“Que diabo de nome é esse?”, escreveu Engels a Marx quando líderes da esquerda alemã fundaram, em 1869, durante um congresso sindical na cidade alemã de Eisenach, um novo Partido que denominaram de ‘socialdemocrata’. O interessante na escolha do nome está em que ele congrega dois conceitos que até aquele então quase nunca apareciam juntos no discurso da esquerda europeia. O primeiro deles – o social – constituía o campo de ação propriamente dito dos ativistas que seguiam Marx e Engels. Já a democracia era uma espécie de terra incógnita para o movimento de esquerda, um sistema de governo pouco explorado pelos seus teóricos e avaliado primordialmente como um instrumento que a burguesia usava para legitimar seu domínio sobre os trabalhadores.
Mas com o advento do sufrágio universal, a esquerda passou a participar do processo eleitoral e teve assim oportunidade de divulgar seu programa para um público mais amplo. O nome socialdemocrata então se firmou. A nova agremiação política cresceu tanto eleitoralmente que de pouco mais de 100.000 votos obtidos em 1871, passou a quase 4.500.000 no início da Primeira Guerra Mundial, tornando-se o maior partido da Alemanha. Tal êxito eleitoral, que se repetiu em vários países europeus, acabou por convencer até os mais céticos que seria possível chegar ao socialismo através de eleições.
Entretanto, se as eleições serviram para
ampliar o apoio da socialdemocracia, fez por outro lado que ela perdesse seu
caráter estritamente classista; a participação em coalizões políticas abriu
acesso ao governo, mas em troca forçou os socialdemocratas a moderar seu
programa, que foi paulatinamente concentrando-se em reivindicações
não-radicais, tais como seguro-desemprego, elevação da tributação dos mais
ricos, direitos dos aposentados, crédito para pequenas empresas, etc.
Moderação nos objetivos políticos e
participação em coalizões governamentais, por sua vez, exigiram modificações no
ideário socialdemocrata. O programa de
nacionalização de empresas privadas, por exemplo, foi abandonado, e o Estado convocado
a desempenhar papel protagonista na distribuição da riqueza produzida pelo setor
privado. Saiu de cena, dessa forma, o Marx da “expropriação dos expropriadores”
para a entrada do Keynes da regulamentação estatal.
Como o cientista político Adam Przeworski
colocou em seu estudo sobre a socialdemocracia (“Capitalism and Socialdemocracy”,
1985), foi o keynesianismo que propiciou a teoria para que governos
socialdemocratas induzissem a produção privada a atender as necessidades da
sociedade como um todo. Nesse sentido, a socialdemocracia foi a força política
que mais apresentou leis e regulações em benefício dos trabalhadores, de forma
a atenuar as desigualdades criadas pelo mercado capitalista. Através de políticas anticíclicas, a
socialdemocracia logrou, mesmo em períodos de crise econômica, manter os níveis
salariais da população e estimular o crescimento econômico.
Como resultado dessas políticas, a partir da
década de 1930 – mas com mais força no período pós-segunda guerra mundial – os
países europeus, principalmente os nórdicos, conheceram um desenvolvimento
econômico e social sem precedentes, que entrou para a história como o welfare
state: o estado de bem-estar social. Embora a socialdemocracia não tenha sido a
única força política a participar da construção do welfare state, foi de longe
a mais importante delas. Não é exagero afirmar que o welfare state significou uma
verdadeira revolução, que marcou o apogeu da socialdemocracia.
Essa revolução, contudo, teve um caráter
silencioso. Por ela não ter tentado “assaltar os céus”, nem provocado
insurreições ou mudanças violentas de regime, como foram os casos das
revoluções francesa e russa, seu impacto histórico foi limitado. Realizada
através de reformas ao longo de vários anos, via parlamento, não causou grande
alarde.
Com o passar do tempo, o welfare state foi
perdendo seu poder de atração, na medida em que suas conquistas se
naturalizaram e a socialdemocracia foi se acomodando ao status quo capitalista.
