Correio Braziliense
O ódio hoje é real. E deve acabar. Ele é a
semente que desponta como o instrumento de divisão não só dos políticos, como
do povo brasileiro
Eu, muitas vezes, em entrevistas, artigos,
disse que, ao longo da vida, nunca tive capacidade de sentir ódio. E isso
considero que me fez e faz muito bem. O ódio traz como consequência maior o
ressentimento, e este, a amargura, que faz muito mal a nós próprios e deforma o
nosso modo de viver.
Conheci um homem que tinha uma alma pura, o deputado Djalma Marinho. Era uma figura muito conhecida e respeitada na Câmara dos Deputados. Foi candidato a presidente da Casa. Perdeu. Eu e o deputado Nelson Marchezan fomos a sua casa prestar-lhe solidariedade. Com o meu jeito de não cultivar sentimentos negativos, disse-lhe: "Djalma, não guarde ressentimentos." Ele me respondeu: "Sarney, eu não guardei dinheiro na vida, que é coisa boa, lá vou guardar ódio e ressentimento, que não prestam para nada?". Foi ele que, depois, na comissão que presidia, recusou-se a cumprir uma ordem do governo para processar o deputado Moreira Alves, em 1968, quando o país estava sob as normas do AI-5. Renunciou ao cargo de presidente e, repetindo o espanhol Calderón de La Barca, marcou a Casa com a célebre frase: "Ao rei tudo, menos a honra".
Mas quero falar também das consequências do
ódio, que muitos escritores registraram na literatura, como Tolstói, cuja
personagem feminina vai ao suicídio sucumbida pelo ódio; Dostoiévski, com o
alerta de que "o ódio alimenta o ódio"; Shakespeare, com o seu Otelo,
o Mouro de Veneza, cujo ciúme o leva a matar sua fiel esposa, Desdêmona, um
destino de ódio construído pelo relato falso de infidelidade por Iago, um
suboficial preterido numa promoção.
Também resultado desse mal, escrevo sobre a
divisão que vemos hoje no Brasil: a casa está dividida, justamente pelo ódio
que perpassa pela política brasileira. E uma casa dividida não prospera. Disso
já sabemos nós, cristãos.
Na política brasileira, eu, que por mais de
meio século a acompanho como espectador, interlocutor, participante e até como
protagonista, nunca vi uma época em que os homens se dividissem entre uns
adeptos do diabo e outros, de Deus. De tal modo que a luta política extravasou
para um nível em que uns são conduzidos à salvação e outros, condenados à
perdição.
Eu, pessoalmente, sempre tive adversários. E
a estes nunca considerei inimigos. Essa concepção de adversários como inimigos
foi proposta por Carl Schmitt, jurista oficial do Terceiro Reich, para quem a
política era uma guerra, na qual devíamos eliminar os contrários e levá-los até
a morte — como ocorreu na Alemanha com a morte de milhões de judeus. O ódio ao
inimigo também justificou, logo depois da Revolução Russa, a violência e
crueldade dos comunistas aos milhões de perseguidos e eliminados. O exemplo simbólico
e maior na Rússia talvez tenha sido o fuzilamento da família inteira do Czar
Nicolau II, que hoje pela Igreja Oriental foi considerado santo.
Eu era deputado no Rio de Janeiro quando ouvi
Carlos Lacerda, o maior orador a que assisti no parlamento, defender-se — no
processo que moveram contra ele por ter divulgado um telegrama secreto, que
envolvia o Jango e o Peron, num tempo em que os discursos tinham títulos, a que
chamou de A corrida dos touros embolados — daqueles que o acusavam de uma
maneira odienta, retrucando com a seguinte denúncia: "Aqui até o ódio é
fingido".
Não é o que ocorre hoje no Brasil. Situação
repelida por todos nós. O ódio hoje é real. E deve acabar. Ele é a semente que
desponta como o instrumento de divisão não só dos políticos, como do povo
brasileiro. Não é difícil encontrarmos dentro das famílias discussões
acaloradas e situações difíceis em que as posições são dogmáticas.
O ódio leva até ao que está sendo apurado no
processo sobre a inacreditável proposta de assassinato, a ser cumprido nas
figuras do presidente e do vice-presidente e de um ministro do Supremo Tribunal
Federal. O caso segue o devido processo legal — somos um Estado de Direito — no
Supremo e depois, tudo devidamente apurado, haverá a punição prevista na lei
dos responsáveis.
O ódio é danoso, cruel, indigno,
divisionista. Por julgá-lo assim, quero vê-lo extirpado do nosso país. Sou
partidário do diálogo, de ver o próximo como objeto de convergência e não da
divergência. Por tudo isso e mais, não há palavras suficientes que definam o
mal que o ódio produz. Somos irmãos e como irmãos devemos viver em paz. Que os
dirigentes e líderes do país viajem por outros caminhos que não este, o do
ódio. Por isso, só me cabe encerrar dizendo:
Ódio não!
*José Sarney — ex-presidente da
República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras
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