sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Brasil vive momento Bukele, por Pablo Ortellado

O Globo

Direitos humanos também são violados pela ação violenta e cotidiana dos bandidos

A violenta ação policial nos complexos da Penha e do Alemão e o apoio popular amplo que ela recebeu nos colocam diante de um dilema: após um período prolongado de deterioração da segurança pública, será necessário flexibilizar o Estado de Direito para proteger com eficácia a população? Em termos mais concretos: diante da falência completa da segurança pública no Rio de Janeiro, autorizaremos a polícia a cometer execuções extrajudiciais, algumas das quais seriam ilegais até mesmo segundo o Direito de Guerra?

Ninguém viveu melhor esse dilema do que El Salvador. Nos anos 2010, a violência urbana no país era crítica, com a maior taxa de homicídios do mundo. Bairros inteiros eram controlados por gangues como Mara Salvatrucha ou Barrio 18. Em 2019, Nayib Bukele assumiu a Presidência do país e adotou um plano de controle territorial que envolveu emprego maciço de policiais e militares nos territórios controlados pelas gangues.

Em março de 2022, Bukele decretou um regime de exceção suspendendo garantias constitucionais como liberdade de associação, privacidade das comunicações e devido processo legal. Esse regime autorizava detenções em massa sem mandado judicial e a ampliação do poder de prisão preventiva. Ele tem sido renovado desde então e já se aproxima de três anos de vigência contínua. El Salvador tem hoje a maior população na prisão do mundo, com 1.600 presos por 100 mil habitantes.

Com essas medidas duras, Bukele reduziu a taxa de homicídios por 100 mil habitantes, de 53 em 2018 para apenas 1,9 em 2024 (mesma taxa da Bélgica). Uma pesquisa de opinião conduzida em junho de 2025 constatou que a população dava nota média de 7,78 ao regime de exceção em seu terceiro ano. O apoio popular parece sólido: 60% defendem prorrogá-lo por mais tempo, e 65% dizem não ter medo do regime.

O sucesso de Bukele impõe um enorme desafio político, e não apenas para os salvadorenhos. Em situações muito críticas, em que o Estado perdeu controle do território, e a população vive sob o arbítrio de bandos armados, ações que restaurem a ordem e a paz social suspendendo o Estado de Direito parecem ter amplo apoio popular. Nessas situações extremas, a população parece estar disposta a sacrificar a democracia liberal em troca da segurança — e quem poderia condená-la?

A situação no Rio de Janeiro não está no nível de El Salvador dos anos 2010, mas a perda de controle do território pelo Estado é antiga e está consolidada. A violentíssima ação da polícia e a tolerância pública ao que parecem ser execuções extrajudiciais mostram que podemos estar no começo de nosso “momento Bukele”.

Diante da ação, a esquerda e os ativistas de direitos humanos alegaram — acertadamente — que condenar as execuções extrajudiciais da polícia não significa defender a impunidade dos bandidos, mas proteger os cidadãos. Se a polícia puder executar suspeitos antes de qualquer julgamento, ninguém estará a salvo — sem processos e sem proporcionalidade, qualquer um pode se tornar alvo do arbítrio letal.

O que esses atores não perceberam, porém, é o contexto. Nas questões de segurança pública, os direitos humanos não são apenas ameaçados pelos excessos da polícia. Também são violados pela ação violenta e cotidiana dos bandidos. Quando uma ação policial mais dura é vista pela população como limite à ação dos criminosos, e a esquerda rapidamente se levanta contra os excessos da polícia, ela passa a impressão de que se importa mais com os direitos humanos dos bandidos que com os direitos humanos dos trabalhadores.

A perda do domínio territorial por organizações criminosas fortemente armadas traz um desafio adicional. É bem razoável supor que a retomada do controle do território contra traficantes armados de fuzis exija uso de força maior e parâmetros de controle que autorizem o emprego de força letal.

Se não criarmos um arcabouço regulatório novo, adequado ao desafio de retomar o controle do território dos grupos criminosos armados, poderemos ver esse enfrentamento ser feito por meio da suspensão — ou mesmo da supressão — de qualquer forma de controle, como acontece em El Salvador. E o que não falta no Brasil são políticos oportunistas aspirando a se tornar o próximo “ditador descolado” da América Latina.

 

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