O objetivo de atingir o socialismo foi esquecido, e as desigualdades e a
concentração de renda se acentuaram. Pela esquerda, passou a ser acusada de
transformar-se em “administradora do capitalismo”. Pela direita, a onda
neoliberal capitaneada pelo thatcherismo e o reaganismo a partir da década de
1980 atacou os socialistas pelo seu intervencionismo estatal, excesso de impostos
que inibiam investimentos e políticas econômicas que geravam déficits fiscais crônicos.
Além disso, a socialdemocracia teve de
enfrentar novos desafios colocados pela globalização dos mercados, o declínio
da indústria, a questão ambiental, a expansão das redes sociais e os efeitos da
revolução tecnológica no mercado de trabalho. Mais recentemente, tem enfrentado
a ascensão da extrema direita na Europa e a concorrência de movimentos
identitários. Aos olhos de boa parte do
eleitorado europeu, os socialistas e socialdemocratas passaram a ser vistos
como peças de museu, desconectados dos problemas das sociedades contemporâneas.
Pior ainda, com a queda do muro de Berlim, analistas
políticos filisteus se apressaram em destinar ao proverbial “lixo da história” não
só os comunistas, mas também os socialdemocratas. À época, um conhecido professor
de política e relações internacionais, entusiasmado com a nova pax americana,
chegou até a decretar o “fim da história” e o advento de uma eterna ordem
internacional liberal.
Entretanto,
o movimento comunista e a socialdemocracia tiveram trajetórias muito
diferentes. Enquanto esta última construiu, em vários países da Europa, um estado de bem-estar social através de
reformas democráticas, o partido comunista soviético criou um sistema
totalitário que, com Stálin no poder, tornou-se um dos mais brutais regimes de
exploração, alienação e opressão que a história conheceu, como atestam as
milhões de vítimas da coletivização forçada do campo e os milhões de
prisioneiros políticos – os zeks – obrigados a realizar trabalho escravo nos
grandes projetos de construção do regime soviético.
O desfecho político destas duas correntes tampouco
foi o mesmo. A URSS não resistiu à ineficiência econômica e à falta de
legitimação política de seu regime, e apesar das tentativas de reformas introduzidas
pela Perestroika, acabou ruindo como um castelo de cartas em 1991, frustrando
dessa forma aqueles que ainda enxergavam no sistema soviético o futuro
brilhante da humanidade. Já a socialdemocracia
enfraqueceu-se, vem perdendo influência política, mas continua mantendo forte
presença na Europa, liderando governos na Espanha e Inglaterra, e participando
da atual coalizão governamental na Alemanha. Reorganizada como Internacional Socialista desde
1951, ainda é a maior força política da esquerda, congrega mais de 150 partidos
ao redor do mundo. Os partidos
remanescentes do antigo movimento comunista, por sua vez, mudaram de nome e
adotaram posições próximas à socialdemocracia, como é o caso do Partido
Democrático de Esquerda na Itália ou do Cidadania no Brasil. Vale ainda assinalar
que, durante as reformas na URSS, alguns assessores de Gorbachev chegaram até a
estudar a história da socialdemocracia em busca de subsídios que pudessem
ajudar a Perestroika.
Ainda assim, é inegável que a
socialdemocracia necessita de um aggiornamento para responder aos desafios
colocados pelo capitalismo contemporâneo. Ideias para modernizar a
socialdemocracia, aliás, já vem sendo debatidas faz algum tempo por
intelectuais ligados ao movimento socialista. Algumas delas foram reunidas pelo
sociólogo inglês Anthony Giddens, que as denominou de “terceira via” – uma
alternativa tanto à socialdemocracia clássica como à ordem neoliberal
dominante. Para ele, essa modernização deve passar não só pela incorporação de
novas temáticas, como por exemplo, a ecologia, mas também pelo abandono de
certas características da socialdemocracia tradicional, tais como o
protecionismo econômico, o corporativismo e o excessivo intervencionismo
estatal.
