O Globo
Direitos humanos também são violados pela
ação violenta e cotidiana dos bandidos
A violenta ação policial nos complexos
da Penha e
do Alemão e o apoio popular amplo que ela recebeu nos colocam diante de um
dilema: após um período prolongado de deterioração da segurança pública, será
necessário flexibilizar o Estado de Direito para proteger com eficácia a
população? Em termos mais concretos: diante da falência completa da segurança
pública no Rio
de Janeiro, autorizaremos a polícia a cometer execuções extrajudiciais,
algumas das quais seriam ilegais até mesmo segundo o Direito de Guerra?
Ninguém viveu melhor esse dilema do que El Salvador. Nos anos 2010, a violência urbana no país era crítica, com a maior taxa de homicídios do mundo. Bairros inteiros eram controlados por gangues como Mara Salvatrucha ou Barrio 18. Em 2019, Nayib Bukele assumiu a Presidência do país e adotou um plano de controle territorial que envolveu emprego maciço de policiais e militares nos territórios controlados pelas gangues.
Em março de 2022, Bukele decretou um regime
de exceção suspendendo garantias constitucionais como liberdade de associação,
privacidade das comunicações e devido processo legal. Esse regime autorizava
detenções em massa sem mandado judicial e a ampliação do poder de prisão
preventiva. Ele tem sido renovado desde então e já se aproxima de três anos de
vigência contínua. El Salvador tem hoje a maior população na prisão do mundo,
com 1.600 presos por 100 mil habitantes.
Com essas medidas duras, Bukele reduziu a
taxa de homicídios por 100 mil habitantes, de 53 em 2018 para apenas 1,9 em
2024 (mesma taxa da Bélgica). Uma pesquisa de opinião conduzida em junho de 2025
constatou que a população dava nota média de 7,78 ao regime de exceção em seu
terceiro ano. O apoio popular parece sólido: 60% defendem prorrogá-lo por mais
tempo, e 65% dizem não ter medo do regime.
O sucesso de Bukele impõe um enorme desafio
político, e não apenas para os salvadorenhos. Em situações muito críticas, em
que o Estado perdeu controle do território, e a população vive sob o arbítrio
de bandos armados, ações que restaurem a ordem e a paz social suspendendo o
Estado de Direito parecem ter amplo apoio popular. Nessas situações extremas, a
população parece estar disposta a sacrificar a democracia liberal em troca da
segurança — e quem poderia condená-la?
A situação no Rio de Janeiro não está no
nível de El Salvador dos anos 2010, mas a perda de controle do território pelo
Estado é antiga e está consolidada. A violentíssima ação da polícia e a
tolerância pública ao que parecem ser execuções extrajudiciais mostram que
podemos estar no começo de nosso “momento Bukele”.
Diante da ação, a esquerda e os ativistas de
direitos humanos alegaram — acertadamente — que condenar as execuções
extrajudiciais da polícia não significa defender a impunidade dos bandidos, mas
proteger os cidadãos. Se a polícia puder executar suspeitos antes de qualquer
julgamento, ninguém estará a salvo — sem processos e sem proporcionalidade,
qualquer um pode se tornar alvo do arbítrio letal.
O que esses atores não perceberam, porém, é o
contexto. Nas questões de segurança pública, os direitos humanos não são apenas
ameaçados pelos excessos da polícia. Também são violados pela ação violenta e
cotidiana dos bandidos. Quando uma ação policial mais dura é vista pela
população como limite à ação dos criminosos, e a esquerda rapidamente se
levanta contra os excessos da polícia, ela passa a impressão de que se importa
mais com os direitos humanos dos bandidos que com os direitos humanos dos
trabalhadores.
A perda do domínio territorial por
organizações criminosas fortemente armadas traz um desafio adicional. É bem
razoável supor que a retomada do controle do território contra traficantes
armados de fuzis exija uso de força maior e parâmetros de controle que
autorizem o emprego de força letal.
Se não criarmos um arcabouço regulatório
novo, adequado ao desafio de retomar o controle do território dos grupos
criminosos armados, poderemos ver esse enfrentamento ser feito por meio da
suspensão — ou mesmo da supressão — de qualquer forma de controle, como
acontece em El Salvador. E o que não falta no Brasil são políticos oportunistas
aspirando a se tornar o próximo “ditador descolado” da América Latina.

 
 
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