Denúncia comprova necessidade de ataque ao CV
Por O Globo
Operação deveria ser seguida de ocupação permanente, com policiamento e serviços públicos
São estarrecedores os métodos do Comando Vermelho (CV) para manter o controle do complexo de favelas do Alemão e da Penha. A denúncia do Ministério Público que serviu de base à megaoperação das polícias do Rio na última terça-feira é repleta de revelações sobre práticas repugnantes da facção. Mensagens interceptadas demonstram que o CV montou uma estrutura complexa de domínio, altamente hierarquizada e militarizada, levada a cabo por meio de tortura, execuções sumárias determinadas por um “tribunal” do tráfico e até um departamento para cuidar de propinas pagas a agentes da lei. Não há como nenhuma sociedade civilizada tolerar esse abominável estado de exceção.
Sessões de tortura são usadas para punir
comparsas e moradores que não seguem as regras impostas pela facção. Num dos
casos citados, uma mulher é mergulhada numa banheira de gelo, sob a alegação de
ter brigado durante um baile funk. Noutro episódio, um homem amordaçado e
algemado, sem camisa, é arrastado por um carro. Enquanto implora por perdão, um
dos algozes debocha de seu sofrimento. Num terceiro, um traficante diz ter dado
uma “massagem” na vítima e pergunta se ela queria morrer logo. Perversidades
chegam a ser filmadas, tamanho o sentimento de impunidade.
Surpreende a organização da quadrilha. De
acordo com a denúncia, havia funções como “general de guerra”, “juiz do
tribunal do tráfico” e especialista em propinas pagas a policiais. Um dos
bandidos, que escapou ao cerco policial, era responsável por definir
estratégias de enfrentamento à polícia, incluindo monitoramento das tropas com
equipamentos sofisticados. Um dos chefes da facção ficava encarregado de
coordenar os “soldados” do tráfico e montar as escalas de plantão. Também
administrava eventos como bailes funk. O CV mantém regras rígidas para proteger
os chefes do tráfico em locais cercados de barricadas e dotados de armamento
pesado, que dificultam as operações policiais e a prisão dos bandidos.
A denúncia do MP deixa clara a necessidade da
operação para interromper o domínio cruel do CV. Não se pode admitir que grupos
sanguinários sequestrem extensões relevantes do território e instalem nesses
enclaves um Estado paralelo, onde não vigoram a Constituição e as leis que
regem os demais brasileiros. Autoridades têm obrigação de reprimir essas
organizações criminosas. Mas é fundamental que essas ações sejam permanentes e
não fiquem restritas às incursões policiais. Precisam ser seguidas de
policiamento de rotina e serviços como educação, saúde, transporte, urbanização
e moradia, como mostram todas as experiências internacionais bem-sucedidas para
vencer o crime organizado.
A demanda por serviços públicos nas
comunidades cariocas é enorme. Quando atendida pelo poder público, a população
responde com avidez. Basta lembrar que, das cerca de 600 mil vagas oferecidas
nas escolas municipais, 248 mil (41%) estão localizadas em áreas vulneráveis,
em geral sob o comando de facções ou milícias — e apenas 13 mil permanecem
desocupadas. Proporcionalmente, a demanda nessas áreas é maior que nas demais
regiões da cidade (favelas concentram 1,3 milhão de cariocas, ou 22% da
população). Não há indicador mais persuasivo de que a melhor forma de combater
a tirania das facções é levar ainda mais educação às áreas conflagradas, dando
outra perspectiva de vida às crianças.
Medidas aprovadas para setor elétrico serão
deletérias para o país
Por O Globo
Apesar de avanço ao limitar subsídios, lei oriunda de MP segue tendência de deteriorar a regulação setorial
Ao aprovar a Medida Provisória (MP) para o
setor elétrico na última quinta-feira, mais uma vez o Congresso penalizou o
consumidor, em benefício de interesses específicos. O texto aprovado traz, é
verdade, avanços, mas é sintomático que tenha mantido medidas que serão
deletérias.