Segundo Giddens, a socialdemocracia também
subestimou a capacidade do capitalismo de inovar, e por isso deve desenvolver
uma atitude mais positiva em relação aos valores do individualismo e do
empreendedorismo e valoriza o mercado como fonte essencial de informação para
as atividades econômicas. Embora rejeite a noção de estado mínimo dos
neoliberais, e preserve a noção de justiça social como norte da política
socialdemocrata, Giddens não vê mais sentido no socialismo como administração
da economia, nem em sua visão igualitária rígida, avaliando ainda que a
dicotomia esquerda x direita deve ser mantida, mas de forma “flexibilizada”.
As propostas de Giddens, e outras que surgiram
como resultado de debates entre vários intelectuais socialistas, parecem aproximar-se
perigosamente do ideário neoliberal, e revelam a dificuldade da
socialdemocracia em manter uma linha de equilíbrio entre justiça social e a desigualdade
de riqueza gerada pela economia capitalista, equilíbrio este que
tradicionalmente constituiu a differentia específica da socialdemocracia. Alguns
analistas mais à esquerda argumentam que existe um limite para as reformas que
o capitalismo pode absorver, para além do qual o sistema entraria em colapso.
Atingido esse limite, como teria sido o caso do estado de bem-estar social,
haveria uma reação da direita para deter ou reverter reformas sociais.
Esse
argumento, contudo, choca-se com a capacidade camaleônica que tem o capitalismo
de assumir as formas mais diversas e adaptar-se a contextos históricos muito
diferentes – desde democracias liberais até o regime comunista chinês –,
parecendo confirmar a boutade do teórico marxista Fréderic Jameson, de que “é
mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. No caso
específico dos governos socialdemocratas, é improvável que o welfare state tenha
chegado a ameaçar o sistema capitalista, até porque o objetivo de atingir o
socialismo já havia sido abandonado. Na verdade, o nível de reformas sociais
possíveis no sistema capitalista é uma questão da prática política, e não pode
ser determinada teoricamente de antemão.
Entretanto, como as propostas de Anthony
Giddens e outros parecem indicar, a modernização da socialdemocracia é sempre
direcionada no sentido de adaptar-se às novas facetas do capitalismo, e com
isso ela pode acabar perdendo sua identidade política. Por isso qualquer
renovação deve necessariamente seguir o aufheben da filosofia hegeliana, um
“superar conservando” em que a mudança eleva algo a um nível superior, mas ao
mesmo tempo preserva sua essência. E o que deve ser preservado na
socialdemocracia? Obviamente, sua origem como força de esquerda (ou
centro-esquerda) empenhada em reformas sociais em prol dos trabalhadores. Sem
isso, a socialdemocracia perde seu élan político e alguma outra força vai
tentar substituí-la na defesa daquela parcela da população que tradicionalmente
sempre apoiou os socialistas: os desfavorecidos
pelo ritmo vertiginoso de mudanças no mercado de trabalho. Na Europa, este
substituto já tem nome: a extrema-direita, que vem crescendo eleitoralmente
entre os mais pobres com sua política anti-imigração. A culpa pelo desemprego e
a diminuição de renda dos mais pobres passa então a ser atribuída à presença de
imigrantes e não às desigualdades geradas pelo sistema capitalista.
Retomar a revolução silenciosa vai exigir da
socialdemocracia muita criatividade política, no sentido de acompanhar as
mudanças do capitalismo e ao mesmo tempo trabalhar para direcioná-las em favor
da sociedade. E o único caminho para isso é insistir no reformismo. Como disse
certa vez Olof Palme, ex-ministro sueco, em um debate com outros líderes
europeus da internacional socialista, se a alternativa não é voltar a Stalin e
Lenin, então não há outra saída a não ser “seguir o rumo da tradição
socialdemocrata”.
*Paulo César Nascimento, professor de Ciência Política de Universidade de Brasília
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