse de Trump, teriam sido
prontamente rechaçadas pelos EUA.
É altamente improvável que todos os
antecessores de Trump desde 1945 estejam errados e ele, certo. A chamada “Pax
Americana” do pós-guerra foi construída sob a premissa de que as democracias se
ajudam umas às outras para conter os ímpetos totalitários dos inimigos do mundo
livre. Foi essa aliança que permitiu a tremenda prosperidade experimentada pelo
Ocidente nos anos seguintes, em particular nos EUA. Um mundo que partilha
valores comuns, como a liberdade, a democracia e o império da lei, tende a
resolver suas divergências com diálogo, e não pela força.
Isso acaba de mudar drasticamente. Com Trump,
a “Pax Americana” foi substituída pelo “Vale-Tudo Americano”. Doravante, não há
valores comuns a partilhar nem alianças a respeitar. É cada um por si. A única
certeza, num mundo assim, é que nada mais é previsível – e, como se sabe, a
imprevisibilidade é fatal, seja para os negócios, seja para o pleno
desenvolvimento econômico e social, seja para a necessidade de cooperação
internacional nos mais diversos âmbitos, da saúde ao ambiente.
E Trump demole a ordem internacional do
pós-guerra com requintes de insanidade. O presidente americano não só decidiu
que Putin pode ficar com o território que roubou da Ucrânia em sua guerra de
agressão sem ter que conceder nada em troca, como ainda chamou o presidente
ucraniano, Volodmir Zelenski, de ditador corrupto, ilegítimo e impopular,
demandando eleições, exatamente como quer Putin, para instalar na Ucrânia um
governo fantoche pró-Rússia.
O presente de Trump não poderia vir em melhor
hora para Putin. Embora claramente superior à Ucrânia em termos militares, a
Rússia enfrenta progressivo desgaste na guerra, que deveria ser fulminante, mas
já dura três anos, com efeitos deletérios para a economia do país.
O antecessor de Trump, o democrata Joe Biden,
acreditava que o reforço da aliança com a Europa e a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan) era o melhor modo de deter a agressividade da Rússia e
seus aliados autocráticos, nomeadamente a China, o Irã e a Coreia do Norte.
Trump, por sua vez, acredita que deter a Rússia seja um problema exclusivamente
da Europa. E é bem provável que, a despeito da confusão atual sobre qual seria
a melhor resposta a dar aos movimentos de Trump, os europeus já estejam razoavelmente
conscientes de que terão de organizar sua defesa sem os EUA pela primeira vez
em oito décadas.
Mas a perspectiva é ainda pior quando se
considera que os EUA não apenas decidiram se ausentar da Europa como resolveram
se juntar a uma autocracia, a Rússia, que deseja ardentemente desestabilizar o
continente para restabelecer o que um dia foi o império soviético, sem que os
europeus sejam capazes de detê-lo. Ou seja, em certo sentido, os EUA, sob
Trump, não apenas deixaram de ser aliados da Europa, como decidiram se tornar
seus rivais. Isso ficou claro quando o vice-presidente americano, J. D. Vance,
num discurso infame em Munique, disse que a maior ameaça à Europa não é a
Rússia, e sim o “inimigo interno” – referência aos governos democráticos
europeus que, na opinião de Vance, estão se afastando de “alguns de seus
valores mais fundamentais” ao reprimir extremistas, alguns dos quais
neonazistas. Vance, aliás, encontrou tempo para se reunir com a liderança da
extrema direita alemã, mas não com o governo alemão.
Dado que esse processo de desmonte da ordem
mundial do pós-guerra mal começou, é difícil prever seu desfecho. Mas uma coisa
ficou muito clara: como agora bem sabem os ucranianos e os europeus, não se
pode mais contar com os EUA para defender o mundo livre – pelo menos não
enquanto Trump estiver no poder.
Justiça não é vingança
O Estado de S. Paulo
Se bem recebido pela sociedade, o plano do
Ministério da Justiça e do CNJ para combater as violações dos direitos humanos
nos presídios pode levar a um Brasil mais seguro no futuro
O Ministério da Justiça e Segurança Pública e
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresentaram há poucos dias o plano Pena
Justa, que visa a “combater as violações sistemáticas dos direitos humanos no
sistema prisional brasileiro”. A começar pelo nome, autoexplicativo, a
iniciativa dos Poderes Executivo e Judiciário não poderia ser mais apropriada.
No Brasil, cumprimento de pena não raro se confunde, na prática, com uma
descabida vingança do Estado, dadas as condições sub-humanas a que estão
submetidos os presos, sejam criminosos condenados, sejam suspeitos aguardando
julgamento.