A mais eloquente é a prorrogação dos
contratos de usinas a carvão até o final de 2040. De todos os combustíveis
fósseis, o carvão é o pior em emissão de gases de efeito estufa. O Brasil não
depende dele em sua matriz energética e poderia facilmente abrir mão. Não fosse
a pressão das usinas afetadas, seria possível fazer isso mais cedo, facilitando
o cumprimento das metas de emissões. Infelizmente, o Congresso se mostrou menos
sensível à realidade que à pressão dos geradores de Santa Catarina.
Esse nem é o item mais grave aprovado. O
incentivo às fontes alternativas — hoje desnecessário, dado o barateamento da
geração solar e eólica— fez proliferar pelo país painéis que captam a luz do
sol para transformá-la em eletricidade. A energia que
sobra é lançada na rede de distribuição sem custo, no modelo de geração
distribuída. Durante o dia, como faz sol, costuma haver excesso de geração, e o
Operador Nacional do Sistema é obrigado a cortar o fornecimento de fontes que
pode controlar, mecanismo conhecido como curtailment. Em geral o corte ocorre em grandes
usinas solares ou eólicas, já que os pequenos geradores estão fora do sistema.
A MP decidiu compensar essas usinas pelos cortes involuntários. Pode até
parecer justo, mas a conta será paga por todos os consumidores.
O certo seria reduzir incentivos à geração
distribuída, passando a cobrar pelo uso da rede. Em vez disso, o Congresso
punirá o consumidor com uma fatura estimada em R$ 7 bilhões, destinada a
financiar o custo da regulação deficiente criada pelos subsídios dados pelo próprio
Congresso.
Pelo menos, a nova lei oriunda da MP criou um
limite aos subsídios, um teto para o crescimento da Conta de Desenvolvimento
Energético (CDE) a partir de 2027 (neste ano, ela deverá chegar a R$ 50
bilhões). É sem dúvida medida positiva. Outra foi a autorização para que
pequenos consumidores possam contratar energia no mercado livre num período de
até três anos depois da entrada em vigor da lei. Isso aumentará a competição
entre fornecedoras, favorecendo o consumidor, que terá mais escolhas (como
ocorre com as operadoras de telecomunicações).
Por pressão do governo, foi retirada do texto a obrigatoriedade de contratar térmicas a gás em locais distantes do fornecimento — medida que encareceria a energia. Mas não dá para comemorar ainda. O lobby do gás é incansável. Esse dispositivo havia sido aprovado na lei de privatização da Eletrobras, e se revelou inócuo em razão de uma condicionante relativa ao preço. Depois voltou na lei sobre eólicas offshore e felizmente foi vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Agora, a esperança dos grupos de pressão é a derrubada do veto. Seria mais um desserviço ao país, coerente com a deterioração contínua que o Congresso tem promovido na regulação do setor elétrico.
Esqueletos
no armário estatal
Por
Folha de S. Paulo
Eletronuclear
tem como sócia a J&F, dos irmãos Batistas, e pede socorro financeiro ao
governo Lula
Setor
nuclear, que pode ser importante para transição energética e inteligência
artificial, não deveria sucumbir a resgates opacos
Mesmo
quando processos de privatização são levados a cabo, o entulho estatal do país
se mostra difícil de remover. Quase três décadas após a privatização da
telefonia, o governo federal ainda controla uma empresa chamada Telebras, cuja
serventia é um mistério para a maioria dos brasileiros.
Da
mais recente venda da Eletrobras,
em 2022, também sobrou um resíduo, a Eletronuclear, responsável pelo complexo
nuclear de Angra dos Reis. A empresa se tornou subsidiária de outra estatal, a
Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBPar),
também controladora de Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e Itaipu.
Esse
arranjo ganhou novos personagens sob Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
—e, previsivelmente, já ameaça o bolso do contribuinte.
Recentemente,
a Âmbar Energia, braço da J&F dos irmãos
Joesley e Wesley Batista, assinou contrato para adquirir a totalidade da
participação da Eletrobras (agora Axia Energia) na Eletronuclear, por R$ 535
milhões.
