domingo, 27 de julho de 2025

O futuro da “revolução silenciosa” - Paulo César Nascimento*

“Que diabo de nome é esse?”, escreveu Engels a Marx quando líderes da esquerda alemã fundaram, em 1869, durante um congresso sindical na cidade alemã de Eisenach, um novo Partido que denominaram de ‘socialdemocrata’. O interessante na escolha do nome está em que ele congrega dois conceitos que até aquele então quase nunca apareciam juntos no discurso da esquerda europeia. O primeiro deles – o social – constituía o campo de ação propriamente dito dos ativistas que seguiam Marx e Engels. Já a democracia era uma espécie de terra incógnita para o movimento de esquerda, um sistema de governo pouco explorado pelos seus teóricos e avaliado primordialmente como um instrumento que a burguesia usava para legitimar seu domínio sobre os trabalhadores.

Mas com o advento do sufrágio universal, a esquerda passou a participar do processo eleitoral e teve assim oportunidade de divulgar seu programa para um público mais amplo. O nome socialdemocrata então se firmou. A nova agremiação política cresceu tanto eleitoralmente que de pouco mais de 100.000 votos obtidos em 1871, passou a quase 4.500.000 no início da Primeira Guerra Mundial, tornando-se o maior partido da Alemanha. Tal êxito eleitoral, que se repetiu em vários países europeus, acabou por convencer até os mais céticos que seria possível chegar ao socialismo através de eleições.

Entretanto, se as eleições serviram para ampliar o apoio da socialdemocracia, fez por outro lado que ela perdesse seu caráter estritamente classista; a participação em coalizões políticas abriu acesso ao governo, mas em troca forçou os socialdemocratas a moderar seu programa, que foi paulatinamente concentrando-se em reivindicações não-radicais, tais como seguro-desemprego, elevação da tributação dos mais ricos, direitos dos aposentados, crédito para pequenas empresas, etc.

Moderação nos objetivos políticos e participação em coalizões governamentais, por sua vez, exigiram modificações no ideário socialdemocrata.  O programa de nacionalização de empresas privadas, por exemplo, foi abandonado, e o Estado convocado a desempenhar papel protagonista na distribuição da riqueza produzida pelo setor privado. Saiu de cena, dessa forma, o Marx da “expropriação dos expropriadores” para a entrada do Keynes da regulamentação estatal.

Como o cientista político Adam Przeworski colocou em seu estudo sobre a socialdemocracia (“Capitalism and Socialdemocracy”, 1985), foi o keynesianismo que propiciou a teoria para que governos socialdemocratas induzissem a produção privada a atender as necessidades da sociedade como um todo. Nesse sentido, a socialdemocracia foi a força política que mais apresentou leis e regulações em benefício dos trabalhadores, de forma a atenuar as desigualdades criadas pelo mercado capitalista.  Através de políticas anticíclicas, a socialdemocracia logrou, mesmo em períodos de crise econômica, manter os níveis salariais da população e estimular o crescimento econômico.

Como resultado dessas políticas, a partir da década de 1930 – mas com mais força no período pós-segunda guerra mundial – os países europeus, principalmente os nórdicos, conheceram um desenvolvimento econômico e social sem precedentes, que entrou para a história como o welfare state: o estado de bem-estar social. Embora a socialdemocracia não tenha sido a única força política a participar da construção do welfare state, foi de longe a mais importante delas. Não é exagero afirmar que o welfare state significou uma verdadeira revolução, que marcou o apogeu da socialdemocracia.

Essa revolução, contudo, teve um caráter silencioso. Por ela não ter tentado “assaltar os céus”, nem provocado insurreições ou mudanças violentas de regime, como foram os casos das revoluções francesa e russa, seu impacto histórico foi limitado. Realizada através de reformas ao longo de vários anos, via parlamento, não causou grande alarde.

Com o passar do tempo, o welfare state foi perdendo seu poder de atração, na medida em que suas conquistas se naturalizaram e a socialdemocracia foi se acomodando ao status quo capitalista. O objetivo de atingir o socialismo foi esquecido, e as desigualdades e a concentração de renda se acentuaram. Pela esquerda, passou a ser acusada de transformar-se em “administradora do capitalismo”. Pela direita, a onda neoliberal capitaneada pelo thatcherismo e o reaganismo a partir da década de 1980 atacou os socialistas pelo seu intervencionismo estatal, excesso de impostos que inibiam investimentos e políticas econômicas que geravam déficits fiscais crônicos.

Além disso, a socialdemocracia teve de enfrentar novos desafios colocados pela globalização dos mercados, o declínio da indústria, a questão ambiental, a expansão das redes sociais e os efeitos da revolução tecnológica no mercado de trabalho. Mais recentemente, tem enfrentado a ascensão da extrema direita na Europa e a concorrência de movimentos identitários.  Aos olhos de boa parte do eleitorado europeu, os socialistas e socialdemocratas passaram a ser vistos como peças de museu, desconectados dos problemas das sociedades contemporâneas.

Pior ainda, com a queda do muro de Berlim, analistas políticos filisteus se apressaram em destinar ao proverbial “lixo da história” não só os comunistas, mas também os socialdemocratas. À época, um conhecido professor de política e relações internacionais, entusiasmado com a nova pax americana, chegou até a decretar o “fim da história” e o advento de uma eterna ordem internacional liberal.

Entretanto, o movimento comunista e a socialdemocracia tiveram trajetórias muito diferentes. Enquanto esta última construiu, em vários países da Europa,  um estado de bem-estar social através de reformas democráticas, o partido comunista soviético criou um sistema totalitário que, com Stálin no poder, tornou-se um dos mais brutais regimes de exploração, alienação e opressão que a história conheceu, como atestam as milhões de vítimas da coletivização forçada do campo e os milhões de prisioneiros políticos – os zeks – obrigados a realizar trabalho escravo nos grandes projetos de construção do regime soviético.