Ao contrário do que possam pensar os que
apregoam que violência se combate com mais violência, a sociedade só tem a
perder com presídios transformados em usinas de ódio e desejo de desforra.
Ademais, se o Estado quer realmente enfrentar o poder bélico e econômico das
organizações criminosas, não há saída que não passe, necessariamente, por uma
profunda transformação da realidade fática do sistema prisional, hoje dominado
por mais de 70 facções, sobretudo pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) e o
Comando Vermelho (CV). Como bem disse o ministro Luís Roberto Barroso,
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ, “se o Estado não for
capaz de acolher os detentos brasileiros, eles serão acolhidos pelas facções”.
A bem da verdade, o Pena Justa é uma medida
que cumpre a decisão do STF no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 347, que, por unanimidade, reconheceu um “estado de coisas
inconstitucional” no sistema prisional brasileiro pela “violação massiva” de
direitos fundamentais dos presos. O plano tem quatro eixos, segundo seus
formuladores: (i) enfrentar a superlotação dos presídios; (ii) aprimorar a
infraestrutura e os serviços destinados aos detentos, como saúde e educação;
(iii) otimizar os protocolos de saída do sistema carcerário após o cumprimento
de pena; e (iv) assegurar a reintegração dos egressos ao convívio social.
Cadeias superlotadas são um convite à
proliferação de doenças e à irrupção de rebeliões que, no limite, podem
culminar na fuga de presos perigosos e na morte de servidores públicos.
Oferecer condições de higiene e programas de educação para os apenados não é
mera concessão; é, antes, uma proteção para a própria sociedade, que receberá
de volta em seu seio cidadãos que, cumpridas suas penas, tendem a estar mais
afastados da reincidência. Por fim, o Pena Justa prevê mecanismos de oferta de
emprego aos egressos em obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o
que pode ser uma porta de entrada no mercado de trabalho formal.
Como se vê, são objetivos que a nada mais se
prestam senão ao cumprimento das leis e da Constituição, haja vista que, num
Estado Democrático de Direito, os criminosos perdem seu direito à liberdade, e
não sua dignidade como seres humanos. Para além do resguardo desse princípio
civilizatório, é sempre oportuno enfatizar que, no Brasil, não há pena de morte
nem de caráter perpétuo, de modo que, mais cedo ou mais tarde, todos os
encarcerados haverão de voltar a circular pelas ruas País afora. De qual espírito
estarão imbuídos ao saírem do cárcere, se de reconstrução de suas vidas ou de
destruição de outras, cabe à sociedade decidir. Afinal, não se chegou a esse
“estado de coisas inconstitucional” sem que houvesse, no mínimo, a indiferença
de parcela significativa dos cidadãos às condições degradantes de nossos
presídios.
Evidentemente, essa constatação em nada
minimiza a justa indignação da sociedade com a leniência do Estado no combate à
violência que tanto amedronta os brasileiros. Ao contrário. Trata-se de um
convite à reflexão de que o futuro dos egressos do sistema prisional é uma
responsabilidade de todos os cidadãos, pois tão mais seguro será o País quanto
mais consolidada estiver a compreensão de que reintegração social dos
criminosos não contumazes é mais eficaz do que a lei de talião.
O Pena Justa, portanto, não é apenas uma
medida de caráter legal e humanitário, mas uma estratégia inteligente para
reduzir a criminalidade e, principalmente, para a construção de um Brasil um
tanto mais civilizado.
O desafio do calor
O Estado de S. Paulo
Temperaturas elevadas impõem a urgência de
adaptar as cidades e dar alguma proteção aos cidadãos
O Brasil iniciou a segunda quinzena de
fevereiro enfrentando uma tenebrosa onda de calor, inicialmente concentrada no
Rio de Janeiro e em São Paulo e depois espalhada por partes significativas do
Centro-Oeste e de uma faixa da Região Sul. Os picos de temperatura, que no Rio
atingiram impressionantes 44 graus – recorde da cidade desde 2014, quando
começaram as medições do Alerta Rio –, deixam nítido que se está diante de algo
bem maior e mais grave do que as habituais cenas do verão do Sudeste brasileiro.
A sensação abrasadora em curso é mais do que uma sensação: é uma evidência real
da frequência e intensidade crescentes dos eventos climáticos extremos, de
consequências perigosas para a população.
Em paralelo ao calor, como se sabe, há também
as chuvas torrenciais, como as que inundaram recentemente regiões da cidade de
São Paulo. E além das enchentes, os incêndios florestais, como se viu ao longo
de 2024, tornaram-se igualmente mais frequentes e mais intensos. Alertas foram
agora emitidos para municípios de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais,
Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul, com previsão de temperaturas 5
graus acima da média climatológica.