O
valor compreende 68% do capital total e 35,3% do capital votante da estatal. Em
troca, a Âmbar assumirá obrigações como aval a uma dívida de R$ 6,1 bilhões com
bancos públicos, além de garantia para emissão de R$
2,4 bilhões em debêntures para a extensão da vida útil de Angra
1.
A
entrada da iniciativa privada pode, em tese, abrir espaço para a expansão do
setor, mas não antes de serem resolvidos os graves problemas financeiros da Eletronuclear,
que tem as receitas das usinas operacionais devoradas por dívidas e obras
inacabadas.
O
entrave principal é Angra 3, iniciada nos anos 1980 e paralisada desde 2015,
que já consumiu R$ 12 bilhões em investimentos. Para a conclusão faltam R$ 23 bilhões,
segundo estimativas —já abandonar o projeto geraria prejuízo de R$ 21 bilhões.
No
ano passado, a Eletronuclear faturou R$ 4,7 bilhões líquidos e lucrou R$ 545
milhões, mas esses fluxos são insuficientes para cobrir os custos da usina
inacabada, serviços de dívida e despesas administrativas.
Com
a saída da Eletrobras, não haverá novos aportes e há pouca clareza sobre as
obrigações imediatas da Âmbar. É nesse contexto que surge o pleito de
aporte governamental de R$ 1,4 bilhão, formalizado em ofício à
ENBPar para saldar obrigações até o fim de 2025, como a Folha noticiou.
O
socorro cobriria dívidas com bancos e com a INB pelo fornecimento de
combustível nuclear. Os riscos óbvios são de novos prejuízos e confusão de
interesses públicos e privados.
De
forma mais ampla, o setor nuclear brasileiro, com base tecnológica sólida
herdada de décadas de investimentos, pode
ser uma alternativa para a transição energética, além de ter papel
no fornecimento de energia para centros de processamento de dados para inteligência
artificial.
Com
diretrizes estratégicas sob prerrogativa da União, a necessária modernização
regulatória não pode sucumbir a resgates opacos.
Alento
ambiental
Por
Folha de S. Paulo
Queda
no desmatamento fortalece governo Lula na COP30, mas falta muito para zerar
devastação até 2030
Além
do combate ao corte raso, são necessárias ações que contenham a degradação
florestal, impulsionada pela mudança climática
A
queda acumulada de 50% no desmatamento da Amazônia Legal
desde 2023, divulgada pelo governo federal na quinta-feira (30), confere mais
robustez às posições do Brasil na COP30 em Belém —principalmente à sua proposta
de implementar um fundo para a conservação de florestas tropicais.
Tal
ganho na seara das negociações alia-se aos benefícios oriundos da proteção
ambiental, como a preservação dos regimes de chuvas e da biodiversidade local.
De
acordo com o sistema Prodes do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe),
houve 11% de redução no desmatamento da Amazônia Legal de agosto de 2024 a
julho de 2025, em comparação com o ciclo anterior. Trata-se da
terceira menor devastação desde o início da série histórica, em
1988, mas abrangeu uma área não desprezível de 5.796 km².
Os
dados indicam que muito ainda precisa ser feito para que o governo Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT)
alcance sua meta de zerar o desmatamento até 2030 —o mais relevante e
desafiador compromisso para redução do efeito estufa do país, já que a maior
parte das emissões de CO² aqui vem da destruição de áreas verdes.
A
missão também envolve os outros biomas. No cerrado,
região de expansão da agropecuária, os números são mais preocupantes do que os
da Amazônia Legal.
Na
savana brasileira, 7.235 km² foram devastados entre agosto de 2024 e julho
deste ano —24,8% a mais do que na Amazônia Legal, que tem o dobro em
território. Desde 2023, a diminuição do desmate foi de 34,9%, abaixo da
alcançada na floresta.