O desfecho político destas duas correntes tampouco foi o mesmo. A URSS não resistiu à ineficiência econômica e à falta de legitimação política de seu regime, e apesar das tentativas de reformas introduzidas pela Perestroika, acabou ruindo como um castelo de cartas em 1991, frustrando dessa forma aqueles que ainda enxergavam no sistema soviético o futuro brilhante da humanidade.  Já a socialdemocracia enfraqueceu-se, vem perdendo influência política, mas continua mantendo forte presença na Europa, liderando governos na Espanha e Inglaterra, e participando da atual coalizão governamental na Alemanha.  Reorganizada como Internacional Socialista desde 1951, ainda é a maior força política da esquerda, congrega mais de 150 partidos ao redor do mundo.  Os partidos remanescentes do antigo movimento comunista, por sua vez, mudaram de nome e adotaram posições próximas à socialdemocracia, como é o caso do Partido Democrático de Esquerda na Itália ou do Cidadania no Brasil. Vale ainda assinalar que, durante as reformas na URSS, alguns assessores de Gorbachev chegaram até a estudar a história da socialdemocracia em busca de subsídios que pudessem ajudar a Perestroika.

Ainda assim, é inegável que a socialdemocracia necessita de um aggiornamento para responder aos desafios colocados pelo capitalismo contemporâneo. Ideias para modernizar a socialdemocracia, aliás, já vem sendo debatidas faz algum tempo por intelectuais ligados ao movimento socialista. Algumas delas foram reunidas pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, que as denominou de “terceira via” – uma alternativa tanto à socialdemocracia clássica como à ordem neoliberal dominante. Para ele, essa modernização deve passar não só pela incorporação de novas temáticas, como por exemplo, a ecologia, mas também pelo abandono de certas características da socialdemocracia tradicional, tais como o protecionismo econômico, o corporativismo e o excessivo intervencionismo estatal.

Segundo Giddens, a socialdemocracia também subestimou a capacidade do capitalismo de inovar, e por isso deve desenvolver uma atitude mais positiva em relação aos valores do individualismo e do empreendedorismo e valoriza o mercado como fonte essencial de informação para as atividades econômicas. Embora rejeite a noção de estado mínimo dos neoliberais, e preserve a noção de justiça social como norte da política socialdemocrata, Giddens não vê mais sentido no socialismo como administração da economia, nem em sua visão igualitária rígida, avaliando ainda que a dicotomia esquerda x direita deve ser mantida, mas de forma “flexibilizada”.

As propostas de Giddens, e outras que surgiram como resultado de debates entre vários intelectuais socialistas, parecem aproximar-se perigosamente do ideário neoliberal, e revelam a dificuldade da socialdemocracia em manter uma linha de equilíbrio entre justiça social e a desigualdade de riqueza gerada pela economia capitalista, equilíbrio este que tradicionalmente constituiu a differentia específica da socialdemocracia. Alguns analistas mais à esquerda argumentam que existe um limite para as reformas que o capitalismo pode absorver, para além do qual o sistema entraria em colapso. Atingido esse limite, como teria sido o caso do estado de bem-estar social, haveria uma reação da direita para deter ou reverter reformas sociais.

Esse argumento, contudo, choca-se com a capacidade camaleônica que tem o capitalismo de assumir as formas mais diversas e adaptar-se a contextos históricos muito diferentes – desde democracias liberais até o regime comunista chinês –, parecendo confirmar a boutade do teórico marxista Fréderic Jameson, de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. No caso específico dos governos socialdemocratas, é improvável que o welfare state tenha chegado a ameaçar o sistema capitalista, até porque o objetivo de atingir o socialismo já havia sido abandonado. Na verdade, o nível de reformas sociais possíveis no sistema capitalista é uma questão da prática política, e não pode ser determinada teoricamente de antemão.

Entretanto, como as propostas de Anthony Giddens e outros parecem indicar, a modernização da socialdemocracia é sempre direcionada no sentido de adaptar-se às novas facetas do capitalismo, e com isso ela pode acabar perdendo sua identidade política. Por isso qualquer renovação deve necessariamente seguir o aufheben da filosofia hegeliana, um “superar conservando” em que a mudança eleva algo a um nível superior, mas ao mesmo tempo preserva sua essência. E o que deve ser preservado na socialdemocracia? Obviamente, sua origem como força de esquerda (ou centro-esquerda) empenhada em reformas sociais em prol dos trabalhadores. Sem isso, a socialdemocracia perde seu élan político e alguma outra força vai tentar substituí-la na defesa daquela parcela da população que tradicionalmente sempre apoiou os socialistas:  os desfavorecidos pelo ritmo vertiginoso de mudanças no mercado de trabalho. Na Europa, este substituto já tem nome: a extrema-direita, que vem crescendo eleitoralmente entre os mais pobres com sua política anti-imigração. A culpa pelo desemprego e a diminuição de renda dos mais pobres passa então a ser atribuída à presença de imigrantes e não às desigualdades geradas pelo sistema capitalista.

Retomar a revolução silenciosa vai exigir da socialdemocracia muita criatividade política, no sentido de acompanhar as mudanças do capitalismo e ao mesmo tempo trabalhar para direcioná-las em favor da sociedade. E o único caminho para isso é insistir no reformismo. Como disse certa vez Olof Palme, ex-ministro sueco, em um debate com outros líderes europeus da internacional socialista, se a alternativa não é voltar a Stalin e Lenin, então não há outra saída a não ser “seguir o rumo da tradição socialdemocrata”.

*Paulo César Nascimento, professor de Ciência Política de Universidade de Brasília

 

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