Felizmente, cada vez menos autoridades e
especialistas discordam da relação entre tais eventos e o aquecimento global
decorrente das mudanças climáticas – exceto, claro, os negacionistas de praxe.
Há uma pletora de fatores adicionais, entre os quais a redução da cobertura das
nuvens, como demonstrou reportagem recente do Washington Post publicada
no Estadão, e efeitos específicos dos fenômenos El Niño e La Niña, entre
outros, mas o fato é que cenários sombrios para o futuro, projetados anos atrás
por cientistas, demonstram, ora vejam, que o futuro já começou. E há problemas
práticos e imediatos a resolver.
A adaptação das cidades ao novo clima é uma
dessas urgências. Significa readequar o sistema de saúde, sobretudo em áreas
urbanas, onde a exposição ao calor é maior. Ampliar áreas verdes e melhorar o
conforto térmico em residências e no transporte público também são outras
tarefas igualmente urgentes e essenciais. E preparar protocolos responsáveis e
ágeis, capazes de oferecer alguma segurança à população no enfrentamento das
ondas de calor.
Foi o que demonstrou, por exemplo, o prefeito
do Rio, Eduardo Paes. O Rio atingiu o nível de calor 4, segundo o protocolo
criado pela prefeitura. Nesse nível, prevê-se a abertura de 58 pontos de
resfriamento, parada para hidratação de funcionários que trabalham expostos ao
Sol e preparação da rede de saúde municipal para o aumento de atendimentos de
casos decorrentes de altas temperaturas.
Como disse o prefeito, a ciência permite um
grau muito maior de leitura dos dados meteorológicos e, consequentemente, de
previsibilidade, assim como de compreensão dos efeitos nocivos do excesso de
calor na saúde das pessoas. Problemas e adoecimentos que antes eram creditados
a outros fatores hoje são associados também às elevadas temperaturas.
O perigo é maior do que se imagina, com efeitos como agravamento de doenças já existentes e complicações sobre diferentes órgãos. São razões suficientes para os alertas e os protocolos adequados.
Covardia em escolas
Correio Braziliense
E quando a violência ocorre justamente na escola, cometida por quem deveria proteger os alunos? Neste mês, dois casos estarrecedores vieram a público
A escola é parte fundamental da rede de
proteção de crianças e adolescentes contra a violência. Para além da sua
atividade original, funciona como um canal de denúncia de abusos físicos,
psicológicos e sexuais, seja porque meninos e meninas se sentem mais seguros
para revelar a um educador o que estão sofrendo, seja porque os profissionais
de ensino podem perceber vestígios de que algo está errado. E como a imensa
maioria das agressões ocorre na casa das vítimas — praticadas pela própria
família —, por vezes é na escola que elas conseguem o socorro para livrá-las
dos maus-tratos.
Mas, e quando a violência ocorre justamente
na escola, cometida por quem deveria proteger os alunos? Neste mês, dois
casos estarrecedores vieram a público. E revoltam pela covardia, contra
vulneráveis que, de tão tenra idade, não conseguiam contar em casa a dor e a
humilhação a que eram submetidos.
Em Osasco (SP), a dona de uma creche
particular foi gravada dando sucessivos tapas no rosto de um menino de 2 anos e
sacudindo-o para forçá-lo a tomar uma vitamina durante o horário de lanche. Uma
ex-funcionária fez o vídeo e denunciou.
Em Duque de Caxias (RJ), o algoz também foi
um dono de colégio infantil. A gravação mostra a agressão a um menino de 4
anos. Ele dá um puxão forte no braço do garotinho, que cai. Em seguida, o
suspende e o coloca contra a parede. Depois, o sacode várias vezes e o joga no
chão. A mãe recebeu as imagens de um perfil fake. Ela disse que notava marcas
no filho e que ele chorava e pedia para não voltar à escola.
Covardias assim atingem também pais ou
responsáveis. Quando mandamos meninos e meninas para um estabelecimento de
ensino, acreditamos que eles estarão num local seguro, onde receberão
orientações para seu crescimento pessoal e serão respeitados.
Graças às denúncias, a polícia chegou a esses
dois abusadores. Não fosse isso, certamente seguiriam a torturar crianças.
Esperamos que a Justiça os faça pagar exemplarmente pelo crime covarde.
Crianças e adolescentes sendo machucados é um problema público, diz respeito a todos nós. E a denúncia tem a capacidade de livrá-los do sofrimento. Se souber ou desconfiar de maus-tratos, não deixe de agir. Denuncie. Isso pode fazer toda a diferença na vida de quem não consegue se defender sozinho.
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