De
todo modo, a orientação da gestão petista no campo ambiental, embora falha na
transição energética, marca uma ruptura com a deplorável política de Jair
Bolsonaro (PL). Em 2021, a devastação
na amazônia atingiu 13.038 km², maior patamar desde 2006.
Além
do combate ao corte raso por meio de fiscalização de atividades como garimpo e
extração de madeira ilegais, são necessárias ações
que contenham a degradação florestal, impulsionada pela mudança
climática, que resseca a mata e provoca incêndios.
O
sistema de incentivo
financeiro para captura natural de carbono, por meio de
reflorestamento, também é medida a ser considerada. Envolver o setor do agronegócio,
com conscientização sobre produção sustentável, também é fundamental, já que a
devastação e o aquecimento global impactam esse setor essencial da economia
brasileira.
Só com medidas contínuas e integradas em várias frentes a meta de desmate zero do governo Lula pode se tornar mais factível.
EUA e China adiam seu duelo
Por O Estado de S. Paulo
O armistício é frágil: a rivalidade apenas
muda de forma, o mundo segue preso à lógica da desconfiança e da fragmentação,
e a dinâmica da interdependência armada se consolida
O mundo suspirou de alívio. Em Busan, os
presidentes dos EUA, Donald Trump, e da China, Xi Jinping, anunciaram uma
“trégua comercial”. Por um ano, Washington suspenderá parte das tarifas e
Pequim adiará restrições às exportações de terras raras. Mas a pausa é volátil.
Nada de essencial mudou. A rivalidade sino-americana deixou de ser uma disputa
de tarifas para se tornar o eixo de uma nova era – a da interdependência
armada.
Trump apresenta o acordo como vitória
pessoal, e Xi, como demonstração de força paciente. Ambos fingem moderação, mas
nenhum recua. Trump precisa de uma foto de estabilidade para o eleitorado que
ele mesmo desestabilizou. Xi precisa mostrar que o Ocidente, dividido e
errático, já não dita as regras do comércio global. O resultado é um armistício
temporário entre contendores que se alimentam mutuamente: quanto mais
autoritária e autárquica se torna a China, mais nacionalista e protecionista se
tornam os EUA. E vice-versa.
Essa guerra de tarifas, controles e sanções
já não é um jogo de soma zero, mas de saldo negativo. Cada retaliação encarece
insumos, fragmenta cadeias e desacelera o crescimento global. A inflação
pressiona, a produtividade cai e a incerteza reina. O comércio, que já foi
instrumento de integração e prosperidade, converteu-se em arma geopolítica – em
vez de unir, passou a dividir.
No curto prazo, Pequim parece administrar
melhor o conflito. Ao transformar a interdependência em poder, Xi criou uma
rede de coerção sutil: quem quiser semicondutores, baterias ou ímãs raros
precisa da China. Trump usa o mesmo argumento para expandir tarifas e subsídios
que distorcem seu próprio mercado. O efeito é perverso: ao emular a China, os
EUA começam a se parecer com ela – menos abertos e inovadores, mais
arbitrários. O país que venceu a guerra fria em nome da liberdade econômica
experimenta agora o autoritarismo (mas sem o planejamento da China), o controle
(sem a eficiência), o nacionalismo (sem a coesão).
A tentativa de Trump de redesenhar o comércio
mundial a golpes de bravata, como se o século 21 fosse um tabuleiro de cassino,
é contraproducente: aliados humilhados, empresas desnorteadas e um sistema
internacional cada vez mais descrente das instituições criadas pelos próprios
EUA. A era do livre comércio – motor da prosperidade e da democracia nas
últimas sete décadas – cede lugar a um mundo de licenças, proibições e
chantagens cruzadas.
Pequim, por sua vez, colhe dividendos do caos
americano. Com a retórica inflamada de Trump, Xi Jinping pode apresentar-se
como o guardião da estabilidade e da previsibilidade. Mas se o Consenso de
Washington está moribundo, o “consenso de Pequim” não inspira confiança. O
crescimento chinês enfraquece, a repressão se intensifica e a inovação definha
sob o peso do controle estatal. A trégua de Busan é, portanto, o retrato de
dois gigantes que perderam o rumo: um tenta reconstruir muros que ele mesmo
derrubou; o outro ergue muralhas para esconder suas fragilidades.
Entre essas muralhas, o mundo se estreita. As
instituições multilaterais já não arbitram tensões; alianças se convertem em
transações. O comércio se reconfigura em blocos que competem mais para
sobreviver do que crescer. A fragmentação torna todos mais pobres.
Para países intermediários, o desafio é
resistir à lógica da divisão. A América Latina, e especialmente o Brasil, tem
algo a ganhar e muito a perder. Num cenário de tarifas e escassez, o Brasil
lucra com a demanda chinesa por soja, carne e minerais críticos. Mas a vantagem
é passageira. A longo prazo, o País arrisca-se a tornar-se fornecedor cativo de
commodities num mundo de cadeias encurtadas, em que o poder se mede não pela
abundância de recursos, mas pela capacidade de inovar e negociar com autonomia.
A trégua de Busan é menos o fim de uma guerra
que o intervalo entre dois atos. Sob a superfície de cordialidade, subsiste a
mesma lógica de desconfiança e competição existencial. Trump e Xi não fizeram
as pazes, só adiaram o duelo. O perigo é que, na próxima rodada, o gatilho
dispare sozinho – e o mundo descubra que, em tempos de interdependência armada,
ninguém ganha.
Instrumentalização da fé
Por O Estado de S. Paulo
Ao tratar evangélicos que se reuniram com
Lula como falsos cristãos, Silas Malafaia e Michelle Bolsonaro deixam claro que
fé ‘verdadeira’ é aquela que atende a seus interesses político-eleitorais
O recente encontro entre o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e o bispo Samuel Ferreira, líder da Assembleia de Deus
Madureira, deflagrou uma disputa que extrapolou as fronteiras da religiosidade
e avançou sobre o mundano terreno da política. A reunião – acompanhada pela
ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, e pelo advogado-geral da
União, Jorge Messias, um dos nomes cotados para ingressar no Supremo Tribunal
Federal (STF) – foi interpretada pela oposição bolsonarista como um gesto de
aproximação de Lula com o eleitorado evangélico. Se foi, o gesto é legítimo.
Afinal, Lula é o presidente de todos os brasileiros e, ademais, o chefe de um
Estado laico. Mas o que veio a seguir mostra o quanto certos líderes religiosos
exploram a fé alheia como reles instrumento de obtenção de poder político.
O fato de um pastor orar com o presidente da
República no Palácio do Planalto provocou uma reação furiosa da parte do
segmento evangélico alinhado ao bolsonarismo. Em um vídeo publicado em suas
redes sociais, o pastor Silas Malafaia, o mais estridente porta-voz desse
neopentecostalismo hiperpolitizado, acusou Samuel Ferreira, ainda que
indiretamente, de trair a “verdadeira fé cristã”. Aos berros, Malafaia afirmou
que “um verdadeiro cristão não apoia Lula”, como se a ele coubesse definir os
contornos da fé e determinar quem pode ou não manifestar suas predileções
políticas. Como é típico desse cidadão, Malafaia reivindicou o monopólio da
virtude e colocou a religião, mais uma vez, a serviço do projeto de poder que
ele defende.
Outra a afetar indignação pelo encontro entre
Lula e o bispo Samuel Ferreira foi Michelle Bolsonaro. Em tom cifrado, a
ex-primeira-dama publicou versículos bíblicos nas redes sociais que evocam o
conflito entre o “bem” e o “mal”. À luz de sua interpretação maniqueísta, orar
com o presidente, sobretudo na presença de outro evangélico cotado para ser
ministro do Supremo, equivale a firmar um pacto com o diabo. É irônico, para
dizer o mínimo. Em dezembro de 2021, a mesma Michelle celebrou efusivamente a
aprovação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça para o STF, indicado
pelo então presidente Jair Bolsonaro. A fé, naquele caso, servia como selo de
legitimidade. Agora, a bênção virou maldição apenas porque o País, ora vejam,
passou por uma democrática transição de poder. Nunca é demais lembrar que, em
uma república democrática, a religião se circunscreve à vida privada; a
política, à esfera pública.
A rusga entre os evangélicos expõe essa
mixórdia promovida por lideranças que buscam transformar fiéis em eleitores
cativos. O fenômeno não é novo, mas vem se agravando à medida que o campo
evangélico se consolida como uma força social de grande peso eleitoral. O Censo
2022 do IBGE mostrou que cerca de 27% da população brasileira se identifica
como evangélica. É natural, portanto, que um segmento dessa dimensão desperte o
interesse de políticos que vivem de votos. O problema é quando um evangélico
pretende falar em nome de todos os outros, como se formassem um bloco monolítico
e suas consciências e visões de mundo fossem uniformes. Ou pior: quando um
líder religioso se arvora em árbitro da fé, definindo o que significa ser um
“verdadeiro cristão”.
A liberdade religiosa é um dos pilares da
República. Mas, ao que parece, para alguns essa liberdade só é válida quando
serve a seus interesses políticos. Esse uso instrumental da religião é um dos
mais perversos traços da degradação política nacional. Ele subverte a
objetividade do debate público, transforma o púlpito em palanque e corrompe a
fé ao subordiná-la a desejos terrenos. Religiões prestam-se ao conforto
espiritual, não devendo ser manipuladas como instrumento de segregação
político-ideológica ou via de acesso ao poder institucional, no melhor cenário,
ou ao enriquecimento pessoal, no pior.
É legítimo que Lula busque diálogo com todos
os setores da sociedade, inclusive com as lideranças evangélicas, assim como é
legítimo que essas lideranças apresentem suas preocupações e reivindicações ao
governo federal. O que não é legítimo é instrumentalizar a fé alheia,
interditar a oração ou desconjurar quem pensa ou professa fé diferente.
O cadeado na porta arrombada
Por O Estado de S. Paulo
Após processo de regulação mal conduzido pelo
governo, bancos tentam coibir bets ilegais
A autorregulação da Febraban que facilita o
encerramento de contas de bets irregulares e de contas de laranjas usadas em
fraudes e golpes é a mais recente ação de combate à lavagem de dinheiro e
outros ilícitos financeiros que explodiram após a canhestra regulação do
mercado de apostas online no País. Um processo que deixou largas brechas que os
órgãos oficiais – e agora os bancos – tentam vedar.
A operações policiais deflagradas
simultaneamente há cerca de dois meses – Carbono Oculto, Quasar e Tank –, e que
revelaram a infiltração do Primeiro Comando da Capital (PCC) em negócios
formais, expuseram o emaranhado do crime cuja atuação no mercado financeiro é a
prova contundente de que a regulação dos jogos online foi mal feita. Como o
único objetivo do governo era aumentar a arrecadação de impostos a partir da
liberação das bets, ninguém em Brasília pareceu se preocupar com a
possibilidade de infiltração do crime organizado.
Recentemente, no 15.º Congresso de Prevenção
à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo, o presidente da
Febraban, Isaac Sidney, deixou clara a convicção de que foi um processo
precipitado. “O Estado errou bem a mão ao legalizar os jogos online”, disse
Sidney no evento, do qual participava também o delegado federal Ricardo Saadi,
que admitiu ter assumido em julho a presidência do Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf) justamente para conter a atuação do crime organizado no
sistema financeiro.
No mesmo dia, em entrevista à GloboNews, o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reconheceu a preocupação com as bets,
menos de um ano após a regulação ter sido concluída. “Esse tema está trazendo
muitos danos, inclusive de saúde, para a sociedade brasileira”, afirmou o
ministro, que tenta elevar o tributo de 12% instituído no ano passado e que as
bets passaram a pagar neste ano.
O esforço para fechar as contas de 2024
incluiu o processo de regulamentação, com o bônus de outorga de R$ 30 milhões
para cada operadora. Pelos dados da Secretaria de Prêmios e Apostas do
Ministério da Fazenda, 82 empresas estão autorizadas a operar. Os R$ 2,46
bilhões das outorgas, confirma-se agora, foi um preço baixo para uma operação
cercada de riscos, tanto para a saúde pública quanto para o sistema financeiro.
Com a autorregulação, os bancos tentam coibir
e punir eventuais práticas criminosas. As fintechs, que não são bancos, mas
estão autorizadas a operar serviços de contas digitais, deveriam adotar medidas
semelhantes. Até porque foi esse o caminho mais acessível encontrado pelo crime
para operações de lavagem de dinheiro.
Com lobby poderoso no Congresso, a bancada das bets é encabeçada pelo senador Ciro Nogueira (PP-PI), defensor declarado da legalização dos jogos. Os parlamentares avalizaram o avanço firme da jogatina e protagonizaram espetáculos constrangedores, como a rejeição integral do relatório da CPI que investigava possíveis ligações das casas de apostas com organizações criminosas e a promoção irregular por influenciadores digitais. Influenciadores foram tietados, 16 pedidos de indiciamento, desprezados, e o jogo, liberado.
Trump, Xi Jinping e as tensões mundiais
Por O Povo (CE)
O presidente dos Estados Unidos escalou suas
ameaças, dizendo que vai retomar testes com armas nucleares, após moratória de
33 anos
Em um mundo conflagrado, o acordo comercial
negociado entre os presidentes da China, Xi Jinping, e dos Estados Unidos,
Donald Trump, contribui para a redução das tensões globais.
Ainda que a trégua seja provisória, com
duração de um ano, pode-se considerar um avanço, ao evitar maiores confrontos
entre as duas maiores economias do planeta, uma batalha que poderia resultar em
estilhaços que atingiriam todo o mundo.
Apesar da instabilidade de Trump, conhecido
por seus rompantes, o aperto de mão entre os dois líderes conseguiu acalmar os
mercados, reduzindo as incertezas, pelo menos por ora, para investidores e
empresas. O acerto entre as duas potências põe em perspectiva que outras
negociações — como vêm ocorrendo com o Brasil — possam chegar a um resultado que
contemple as partes em litígio, mostrando que a mesa de negociação é a melhor
forma de resolver pendências.
A forma de negociar de Trump, jogar alto na
tentativa de desnortear oponente, tornou-se conhecida, ganhando quem sabe
melhor maneira de responder a esse método, sem se curvar às ameaças e bravatas.
A China aguentou as pressões e sentou-se à mesa com a vantagem das terras raras
e de ser grande compradora de soja dos EUA.
Trump concordou em reduzir suas tarifas em
dez pontos percentuais aos produtos chineses, suspendendo também as taxas sobre
navios do país oriental. Xi Jinping comprometeu-se a comprar mais produtos
agrícolas dos Estados Unidos, incluindo a soja, além de algumas promessas
vagas.
Análise publicada no The New York Times
avalia que Xi Jinping saiu mais forte da reunião, apesar de Trump ter-se
apresentado como vitorioso. Ao fim do encontro, "soando como se desse uma
lição, Xi disse a Trump que as 'recentes reviravoltas' da guerra comercial
deveriam servir de aprendizado para ambos".
Mas a questão é que, se por um lado,
especialmente o econômico, Trump parece colaborar para manter relações
amistosas entre as nações, no campo político suas atividades vão em direção
contrária, contribuindo para o aumento das tensões internacionais.
É o caso da pressão que o governo americano
faz contra o presidente Nicolás Maduro, enviando navios de guerra e forças
militares para o Caribe, como forma de pressionar o governo da Venezuela, sem
levar em conta o risco de desestabilizar toda a região. Com a desculpa de
combater o narcotráfico, os EUA já afundaram 15 embarcações, supostamente
transportando drogas, matando cerca de 60 pessoas, desafiando leis
internacionais.
Esta semana, Trump escalou em suas ameças,
dizendo que vai retomar testes com armas nucleares, depois de uma moratória de
33 anos. Ele alega que "outros países" estão procedendo da mesma
maneira, mas não ha evidências disso.
O razoável seria que Trump agisse, em qualquer esfera, de maneira civilizada e democrática, porém, seria esperar demais de um incendiário inconsequente.
Momento decisivo no combate às facções
Por Correio Braziliense
Falta ao país um instrumento institucional
capaz de integrar permanentemente as forças de segurança federais e estaduais.
Divergências devem ser discutidas, não usadas como pretexto para paralisia
O Brasil vive um momento crucial no
enfrentamento ao crime organizado. A Operação Contenção, deflagrada nos complexos
do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, deixou mais de 100 mortos — incluindo
quatro policiais — e expôs, de forma trágica, a falência de uma política de
segurança pública baseada apenas na força bruta. O governador Cláudio Castro
(PL) tenta justificar a ação com o argumento de que seria necessário
"retomar territórios" dominados pelo Comando Vermelho. Mas a exibição
de listas de suspeitos mortos não substitui a ausência de estratégia. O Estado,
quando mata sem distinção, renuncia ao seu papel civilizatório e reforça o
poder simbólico das facções.
Diante da repercussão nacional e
internacional do massacre, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e o
governador Cláudio Castro chegaram a um acordo para criar um Escritório de
Combate ao Crime Organizado, em caráter emergencial. O órgão, que funcionará
como um fórum permanente de diálogo e coordenação operacional, será dirigido
pelo secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, e pelo
secretário estadual, Victor Santos. Sua missão é acompanhar exclusivamente a
situação do Rio, promover ações conjuntas entre as forças federais e estaduais
e reduzir a burocracia que impede respostas rápidas.
A criação do escritório é um ponto positivo
em meio à tragédia. Mostra que os governos federal e estadual entenderam que a
guerra isolada é inútil, e que o crime organizado, hoje presente em
praticamente todos os estados, exige resposta articulada e contínua. O Comando
Vermelho (CV), o Primeiro Comando da Capital (PCC) e outras facções atuam como
redes empresariais criminosas, controlando rotas de tráfico, contrabando e
lavagem de dinheiro. Contra essa estrutura nacional, apenas a União pode
coordenar uma política integrada de inteligência, finanças e fronteiras.
Nos últimos meses, o governo federal adotou
medidas concretas nessa direção. Lula sancionou a Lei nº 14.875/2025, que
endurece as penas e amplia a proteção de agentes públicos e processuais,
permitindo à Polícia Federal (PF), à Receita e ao Coaf rastrear fluxos
financeiros das facções. A PF, por sua vez, vem conduzindo operações de
inteligência e asfixia econômica, bloqueando milhões de reais de contas ligadas
ao tráfico e ao crime cibernético. São ações silenciosas, mas eficazes — em
contraste com a política da morte e do espetáculo.
Ainda assim, falta ao país um instrumento
institucional capaz de integrar permanentemente as forças de segurança federais
e estaduais. Essa é a função da Proposta de Emenda Constitucional que cria o
Sistema Único de Segurança Pública (Susp), de autoria do Ministério da Justiça.
O Susp prevê coordenação centralizada da União, compartilhamento de dados,
capacitação integrada e fundos próprios, o que garantiria continuidade das
ações independentemente de governos e conjunturas eleitorais.
Apesar da resistência de governadores da oposição — entre eles, o próprio Castro —, o escritório criado no Rio pode ser o embrião prático do Susp, mostrando que a integração é viável. O que se espera agora é que o Congresso avance com maturidade na tramitação da PEC. Divergências devem ser discutidas, não usadas como pretexto para paralisia. A segurança de milhões de brasileiros não pode ser refém de agendas partidárias. O país precisa escolher entre a inteligência e a barbárie. A morte de mais de 100 pessoas no Rio, entendida como um êxito operacional, é um fracasso civilizatório.

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